Os novos elos entre direita, negacionismo e corrupção

Deputado que atacou a imunização negociava, por baixo do pano, esquema para produzir vacinas em laboratórios veterinários. E militares ligados a Pazuello podem ter usado “carimbo” do ministério da Saúde para negócios escusos

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DA CLOROQUINA AO LOBBY VETERINÁRIO

Tem um quê de ironia o novo capítulo das infindáveis negociatas, lobbies, tentativas de favorecimento econômico e irregularidades que envolvem as tratativas para compra de vacinas no governo Bolsonaro. É que, dessa vez, o protagonista é ninguém menos que Luis Carlos Heinze (PP-RS), o senador que, na CPI da Covid, fala sempre que pode – e que não pode – não de vacinas, mas do “tratamento precoce” com cloroquina. 

No fim das contas, como contou a Folha, o árduo defensor da cloroquina se mexia nos bastidores também em relação aos contratos e à produção de vacinas.  Com um porém: suas forças estavam voltadas ao lobby, junto à Anvisa e ao primeiro escalão do governo, para regularizar a produção de imunizantes contra a covid-19 por laboratórios de saúde animal. 

Isso mesmo: preocupado em “salvar vidas”, segundo ele, Henize atuou fortemente não apenas para que indústrias veterinárias fossem habilitadas a produzir vacinas contra a covid-19 no Brasil, mas também fazendo as vezes de intermediário e ligando essas empresas à… Precisa Medicamentos. Sim, a empresa responsável pelo contrato da Covaxin, atualmente investigada pela CPI por  suspeita de fraude e corrupção. 

Agora se sabe por que o senador ligou repetidas vezes para Emanuela Medrades, a diretora técnica da Precisa, em um mesmo dia de abril, como revelado pela quebra de sigilo telefônico da empresária pela CPI. Heinze atuou para forjar parcerias da Precisa com grandes indústrias de vacinas veterinárias, o que foi confirmado por empregados da intermediária ao jornal. Eles dizem ainda que teriam sido assinados três acordos de confidencialidade para produzir vacinas contra a covid a partir de plantas industriais de vacinas para febre aftosa. 

A lei que permite a atuação das empresas de saúde animal na produção de vacinas contra a covid foi sancionada por Bolsonaro em 15 de julho, mas, um mês depois, o próprio setor não tem apostado muito nessa via. Além de o processo para adaptar as plantas industriais de imunizantes animais ser caro e complexo, não há experiência com esse tipo de transição. Outros impeditivos considerados são a maior complexidade da produção de imunizantes para humanos, em comparação aos feitos para animais, e o envase das doses, que dependeria da entrada de outras empresas no negócio. Como se vê, uma movimentação bastante viável, que parece justificar tamanho empenho de quem pretendia “salvar vidas”…

Pois é. Bem que, quando o ministro Marcelo Queiroga propôs a adaptação de fábricas veterinárias para ampliar a disponibilidade de vacinas, achamos a coisa meio estranha. Até porque o problema brasileiro não era a limitação do seu parque tecnológico – Fiocruz e Instituto Butantan estavam aptos a produzir grandes quantidade de doses.

VERDE-OLIVA

Falando em lobby, as investigações da CPI têm ligado os pontos sobre a estranha e repetida atuação de militares para aproximar empresas, no mínimo, questionáveis, do Ministério da Saúde para o fechamento de contratos durante a pandemia. Segundo apurou o Estadão, a cúpula da comissão aposta que os militares em questão –  os coronéis da reserva Glaucio Octaviano Guerra, da Força Aérea Brasileira, Marcelo Blanco da Costa e Helcio Bruno de Almeida, do Exército, e o cabo Luiz Paulo Dominghetti, da Polícia Militar de Minas Gerais – se aproveitaram do acesso direito à pasta, durante a gestão de Eduardo Pazuello, para turbinar a possibilidade de realizar negócios lucrativos na esteira da crise sanitária e humanitária.

As movimentações teriam como objetivo central a obtenção de um documento chamado LOI, da sigla em inglês para Letter of Intent. Nada mais do que uma carta de intenções, com timbre do Ministério da Saúde, manifestando interesse em realizar negócios com a empresa em questão e que, mesmo não concretizado, abriria muitas portas ao atravessadores, funcionando como uma credencial para abordar prefeituras de cidades pequenas e fornecedores de insumos médicos. 

A CPI avalia que os militares poderiam facilmente saber que empresas como a Davatti – a americana que ofereceu doses de Astrazeneca  ao governo federal sem autorização do laboratório – não tinham qualquer condição de vender o que estavam oferecendo. Mas conduziam as tratativas mesmo assim em busca do documento oficial e da credibilidade que ele proporcionaria para outros polpudos negócios.

INVESTIGADOS

Ricardo Barros (PP-PR) agora é formalmente investigado pela CPI da Covid. A decisão, informada ontem, já era esperada. Em depoimento à comissão na semana passada, o líder do governo Bolsonaro na Câmara foi incisivo, mas não conseguiu explicar seu envolvimento no caso Covaxin e outros indícios de irregularidades e corrupção envolvendo o Ministério da Saúde durante a pandemia. Segundo o relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), Barros passa à condição de investigado diante dos “óbvios indícios” de sua participação na “rede criminosa que tentava vender vacinas” ao Ministério. 

Outro que entrou na lista de investigados ontem foi Túlio Silveira, advogado da Precisa, logo após prestar seu primeiro depoimento à comissão. Ele se negou a responder questionamentos sobre sua atuação na compra da Covaxin, sua função na Precisa e também, sobre sua relação com Bolsonaro. Silveira permaneceu ainda em silêncio quando perguntado se já trabalhou com cargo comissionado no Ministério da Saúde. O depoimento foi tumultuado. Os senadores, irritados com o silêncio (que virou moda), argumentaram que a decisão do STF na qual o advogado estava amparado tinha limites, e o liberava apenas de responder questões que pudessem incriminá-lo, mas não de prestar esclarecimentos sobre os pontos levantados. 

AINDA NÃO

A Anvisa rejeitou ontem a autorização do uso da CoronaVac para o público entre três e 17 anos, pedida pelo Instituto Butantan. A decisão foi unânime e baseada na recomendação da Gerência-Geral de Medicamentos, segundo a qual os dados disponíveis não são suficientes para estabelecer o perfil de segurança nessa faixa etária, tampouco a proteção conferida pela vacina. 

No fim de junho, foram publicados no The Lancet Infectious Diseasesos primeiros resultados da CoronaVac para este público. O ensaio de fase 1/2 envolveu 550 participantes, viu que a vacina induziu resposta imunológica mais forte do que em adultos e que a taxa de reações adversas foi muito baixa. Pouco antes da publicação, no início daquele mês, a China aprovou o uso da CoronaVac para pessoas acima de três anos, mas ele ainda não está disseminado. Agora, em agosto, o país lançou uma campanha de vacinação de adolescentes de 12 a 17 anos nas escolas.

Voltando à reunião: o gerente-geral de Medicamentos da Anvisa, Gustavo Mendes, apontou que ainda não há estudos confirmatórios (as fases 1 e 2 avaliam a resposta imunológica, determinam a dosagem e dão as primeiras indicações sobre segurança, mas não permitem determinar a eficácia nem confirmar a segurança em uma população mais ampla), e que o número de voluntários envolvidos até agora foi muito pequeno. Ele observou que, embora os dados demonstrem boa produção de anticorpos nessa faixa etária, isso não é suficiente para avaliar a proteção. Isso porque, nos adultos, os estudos ainda não apontam uma correlação causal entre uma coisa e outra. 

Provavelmente, a questão principal é a segurança. Como a aprovação depende de um cálculo entre riscos e benefícios, e como para crianças os riscos representados pela covid-19 são bem mais baixos que para adultos, a segurança da vacina precisa estar ainda mais bem estabelecida. Até agora, em adultos, a CoronaVac é um dos imunizantes com menos efeitos adversos, o que é uma grande vantagem.

Um ponto que comprometeu o aval para crianças e adolescentes é que, segundo a Anvisa, o Butantan ainda precisa enviar algumas informações sobre a proteção da CoronaVac em adultos: por exemplo, o acompanhamento da resposta imune, eficácia e segurança dos voluntários que participaram do ensaio clínico de fase 3 não foi disponibilizado. Também faltam os dados sobre a pesquisa realizada em Serrana – que, apesar da divulgação preliminar à imprensa em maio, até hoje não saíram em lugar nenhum.

O Butantan disse que os dados de imunogenicidade não foram entregues na sua totalidade à Anvisa “por conta de divergências no método de análise“, e que, embora considere as informações fornecidas até agora satisfatórias, atenderá ao órgão.

No futuro, a decisão da Anvisa quanto à CoronaVac ainda pode mudar (e, por aqui, acreditamos que ela será uma vacina muito boa para crianças). Por enquanto, o único imunizante contra covid-19 liberado para menores de 18 anos no Brasil continua sendo o da Pfizer/BioNtech, a partir dos 12 anos. Seu ensaio de fase 3 com adolescentes envolveu 2,2 mil pessoas nos Estados Unidos.

OUTRA DOSE, SIM

Também por unanimidade, os diretores da Anvisa aprovaram uma recomendação para que o PNI (o Programa Nacional de Imunizações) avalie aplicar uma dose de reforço, em caráter experimental, a grupos específicos vacinados com a CoronaVac – como idosos acima de 80 anos e pacientes imunocomprometidos. O Ministério da Saúde continua dando pistas de que isso vai acontecer, mas não há nada certo. 

BOLA DENTRO

A Anvisa autorizou uma mudança no estudo clínico da ButanVac: não haverá mais um grupo de voluntários recebendo placebo. Em vez disso, o novo imunizante será comparado com a CoronaVac. Isso porque, num cenário em que o vírus continua representando perigo e já existem várias vacinas disponíveis, não é fácil achar voluntários que topem dar o azar de receber placebo. Além disso, é eticamente discutível oferecer às pessoas uma substância inerte nesse momento. 

ESTÁ CONFIRMADO

O governo dos Estados Unidos anunciou ontem que pretende mesmo oferecer uma terceira dose de vacinas contra a covid-19 a toda a população. A partir do dia 20 de setembro, todos os que tiverem se vacinado há mais de oito meses poderão recebê-la. Já falamos um bocado sobre essa polêmica aqui, quando a decisão foi ventilada pela imprensa. 

Ontem, o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças do país) divulgou três estudos que, segundo as autoridades, fornecem evidências sobre a necessidade do reforço. Eles mostram o que já temos observado: uma queda na proteção contra infecções, mas alta eficácia permanente contra hospitalizações e mortes. Segundo o governo, a preocupação é que, mais adiante, a proteção contra mortes também possa vir ser reduzida… Mas o fato de essa ser uma decisão política de amplo alcance baseada em incertezas continua deixando especialistas de pé atrás. Uma pergunta: haveria uma forma de avaliar primeiro a possível queda na proteção contra casos graves a partir do acompanhamento dos voluntários que participaram dos ensaios de fase 3, ainda em 2020?

É SÉRIO?

O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, disse ontem que a obrigatoriedade do uso de máscaras é desnecessária e gera uma… “indústria de multas” no Brasil. Pois é. Foi no canal Terça Livre, do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos – que, por sua vez, foi denunciado pelo Ministério Público Federal por ameaça ao ministro do STF Luis Roberto Barroso e é investigado no Supremo no inquérito que apura fake news. “O uso da máscara tem que ser um ato de conscientização. O benefício é de todos. O compromisso é de cada um. Não tem sentido essas multas, não se pode criar uma indústria de multas. Imagina, multando as pessoas porque não estão com máscara. Se está precisando fazer isso, é porque nós não estamos sendo eficientes em conscientizar a população sobre o uso desse equipamento de proteção individual”. Quem diria que um governo anti-máscaras não conseguiria ser “eficiente” nessa conscientização, hein?

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