Bolsonaro avança novamente contra as máscaras

Proteção é obrigatória por lei, mas presidente cria ruído com anúncio de revisão por Ministério da Saúde. Queiroga, que assumiu o comando da pasta defendendo máscaras, acata sandice

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Se há limites para uma atuação pró-vírus, Jair Bolsonaro os desconhece. “Acabei de conversar com um tal de Queiroga, não sei se vocês sabem quem é. Nosso ministro da Saúde. Ele vai ultimar um parecer visando a desobrigar o uso de máscara por parte daqueles que estejam vacinados ou que já foram contaminados para tirar este símbolo… Que obviamente tem a sua utilidade, para quem está infectado”, anunciou ele ontem, durante um evento no Planalto sobre medidas para o setor do turismo. Choveram aplausos. 

Tampouco parece haver limites para a subserviência de Marcelo Queiroga, um médico, ao presidente. O ministro, que na CPI não conseguiu convencer ninguém de que tem autonomia no comando da pasta, correu mais uma vez para tentar emendar o que não tem remédio. Foi ambíguo, como tantas vezes tem sido. Na saída do ministério, declarou que para abolir as máscaras é preciso “vacinar a população brasileira”. Mas à noite, tanto no seu perfil pessoal como no do Ministério da Saúde, foi postado um vídeo em que ele afirma ter recebido de Bolsonaro uma “solicitação para fazer um estudo acerca do uso de máscaras”… Ele diz também que o presidente está muito satisfeito com o ritmo da vacinação e, a cereja do bolo, que “Bolsonaro está sempre preocupado em [fazer] pesquisas em relação à covid”.

Em entrevista à CNN, Queiroga ainda sugeriu que não há nada errado em Bolsonaro jogar no seu colo um “ultimato” (e não um “estudo”): “O presidente não me pressiona. Eu sou ministro dele e trabalhamos em absoluta sintonia. É assim que funcionam as democracias”. Quando assumiu há menos três meses, ele pediu que os brasileiros formassem uma “pátria de máscaras”.

Efeito prático

A obrigatoriedade do uso de máscara em locais públicos no Brasil está prevista em lei federal. Mesmo que viesse realmente a ser editado, nenhum parecer do Ministério da Saúde mudaria isso. Mas o efeito prático das propostas de Bolsonaro nunca depende do quanto elas sejam factíveis – como é de seu costume, o presidente atua na produção de ruído.

Os senadores da oposição repudiaram a declaração do presidente. Infectologistas apareceram nos jornais, em choque, explicando por que a ideia é absurda. Mas a confusão está armada, num cenário em que comunicar a necessidade de manter as medidas preventivas após a vacinação já era um grande desafio.

Foco errado

Já falamos bastante sobre o relaxamento do uso de máscaras aqui, quando discutimos a autorização dos Estados Unidos nesse sentido. No mês passado, as autoridades do país liberaram pessoas vacinadas do uso dessa proteção em quase todos os ambientes. Mas com base em indicadores bem distintos dos nossos: a circulação do vírus já tinha baixado muito e boa parte da população adulta tinha sido imunizada. Além disso, nem se discutiu orientar quem já se infectou a andar sem máscara também, porque existem casos de reinfecção.

O que gostaríamos de acrescentar é uma importante reflexão trabalhada na reportagem de Ed Yong, no site The Atlantic. Ela trata de como o individualismo atrapalha a resposta à pandemia em vários níveis, e, entre outras coisas, critica que o principal órgão de saúde pública dos EUA tenha emitido diretrizes baseadas nisso. “Enquadrar a saúde de uma pessoa como uma questão de escolha pessoal é fundamentalmente contra a própria noção de saúde pública”, diz Aparna Nair, historiadora e antropóloga da saúde pública da Universidade de Oklahoma. 

Segundo a matéria, “a mudança sinalizou para as pessoas com o recém-descoberto privilégio de imunidade que elas estavam livres do problema coletivo da pandemia”, e “também deu a entender para aqueles que ainda estavam vulneráveis ​​que seus desafios agora são apenas deles e, pior ainda, que o risco persistente era de alguma forma culpa deles”. Nada disso é verdade. Diretrizes desse tipo não focam na equidade, mas em privilégio – e deixam os desprivilegiados ainda mais vulneráveis. 

Mas o texto vai além da discussão sobre as máscaras, e mesmo sobre a pandemia especificamente, e discorre sobre como as relações entre saúde e condições sociais foram sendo deixadas de lado ao longo do último século. Hoje muitos cientistas têm os determinantes sociais da saúde em foco, mas essa ainda não é a visão predominante. “Os epidemiologistas começaram a ver a saúde em grande parte em termos de características e exposições pessoais. Eles se concentraram em encontrar ‘fatores de risco’ que tornassem os indivíduos mais vulneráveis ​​às doenças, como se as causas da doença ocorressem puramente além dos limites da pele de uma pessoa”.

Encontrar esses fatores não é em si um erro, mas qualquer abordagem se torna capenga quando ignora outras questões e quando as orientações para a população ter saúde – como comer bem e fazer exercícios, para ficar em dois exemplos clássicos – são todas pessoais: “A distribuição de fatores de risco individuais – a disseminação de germes, a disponibilidade de alimentos nutritivos, a exposição de alguém a carcinógenos – é sempre profundamente moldada por forças culturais e históricas e por desigualdades de raça e classe”.  Vale a leitura.