Barreiras de acesso

Medo de buscar serviços ou desorganização do sistema vitima cardíacos e pode afetar indicadores de saúde gerais num futuro próximo

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Um levantamento nas certidões de óbito registradas entre 16 de março a 31 de maio deste ano aponta para o aumento de 31% nas mortes por causas cardíacas. O número, foi de 14.938 no mesmo período de 2019 para 19.573 em 2020. E a maior parte desses óbitos – 15.870 – aconteceu em casa, um crescimento de 32% em relação ao ano passado. Afunilando ainda mais, chega-se à conclusão que as mortes em domicílio por causas cardíacas sem um diagnóstico fechado quase dobraram (passaram de 4.852 para 8.550). O que tudo isso nos diz?

Pelo menos três coisas, de acordo com Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, entidade responsável pelo levantamento. Em primeiro lugar, o novo coronavírus tem impactos sobre o coração e agrava quadros pré-existentes. “Porém, há outros motivos que podem explicar também essa alta, como o envelhecimento da população, fatores de risco impostos pela pandemia como estresse e tabagismo”, afirmou ao Estadão

Finalmente, a correlação mais importante tem a ver com a interrupção de tratamentos por parte de pacientes crônicos, que acontece tanto pelo medo que os doentes têm de ir ao hospital e contrair o coronavírus, quanto pela desorganização do sistema de saúde frente à pandemia. Sobre isso, a UFMG chama atenção para o seguinte dado: apesar do aumento geral nos óbitos cardíacos, houve uma redução de 11% nas mortes por acidente vascular cerebral e infarto – indicativo da falta de diagnóstico preciso, que geralmente ocorre em óbitos domiciliares.

Em relação ao atraso na busca por ajuda, há outro levantamento interessante: o Hospital do Coração registrou uma queda de 71% de exames de diagnóstico e aumento de 30,8% de pacientes críticos —ou seja, aqueles que passaram pela UTI, em algum momento da internação— entre os meses de abril, maio e junho em comparação com o mesmo período de 2019.  “Ao invés de passar um dia no hospital fazendo exame e tomando as medidas necessárias, notamos que as pessoas chegam, por exemplo, com o músculo do coração muito sofrido ou com insuficiência renal, e acabam tendo que ficar uma semana internadas”, disse Alexandre Abizaid, cardiologista do HCor, à Folha.

Ao mesmo jornal, a cardiologista Gláucia Moraes Oliveira, da UFRJ, fez um alerta: as doenças cardiovasculares devem causar grande impacto nos sistemas de saúde nos próximos meses. “É preciso campanha pública para conscientizar sobre a importância do cuidado cardiovascular, mesmo durante a pandemia.”

É também o que pensam especialistas sobre outros problemas de saúde. Kim West, do Médicos Sem Fronteiras, fala que o abalo nos serviços de atenção básica mundo afora tende a aumentar as taxas de doenças evitáveis. “Algumas estimativas indicam que, se a covid-19 causasse interrupções semelhantes às provocadas pelo surto de ebola na África ocidental em 2014 e 2015, isso significaria que quase 1,2 milhão de crianças e 57 mil mães poderiam morrer em países de renda baixa e média em apenas seis meses, o que representa um aumento de mais de 45% na mortalidade infantil”.

Já a brasileira Debora Diniz e a argentina Giselle Carino chamam atenção para o aumento das barreiras de acesso ao aborto seguro, seja o ilegal, seja onde o procedimento é permitido: “Na Romênia, dos 280 hospitais públicos, somente 11 ofereciam aborto como cuidados essenciais em saúde durante a pandemia. A pandemia se tornou o acontecimento para restringir os direitos reprodutivos sem precisar nomeá-los como batalha política— basta o isolamento social, o risco de contágio nas ruas, a priorização do que seriam necessidades de saúde emergenciais.” 

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