Do discurso do presidente às praias lotadas

Pronunciamento de Bolsonaro tem exaltação do golpe militar e ufanismo em semana repleta de exemplos do “novo normal” do autoritarismos. País afora, feriado marcou o abandono das medidas de distanciamento, embora número de mortes siga alta

Boa Viagem, em Recife, foi uma das praias lotadas no feriado.
Foto: Marlon Costa/Pernambuco Press
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Na narrativa de Jair Bolsonaro, democracia e ditadura são ideias muito semelhantes. No pronunciamento do 7 de setembro, o presidente afirmou que “os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas” levaram ao regime civil-militar que durou 21 anos no Brasil. Ele, que no primeiro semestre participou reiteradas vezes de manifestações antidemocráticas que pediam o fechamento do Supremo e do Congresso, disse que tem “compromisso com a Constituição” e “com a preservação da democracia”.  

O Brasil bolsonarista, que bebe de um ufanismo cada vez mais questionado, é um país com “senso de tolerância”, onde a identidade nacional foi forjada após um processo de miscigenação no qual “os diferentes tornavam-se iguais”.  Poucas horas antes dessas declarações, o violoncelista Luiz Carlos Justino, que nunca teve passagem pela polícia, era solto após cinco dias de prisão arbitrária. Ele é negro.

Para variar, durante seu discurso em cadeia nacional de rádio e TV, o presidente não mencionou nenhuma vez as vítimas fatais do coronavírus, que chegaram a 127 mil ontem. O discurso de Bolsonaro foi alvo de panelaços em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Recife e Brasília.

tradicional Grito dos Excluídos, com manifestações em pelo menos 15 estados, teve como tema a “vida em primeiro lugar”. Na capital federal, os movimentos sociais organizaram um ato performático na Esplanada dos Ministérios. Respeitaram as regras de distanciamento social. 

Já no desfile da Independência, o presidente e a primeira-dama estavam sem máscaras, acompanhados de crianças, também sem o equipamento de proteção. O evento aglomerou mais de mil pessoas, nas contas da Secom.

No sábado, o presidente voltou a atacar prefeitos e governadores que adotaram medidas de isolamento. Nas suas palavras, são “projetos de ditadores nanicos”. Na sexta, ele causou engarrafamento de cinco quilômetros na rodovia Régis Bittencourt, em SP, porque resolveu ficar acenando para caminhoneiros por mais de uma hora.

Nesse mesmo dia, a defesa do senador Flávio Bolsonaro conseguiu uma decisão favorável da juíza Cristina Serra Feijó, da 33ª Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio. A magistrada proibiu a TV Globo de exibir documentos das investigações sobre o esquema das rachadinhas. Um dos argumentos dela? As notícias poderiam prejudicar a imagem do filho 01.

Prestes a deixar a presidência do STF, Dias Toffoli não só participou do desfile do Dia da Independência como foi ao almoço oferecido pelo militar Flávio Rocha (secretário especial de Assuntos Estratégicos). O ministro disse na semana passada que nunca viu da parte de Bolsonaro “nenhuma atitude contra a democracia”.

“Estamos entregues a um governo que não dá valor a vida e banaliza a morte. Um governo insensível, irresponsável e incompetente que desrespeitou normas da Organização Mundial da Saúde e converteu o coronavírus em uma arma de destruição em massa”, disse o ex-presidente Lula em vídeo publicado ontem nas redes sociais. Ele também condenou a nomeação de “centenas de militares” para cargos estratégicos, como o comando do Ministério da Saúde, e avaliou que o país vive uma “escalada autoritária” que lembra “os tempos sombrios da ditadura”. 

Janio de Freitas fez, no sábado, o seguinte diagnóstico: “O autoritarismo que ataca no varejo, aqui e ali, até formar a massa de truculência que é um Poder incontrastável, já avançou muito mais do que notamos. Os atos vistos como abusivos ou extravagantes, e logo deslocados em nosso espanto por outros semelhantes, já configuram uma situação de anormalidade em que nenhuma instituição é o que deveria ser.”

O VELHO NORMAL

As cenas das praias lotadas de gente sem máscara acompanharam o feriado. Aglomerações do gênero foram registradas também em bares e parques em todo o Brasil (é possível ver várias fotos aqui). Uma reportagem do Estadão buscou entender por que a crise sanitária parece ter ficado para trás na cabeça de um conjunto expressivo de brasileiros.

“As pessoas decretaram por elas mesmas o fim do isolamento, não há nenhuma dúvida sobre isso”, resumiu o infectologista Alexandre Naime Barbosa, da Unifesp, continuando: “E fizeram isso sem seguir as regras da flexibilização, que é um conjunto de novas condutas, que exige a modificação de hábitos, o uso de máscara, o distanciamento social, a higiene reforçada. Então, o que fizeram, de verdade, não foi a flexibilização, mas sim a normalização, a banalização da ameaça.”

Para o cientista social Renan Gonçalves, da Faculdade de Medicina da USP, “a tendência da população é ir atrás do que é mais fácil de entender”. “Se todo dia temos 1,2 mil mortes e, num belo dia, temos 800, há um gatilho mental que nos faz entender que a epidemia está diminuindo, embora o número continue sendo muito alto”. A média móvel de mortes por covid-19 segue alta, mas caindo: ontem, bateu 784 óbitos – a menor desde um longínquo 18 de maio

Entre agosto e setembro, o número de pessoas que declarou continuar saindo de casa e recebendo visitas durante a pandemia cresceu 2,9 milhões, de acordo com o IBGE. Os brasileiros que afirmam ficar em casa e sair apenas em caso de necessidade está em 86,4 milhões. No mês passado, eram 89,1 milhões.

E na sexta-feira, o Ministério da Saúde publicou no Diário Oficial uma portaria estabelecendo financiamento para prefeituras realizarem ações de rastreamento e monitoramento de contatos de pessoas infectadas. A pasta está direcionando R$ 369 milhões para a ação.

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