Contra investigações, Bolsonaro se ampara em Aras, o “excepcional”

Bolsonaristas sobem o tom e invocam ‘golpe pontual’ das forças armadas. Presidente acena com vaga no STF para procurador geral protetor

Foto: José Cruz / Agência Brasil
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Um dia depois de ter mergulhado em discussões sobre como afrontar as decisões do Supremo Tribunal Federal que lhe desagradam, Jair Bolsonaro amanheceu pronto para mais um round. Vestindo uma gravata estampada com fuzis, declarou à imprensa na saída do Palácio do Alvorada: “Ordens absurdas não se cumprem e nós temos que botar um limite nessas questões”. Perguntado sobre exatamente o que estaria falando, o presidente da República, mais uma vez, demonstrou que gosta mesmo é de monólogo: “Quem tá falando sou eu, não estou dando entrevista. Se não quer me ouvir, vai embora”. 

O “limite nessas questões”, se veria mais tarde, é lançar mão de uma interpretação contestada pela maioria esmagadora dos juristas do artigo 142 da Constituição Federal, que trata do papel das Forças Armadas na defesa das instituições democráticas. Bolsonaro divulgou em suas redes sociais uma transmissão ao vivo com o advogado constitucionalista Ives Gandra Martins (o mesmo que deu corda, com um parecer, para o impeachment de Dilma Rousseff). Gandra tem defendido a tese de que a Carta prevê um golpe pontual das Forças Armadas no caso de um poder da República sentir-se “atropelado por outro”. Para ele, caberia aos militares – e não ao Judiciário – exercer o verdadeiro “poder moderador”. Para Gandra, se as Forças Armadas invadem o STF para, nas suas palavras, “repor a lei e a ordem”, isso não confere uma ruptura com a ordem democrática. “Jamais”.

É música para os ouvidos da família Bolsonaro. Eduardo, que na véspera já tinha declarado que para ele não é mais questão de “se”, mas de “quando” haverá uma ruptura, começou a bater na tecla da interpretação ‘gandresca’. “Pessoas que não conseguem enxergar dentro do STF ou dentro do Congresso Nacional instrumentos para reverter esse tipo de desarmonia entre os poderes, elas se abraçam no artigo 142 da Constituição“, disse à José Luiz Datena na Band. E continuou: “Eles [militares] vêm, põem um pano quente, zeram o jogo e, depois, volta o jogo democrático”.

Na mesma toada está o agora bolsonarista Roberto Jefferson, que ontem pediu, emulando o palavrão que Bolsonaro disse pela manhã: “‘Acabou porra!’ Presidente Bolsonaro, chegou o momento, só depende do senhor. É sua iniciativa convocar o poder moderador das Forças Armadas, art. 142 da Constituição. Essa afronta à harmonia entre Poderes, que parte do STF, nos levará ao caos. O povo anseia por isso. Contragolpe”, escreveu no Twitter. Jefferson foi alvo de um dos mandados de busca e apreensão na operação das fake news…

A propósito: para dez juristas consultados por El País Brasil não existe previsão de “intervenção militar” que não seja golpe de Estado. De acordo com eles, o fato de Jair Bolsonaro ter compartilhado em suas redes sociais a entrevista com Ives Gandra, junto da sua contumaz participação em atos antidemocráticos, já é material mais do que suficiente para imputar ao presidente o crime de incitação à quebra da ordem democrática

Mas não foi só com palavras que o presidente resolveu apertar o cerco ao Supremo. Seguindo a estratégia combinada na quarta-feira, o ministro da Justiça anunciou (via Twitter…) na madrugada de ontem um pedido de habeas corpus para Abraham Weintraub e “demais pessoas submetidas ao inquérito das fake news” a fim de “garantir liberdade de expressão dos cidadãos”. O ministro da Educação foi convocado pelo STF para depor no inquérito. Ex-ocupantes da Justiça nos mais diversos governos comentaram o absurdo do gesto de Mendonça: primeiro, por não existir habeas corpus coletivo; segundo por não ser papel do ministro advogar pelo governo – isto é função da AGU. O HC caiu no colo do ministro Edson Fachin, que pediu informações a Alexandre de Moraes antes de decidir. Deputados da oposição já protocolaram pedido para que Mendonça explique o caso no Congresso.

Na manhã de ontem, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, negou que o governo esteja pensando em “intervenção militar”. Ele é o autor da “nota à nação brasileira” da semana passada, na qual fala em “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional” no caso de a Justiça requerer a apreensão do celular de Bolsonaro. Por esta grave ameaça – que Heleno caracteriza como “genérica” e “neutra” –, parlamentares deram entrada no Supremo com pedidos de impeachment do general. Ontem, o ministro Celso de Mello encaminhou ao procurador-geral da República, Augusto Aras, as petições para que ele manifeste se há indício de crime de responsabilidade ou não.

O decano do Supremo foi novamente alvo da ira de Bolsonaro, desta vez de forma direta. O presidente sustenta que a divulgação do vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril foi abuso de autoridade por parte de Celso de Mello. “Quem divulga vídeos, imagens ou áudios do que não interesse ao inquérito, está lá, um a quatro anos de detenção”, disse, defendendo Weintraub e também Ricardo Salles. 

O clima no Supremo, segundo apurações de bastidores, é de atenção. Os ministros se baseiam em episódios anteriores, nos quais Bolsonaro ataca outros poderes para inflamar a militância, mas não coloca em prática a radicalização. (Cá entre nós: o problema é que cada frase dessas, e são muitas, vai levando as instituições democráticas a um nível de estresse que já beira o insuportável). De qualquer forma, para os jornalistas, ministros avaliam que o próprio habeas corpus de André Mendonça é sinal de que o governo ainda não desistiu dos instrumentos legais para confrontar o Judiciário. 

No caso do inquérito das fake news – cuja suspensão foi pedida não pelo governo, mas pelo PGR Augusto Aras –, a decisão ficará com o plenário da Corte. E parece que há maioria em apoio a sua manutenção. O relator desse inquérito, Alexandre de Moraes, já teria “informação para ações explosivas”. Mas ao invés de usar esse arsenal na quarta-feira, o ministro do Supremo teria decidido esperar os desdobramentos da operação – que como se vê, já causaram considerável curto-circuito.

Mas os números falam por si: depois da ação, a atividade de robôs e perfis “alugados” em prol de Jair Bolsonaro e suas pautas caiu 40% em relação aos momentos de maior atividade. E os 17 perfis que foram alvo do inquérito respondem por nada menos que 12% de todas as interações da direita no Twitter

Entre as reações ao dia de ontem, destaca-se uma menos usual, vinda da Congregação da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da USP. Em 1977, a Congregação escreveu uma “Carta aos Brasileiros” contra a ditadura. E, agora, 43 anos depois, achou por bem renovar o apelo: “Neste momento excepcional, em que o país vivencia grave crise sanitária com repercussões econômicas e políticas, impõe-se reafirmar que o pleno exercício dos direitos fundamentais, a legalidade, a liberdade, a igualdade e a justiça, são valores supremos do povo brasileiro, que o Estado, por meio de seus Poderes, tem o dever de assegurar e promover”.

Ah… Davi Alcolumbre (DEM-AP) encontrou Bolsonaro pedindo pacificação. E Rodrigo Maia (DEM-RJ) afirmou que a não concordância com o STF tem que se dar pelos caminhos legais

Aras, o “excepcional”

Como costuma dizer Mino Carta, “até o mundo mineral” já percebeu que alguma coisa vai muito mal na Procuradoria Geral da República. O problema tem nome e sobrenome: Augusto Aras. A atuação do procurador-geral, escolhido a dedo por Bolsonaro, se assemelha a de um agente duplo, responsável por investigar alguém que, na verdade, protege. Se o “pulinho” de Bolsonaro à PGR já havia sido constrangedor, ontem a simbiose ficou escancarada. Em sua live, o presidente disse que “Augusto Aras entra fortemente” no Supremo caso surja uma terceira vaga na Corte. Durante seu mandato, Bolsonaro terá a prerrogativa de escolher dois ministros, mas parece já estar pensando em uma segunda gestão ou em cenários mais fúnebres – “espero que ninguém ali (no Supremo) desapareça”, afirmou como que num ato falho.

A coisa é ainda mais bizarra porque Bolsonaro resolveu elogiar Aras por sua atuação na… economia. “Ele procura cada vez mais defender o livre mercado, o governo federal nessas questões que muitas vezes nos amarram”, declarou. Bom, as questões que têm realmente amarrado o governo, o presidente e sua família são outras, bem distantes da ordem econômica. E a “atuação excepcional” que Bolsonaro vê em Aras é fator de rebelião na PGR, como revela a repórter Malu Gaspar, na Piauí.

A gota d’água para os subprocuradores foi o pedido de suspensão do inquérito das fake news apresentado por Aras na quarta-feira. Assim que assumiu a PGR, Aras contrariou um parecer da antecessora, Raquel Dodge, e deu sinal verde para o inquérito. Mas quando as investigações chegaram aos aliados de Jair Bolsonaro, o procurador-geral mudou de ideia, como vimos. “Ele teve a oportunidade de fazer o certo e não fez. E agora está fazendo o certo pelos motivos errados”, disse um membro do MPF, sob anonimato.

Agora, corre de maneira discreta na PGR um abaixo-assinado para destituir Augusto Aras do cargo. Isso porque a Constituição brasileira prevê que o Senado pode interromper o mandato de procuradores-gerais caso seja constatado crime de responsabilidade. Mas os subprocuradores também estão fazendo lobby no Congresso para que se aprove uma lei proibindo o presidente da República de escolher para o comando da PGR um nome que não esteja na lista tríplice, resultado da votação da categoria. O manifesto nesse sentido já tem mais de 530 assinaturas

Dois exemplos contundentes que ainda não tinham vindo à tona e mostram como atua Aras: o PGR tem negado pedidos de diligência na investigação sobre a interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, dentre eles um que tinha como objetivo obter autos da operação Furna da Onça, em que surgiu o relatório que apontou os desvios praticados por Fabrício Queiroz no gabinete de Flávio Bolsonaro. E ainda: o procurador teria pressionado membros da sua equipe a assinarem uma nota desmentindo uma reportagem do jornal O Globo, que dizia que procuradores viam crime de responsabilidade no vídeo do dia 22 de abril. Ele se recusaram, mas Aras não desistiu e enviou o secretário-geral do MP para desmentir tudo na CNN Brasil. Ainda segundo a reportagem, a subprocuradora Lindôra Maria de Araújo, de quem partiu os pedidos de busca e apreensão nos endereços do governador do Rio, Wilson Witzel, é figura próxima de Flávio Bolsonaro… 

A propósito: Aras se manifestou ontem contra a apreensão do celular de Jair Bolsonaro.

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