Nacionalismo do reforço: agora, EUA querem terceira dose para todos

Decisão deve ser formalmente anunciada esta semana, mas ainda precisa de aval da FDA. Metade do país não está vacinada e não há evidências de que regime de três doses seja necessário para população em geral – se consolidada, nova política tem tudo para piorar apartheid das vacinas

Imagem: Stephan Schmitz / Folioart
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O governo dos Estados Unidos decidiu que as pessoas vacinadas há mais de oito meses deverão receber uma dose extra, do mesmo imunizante recebido originalmente. Em princípio, a ideia é revacinar quem tomou Pfizer/BioNTech ou Moderna, mas a decisão deve se estender ao imunizante da Janssen assim que saírem resultados de seu ensaio clínico com duas doses, no fim deste mês.

A informação saiu esta madrugada na Associated Press, ventilada por fontes anônimas – segundo a reportagem, o anúncio formal deve ser feito ainda esta semana. O efeito não deve ser imediato, porque a política ainda precisa da autorização da FDA (a Anvisa dos Estados Unidos) para se concretizar. Mas pode ser uma questão de tempo até isso acontecer. Segundo a Reuters, o plano é já começar a distribuição de terceiras doses já entre o meio e o fim de setembro.

Temos discutido por aqui a necessidade de pensar terceiras doses para pessoas que ainda não estejam suficientemente protegidas, quando há dados apontando para isso. Faz apenas alguns dias que a FDA aprovou essa medida para um público bem específico: pessoas com comprometimento imunológico moderado a grave, como transplantados, que estão especialmente vulneráveis a infecções e que podem estar menos protegidos pelas vacinas do que o restante da população.

Mas o que está em jogo agora é algo completamente diferente: é de fato revacinar todo mundo nos próximos meses. E essa é uma decisão que tem tudo para gerar muita controvérsia. Os dados até agora mostram que as vacinas utilizadas nos Estados Unidos protegem bem a população em geral contra todas as variantes em circulação, incluindo a Delta; a maioria esmagadora das hospitalizações e mortes acontece entre não-vacinados, e a decisão anterior da FDA – relacionada aos imunossuprimidos – provavelmente seria suficiente para melhorar a proteção individual à pequena parcela da população que ainda tem mais risco de adoecer gravemente.

O mesmo parece estar acontecendo em Israel, que, apesar de possuir uma das coberturas vacinais mais altas do mundo, tem enfrentado um aumento intenso nas infecções e começou a distribuir terceiras doses para maiores de 50 anos. As hospitalizações e mortes por lá ocorrem em menor proporção do que os casos. Além disso, os dados do governo mostram que os idosos não-vacinados têm oito vezes mais risco de adoecer gravemente do que os vacinados. Até onde sabemos, ainda não há evidências de que pessoas jovens e saudáveis necessitem se vacinar de novo. 

A Pfizer e BioNTech anunciaram ontem o envio de seus dados iniciais sobre o reforço à FDA. Mas os dados brutos não foram liberados para análise da comunidade científica e, ao que parece, eles mostram apenas que a terceira dose aumenta a produção de anticorpos. Essa informação, sozinha, não indica que o regime de duas doses é insuficiente, e sabemos que a queda nos anticorpos com o tempo não implica necessariamente piora na proteção.

Ao mesmo tempo, a imunização nos Estados Unidos está mais ou menos estagnada e  apenas metade da população está com o regime completo. Esse apenas precisa ser relativizado – é muito mais do que a maior parte do mundo, mas menos do que se esperava para um país que começou a vacinar muito cedo e muito rápido, que tem abundância de imunizantes e onde as vacinas estão liberadas para todos acima de 12 anos. O fato é que ainda tem muita gente desprotegida de fato. E, como se sabe, por lá isso acontece em grande parte devido à hesitação vacinal. Resta saber como a notícia sobre a “necessidade” de uma dose extra vai soar para essa parcela da população, que realmente precisa ser alcançada.

Nacionalismo do reforço

Se quiserem mesmo revacinar quem já tomou algum imunizante, os Estados Unidos vão precisar de pelo menos 200 milhões de doses extras. Para comparação, a Covax Facility distribuiu até agora 203 milhões de doses para 138 países, o que não chega nem perto de conferir a eles uma cobertura adequada. Em todo o continente africano, apenas 56 milhões de pessoas receberam alguma dose.

O apartheid vacinal, que já existe, deve ser ainda mais agudizado com esse tipo de política, especialmente se o exemplo do governo Biden for seguido por outros países. Por enquanto, salvo algumas exceções, a distribuição de terceiras doses tem sido feita pelos países de forma focalizada, para públicos específicos. Mas, segundo a Pfizer, seus dados sobre a terceira dose generalizada também serão enviados à EMA, equivalente à Anvisa na União Europeia. 

Sem dúvidas, a farmacêutica prefere oferecer suas vacinas para nações mais ricas, a preços altos. O valor pago pelos europeus já aumentou um tanto, apontou recentemente o jornal The Guardian. Cada dose agora custa € 19,50, contra € 15,50 no primeiro contrato. O diretor-executivo da Pfizer, Albert Bourla, explicou assim os preços diferenciados: “Isso significa que as nações mais ricas pagariam por cada dose o custo de uma refeição… Os países de renda média pagariam cerca de metade desse preço… E, para os países de baixa renda, estávamos oferecendo-lhes doses a preço de custo”.  Em outras palavras, não é lá muito vantajoso parar de vender vacina para os países de alta renda. 

“Os líderes políticos devem fazer escolhas difíceis em face das tendências preocupantes, incluindo a variante Delta mais transmissível e a hesitação persistente da vacina. No entanto, uma abordagem preventiva para acumular potenciais doses de reforço nega seu uso produtivo em locais onde elas são desesperadamente necessárias hoje, criando assim as condições para o surgimento de novas variantes, aumentando a probabilidade de que a quarta e a quinta doses de reforço venham a ser necessárias e, possivelmente, exigindo o desenvolvimento de novas vacinas contra a covid-19 (…). Assim como o nacionalismo de vacinas, o nacionalismo de reforço é uma abordagem ineficaz, divisionista e autodestrutiva para deter um vírus que pode evoluir em breve mais rápido do que podemos contê-lo”, escrevem no Toronto Star Roojin Habibi e Steven J. Hoffman, do Global Strategy Lab, e Lisa Forman, da Universidade de Toronto.

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