Donald Trump mentiu sobre pandemia, comprovam gravações

Em entrevistas de fevereiro e março, presidente dos EUA reconheceu perigo do coronavírus. “Ainda gosto de minimizar, porque não quero criar pânico”, disse ele

.

Este texto faz parte da nossa newsletter do dia 10 de setembro. Leia a edição inteira.
Para receber a news toda manhã em seu e-mail, de graça, clique aqui.

No início da pandemia, Donald Trump acusou a OMS de falta de transparência, criticou a conduta dos governos europeus, afirmou que tudo estava “sob controle” nos Estados Unidos, disse que o coronavírus iria desaparecer “como um milagre”, que não estava “nem um pouco preocupado” e pressionou para que as quarentenas decretadas pelos estados fossem encerradas antes da Páscoa.

Ontem, ficou comprovado que o presidente dos EUA mentia. Numa entrevista ao jornalista Bob Woodward concedida em 7 de fevereiro, Trump revelou: “Você apenas respira o ar e é assim que passa. (…) E isso é muito complicado. Isso é muito delicado. Também é mais mortal do que uma gripe forte… Isso é mortal”. 

Dez dias antes dessa conversa telefônica, o presidente havia recebido de conselheiros o aviso de que o novo coronavírus seria a maior ameaça à segurança nacional que enfrentaria no governo. O vice-conselheiro Matthew Pottinger chegou a dizer que a emergência sanitária seria parecida com a pandemia de gripe espanhola, que matou cerca de 50 milhões de pessoas em todo o mundo.

Apesar disso, como sabemos, Trump não agiu de acordo. Questionado sobre isso por Woodward, explicou em 19 de março: “Eu queria sempre minimizar. (…) Ainda gosto de minimizar, porque não quero criar pânico.” Esse áudio foi divulgado ontem pela CNN, e faz parte do acervo de entrevistas que o jornalista conduziu com o presidente entre dezembro do ano passado e julho deste ano para seu novo livro, ‘Rage’, que será lançado na semana que vem.  

O fato de Trump saber de tudo em um momento em que os Estados Unidos tinham menos de 50 mortes (hoje são 190 mil) é um escândalo político. O fato do premiado Woodward guardar essa informação para si durante meses que foram dramáticos está sendo encarado como um escândalo ético.

“Sejamos claros. Ambos sabiam antes de qualquer outra pessoa que o presidente estava mentindo em público sobre a mais séria crise de saúde pública em um século. Ambos sabiam o quão séria era aquela ameaça e o quão mortal a doença poderia ser. Ambos sabiam que um desastre potencial não era apenas possível, mas cada vez mais provável. AMBOS SABIAM! O presidente sabia e mentiu porque queria ser reeleito. Woodward sabia e guardou para si mesmo porque tinha um livro para vender. Quem é pior?”, critica Charles Pierce, na Esquire.

É verdade que, em abril, o New York Times e o site Axios revelaram que Trump estava a par da ameaça. Conforme destacamos na época, esses veículos obtiveram memorandos internos que avisavam o presidente, ainda em janeiro, sobre os estragos que a crise poderia fazer no país. Mas nenhum documento supera a confirmação, gravada pelo jornalista com autorização de Trump. 

A questão é: se o público soubesse disso, o comportamento do presidente teria mudado? Por aqui, podemos nos perguntar o mesmo, visto que Jair Bolsonaro é um satélite de Trump. Aquela famosa viagem presidencial aos EUA, na qual a comitiva brasileira voltou praticamente toda infectada, aconteceu uma semana antes da conversa em que Trump confessou a Woodward sua opção por minimizar a pandemia.

No dia 10 de março, na Flórida, Bolsonaro seguia a mesma toada, dizendo que “a questão do coronavírus” não era “isso tudo que a mídia propaga”. Na época, não tínhamos nenhuma morte; hoje temos 128 mil. A respeito de outra declaração do mesmo quilate dada em abril, Bruno Boghossian lembra: “Àquela altura, o Ministério da Saúde já havia enviado ao Planalto uma projeção que estimava em cem mil o número de mortes na pandemia, segundo relato feito à Folha pelo epidemiologista Wanderson Oliveira, ex-secretário da pasta”. 

De acordo com a CNN, o livro de Woodward também vai revelar outros bastidores importantes (como já tinha sido feito no anterior sobre Trump, ‘Medo’). Anthony Fauci, principal especialista em doenças infecciosas do governo, é citado. Teria caracterizado a liderança de Trump como “sem rumo” e sua capacidade de atenção “como um número negativo”. “Seu único objetivo é ser reeleito”, teria afirmado Fauci a um fonte ouvida por Woodward. O epidemiologista nega.

Já Trump não negou (até porque a sua confissão está gravada). Questionado ontem, respondeu que se estava claro que seu objetivo era reduzir o pânico, a revelação “talvez seja verdade”. “O fato é que sou uma líder de torcida por este país. Eu amo nosso país. E não quero que as pessoas tenham medo. Não quero criar pânico, e certamente não vou levar este país ou o mundo ao frenesi”. Já levou. 

Leia Também: