Quando o Ministério não segue as pistas

Diante do novo recorde de mortes por coronavírus, Pasta revela que não faz cumprir norma que obriga laboratórios privados a compartilharem resultados

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O Brasil bateu um novo recorde nas mortes pelo novo coronavírus em 24 horas: o Ministério da Saúde informou que foram registrados 600 óbitos de segunda para terça-feira, levando o total a 7.921, em 114.715 casos confirmados. O boom já era esperado. Entre quem estuda a evolução da pandemia no Brasil havia um consenso de que a queda nos óbitos diários verificada nos últimos dias se devia a um atraso nos registros por conta do feriadão e, com isso, o número provavelmente subiria muito ontem.

Infelizmente, é certo que haverá novos recordes. Ontem foram publicados dois estudos apontando que o Brasil deve se tornar o novo epicentro global da pandemia. O InfoGripe, sistema da Fiocruz que acompanha internações por SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave), confirmou que a tendência de aumento segue firme. A taxa de crescimento da disseminação da covid-19 (mesmo com a subnotificação) está entre as 25% piores do mundo, e o aumento da letalidade é o pior da América Latina. A Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) alertou sobre o crescente número de casos no país, especialmente com o aumento nas cidades menores.

Mesmo assim, antes da divulgação dos dados, o presidente Jair Bolsonaro garantiu estar esperançoso: se houvesse nova queda, seria uma mostra de que  “o pior já passou“, afirmou ele. Desnecessário dizer que isso não faria o menor sentido. Com a imensa demora no registro dos óbitos, não dá nem para determinar qual foi o dia do recorde real de mortes até o momento. Na coletiva de imprensa de ontem, o secretário de Vigilância em Saúde Wanderson de Oliveira notou que, dos 600 registros, só 25 se referem a ontem, 51 são de segunda-feira e 48 são de domingo. Os outros quase 500 são de outras datas. “Quando nós avaliamos o número de óbito, é uma conclusão de duas, três semanas atrás”, disse ele. Hoje, ainda estão em análise mais de 1,5 mil mortes que só vão aparecer depois.

Oliveira, que chegou a pedir demissão quando soube que o ex-ministro Mandetta seria exonerado, acabou ficando, e foi responsável por dar os informes e responder às perguntas na coletiva. Reconheceu que “não dá para saber quando chegaria o pico da crise”. De acordo com ele, vai ser em algum ponto entre maio e julho. “Não tenho dúvida”, afirmou. Até março, o Ministério acreditava que o pico seria em abril…

Incrivelmente, só na coletiva de ontem fomos brindados com uma valiosa e chocante informação: o Brasil desconhece os resultados de quase 200 mil testes já realizados. Cerca de 90 mil amostras estão aguardando análise laboratorial, e cada laboratório central continua analisando só de cem a 150 amostras por dia. Outros mais de cem mil foram feitos na rede privada, que não compartilhou os resultados com o Ministério da Saúde. “A instituição que deve notificar, isso está previsto em uma lei de 1975, a notificação compulsória”, destacou Oliveira. Mas o fato é que a notificação não vem, e aparentemente fica por isso mesmo. Quando se trata dos testes sorológicos, ou rápidos, a situação é ainda mais nebulosa: “Distribuímos os testes rápidos. Os dados de quem usou e deu negativo, ou de quem usou e deu positivo não estão chegando ao Ministério da Saúde”, prosseguiu o secretário, afirmando que foram entregues 3,5 milhões de kits.

Para efeitos da pandemia, quando cada dia conta muito, podemos dizer que já faz uma eternidade desde que o Ministério da Saúde anunciou a distribuição de 46 milhões de testes, ainda sob Mandetta. Mas até agora só 5,1 milhões foram entregues: os 3,5 milhões de sorológicos e mais 1,6 milhão do tipo PCR. Outros 24,6 milhões “estão sendo adquiridos, ou foram uma parte já recebidos; ou seja, já estão pagos ou entregues”, declarou Oliveira, mas não sabemos exatamente o que esperar disso. Apesar de dizer que “tem uma grade de distribuição planejada” e que a Fiocruz entregaria 3,6 milhões até maio, ele não informou o cronograma. Tampouco explicou quantos desses testes são sorológicos e quantos são PCR, nem qual a garantia da qualidade dos produtos (falamos disso ontem). Além disso, não falou sobre o que acontece com os outros milhões de testes que faltam para completar a promessa inicial.

Pelo menos, ainda que insuficientes, os dados mais detalhados da Pasta vão enfim começar a ficar disponíveis para consulta. Segundo o secretário, eles devem ser lançados ainda esta semana, sem identificação dos pacientes.  

Em tempo: Guilherme Benchimol, presidente empresa de investimentos XP e, agora, também palpiteiro em saúde pública, disse ontem que “o Brasil está bem” em relação ao coronavírus e que “vamos sair dessa mais rápido do que as pessoas imaginam”. “Nossas curvas não estão tão exponenciais ainda, a gente vem conseguindo achatar. O pico da doença já passou quando a gente analisa a classe média, classe média alta. O desafio é que o Brasil é um país com muita comunidade, muita favela”, declarou, em transmissão ao vivo do Estadão. Difícil entender por que ele foi convidado pelo jornal para analisar a situação.

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