Chegou a hora do bloqueio

Lockdown decretado pela Justiça começa hoje em cidades do Maranhão. Em breve, Pernambuco e Pará podem adotar medida

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lockdown da cidade de Wuhan, na China, começou na manhã de 23 de janeiro. Onze milhões de pessoas mergulharam no primeiro bloqueio total de circulação da pandemia, naquele que era, então, seu epicentro. O objetivo era evitar a propagação do novo coronavírus não só para outras partes do território chinês como para o resto do mundo. Em dias, cidades no entorno também foram fechadas e, em pouco tempo, o esforço já modificara a vida de 50 milhões. Mas era tarde demais. Aliás, à medida que o conhecimento sobre o vírus vai aumentando, surpresas vão surgindo. Hoje mesmo, médicos franceses divulgaram que têm elementos para acreditar que um paciente tratado num hospital de Paris estava infectado pelo Sars-Cov-2 em dezembro, reabrindo o debate sobre se o vírus já circulava antes de a Organização Mundial da Saúde (OMS) saber da sua existência.   

O próximo bloqueio total foi decretado na Itália. Primeiro, na região Norte; a partir de 9 de março, em todo o país. Ontem, pela primeira vez em dois meses, o lockdowncomeçou a ser flexibilizado por lá. Ao contrário da China, a decisão italiana envolveu uma outra variável importante: o colapso do sistema de saúde. Como sabemos, a velocidade do contágio foi tremenda. No ápice da epidemia, o ‘R’ – ou seja, o número médio de pessoas que um infectado é capaz de contaminar – foi estimado em 2,38 por um estudo publicado na Nature

Na semana passada, o Imperial College de Londres estimou que o R no Brasil pode ter chegado a 2,8. Por isso, nós somos um forte candidato a próximo epicentro da pandemia de covid-19. Mas, ao contrário de outros lugares que adotaram lockdown, como França e até mesmo a Índia, por aqui essa medida tem sido abordada com muita reticência pelos gestores estaduais. Não é à toa que o primeiro bloqueio do país tenha sido decretado pela Justiça.

Também não surpreende que o juiz que instituiu o bloqueio total em quatro cidades do Maranhão – São Luís, Paço do Lumiar, São José de Ribamar e Raposa –, que começa a valer hoje, esteja recebendo ameaças de morte. Ontem, o magistrado Douglas Martins pediu que a Polícia Civil investigue.  “A mensagem disse que, se não voltar atrás na minha decisão, ele vai me matar”, contou ao UOL.  “Registrei a ocorrência na polícia, comuniquei ao setor de segurança do Tribunal de Justiça e ao Ministério Público. Fiz isso não por mim exclusivamente, mas levando em conta a intolerância no país. As pessoas estão testando o Poder Judiciário, o Congresso, o STF [Supremo Tribunal Federal], a imprensa com ameaças semelhantes a essas feitas a mim. Se nenhuma dessas instituições reagir e aceitar essas agressões, a democracia brasileira não sobreviverá“, desabafou.

O medo da reação negativa de parte da população, inflamada quase que diariamente pelo presidente Jair Bolsonaro contra os governadores e pela reabertura, é o que explica a hesitação em decretar o lockdown mesmo diante de evidências mais do que suficientes de que os serviços de saúde atingiram a capacidade máxima de atendimento. Aliás, como sabemos, o movimento das últimas semanas tem ido no sentido contrário: flexibilizar as quarentenas que já chegaram a ser adotadas por 23 unidades da federação.

Mas é chegada a hora de pressionar pelo bloqueio total. O biólogo Atila Iamarino, que ficou famoso nos últimos meses pelas projeções que traça nas suas transmissões ao vivo no YouTube, começou a campanha pelo lockdown no domingo. Diante da falta de lanterna (testes em massa) e mesmo de vela, Iamarino alertou que o Brasil está, simplesmente, tropeçando em corpos, vivenciando sua epidemia no escuro. Por isso, defendeu, precisamos pelo menos nos antecipar ao colapso do SUS e olhar para as taxas de ocupação de leitos de internação e UTI nos estados (embora, também aí, haja dificuldades para achar os dados). 

Nós subscrevemos o apelo. E dizemos mais: além do lockdown, os estados e cidades mais afetados precisam lançar mão da requisição de leitos privados previsto em momentos de caos completo, como este, pela Constituição, pela lei que organiza o Sistema Único de Saúde (8.080) e pela lei de calamidade pública aprovada no Congresso Nacional. Não faz o menor sentido que vidas sejam perdidas por falta de capacidade nas redes estadual e municipal quando há leitos vagos no setor privado.

Voltando ao lockdown: é preciso destacar que já vemos algum avanço nesse debate depois da decisão tomada pelo juiz no Maranhão. Em Pernambuco, o governador Paulo Câmara (PSB) promoveu uma reunião para apresentar a proposta do bloqueio à Assembleia Legislativa ontem. Por lá, o governo já pediu apoio do Exército e do Ministério da Saúde para aplicar o lockdown. “Nós fizemos questão de fazer esse pedido para que houvesse uma manifestação pública por parte do Ministério da Saúde, reconhecendo as dificuldades de Pernambuco”, disse o secretário estadual de saúde, André Longo. O estado tem 98% dos 435 leitos de UTI ocupados. “Não temos outra saída senão aumentar o isolamento social”, constatou ele.

Também no Pará, o bloqueio está na mesa. O governador Helder Barbalho (MDB) vai decidir amanhã se adota lockdown em algumas cidades do estado. Segundo ele, já foram identificadas as atividades essenciais que poderão funcionar – nos outros países, esse rol normalmente é formado por supermercados, farmácias e hospitais – e estão em análise formas de reduzir a circulação do transporte coletivo e estratégias de trânsito. “Desenha-se o pior cenário, que é o de todos ficarem doentes ao mesmo tempo e terem de procurar o sistema público e privado de saúde. Toda a estratégia mostra que temos a necessidade de espaçar essa procura, com a consolidação de um platô, e não de um pico”, disse em entrevista à Folha. O prefeito de Belém, Zenaldo Coutinho (PSDB), adiantou ontem que a capital deve, sim, adotar o bloqueio

O Rio de Janeiro também já está próximo do colapso do SUS. Mas o debate sobre o lockdown ainda está restrito aos gabinetes do governo. Diante da clara dificuldade em atender os doentes, Wilson Witzel (PSC) recebeu do comitê científico que assessora o estado a recomendação de bloquear regiões consideradas críticas em relação à propagação do novo coronavírus. De acordo com o jornal O Globo, o documento prevê algo essencial para tornar o bloqueio viável: a distribuição de alimentos e produtos de higiene nas casas das famílias mais vulneráveis. “Da primeira semana de abril para cá é perceptível que muitas pessoas não estão cumprindo o isolamento. E há a dificuldade de se fazer isolamento em comunidades muito pobres na medida que a ajuda do governo federal, já insuficiente, não chegou. A política econômica não está a serviço da política de saúde”, criticou o ex-ministro José Gomes Temporão, para quem o lockdown deve ser decretado para “ontem”. 

Em São Paulo, João Doria (PSDB) disse que pode mudar de ideia sobre o lockdown caso as coisas piorem. “É uma alternativa que poderá ser considerada se houver circunstâncias que assim exijam. Tudo o que for para salvar vidas e proteger pessoas, não hesitaremos em adotar em São Paulo. Mas só faremos isso amparados pelo Comitê de Saúde. Neste exato momento, lockdown não está sendo analisado, mas, volto a dizer, neste momento. Dado que estamos numa evolução acelerada desta pandemia, isso poderá ser reanalisado nos próximos dias”. É o mesmo recado do governo do Espírito Santo. “Por enquanto, não são estudadas medidas assim, mas o agravamento da situação pode levar ao lockdown aqui. É bom fazer esse alerta para que a sociedade nos ajude com o isolamento social”, disse o secretário de Governo, Tyago Hoffman ontem à CBN

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