As entranhas do governo

Flerte com guerra civil, presidente autoritário, pandemia em segundo plano: em vídeo ministerial, governo mostra o que sempre foi

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Armar “o povo”. Prender “essa corja”. Desregulamentar tudo o que der na base do “parecer, caneta” já que a mídia só fala da covid-19… São muitas as preocupações e motivações demonstradas por Jair Bolsonaro e seus ministros na reunião do dia 22 de abril, divulgada em parte pelo ministro Celso de Mello na sexta-feira. Não dá para dizer que o interesse público estivesse entre elas. De uma coisa a gravação é prova definitiva: o governo federal abdicou de seu papel durante a pandemia. A BBC Brasilcontabilizou quantos minutos foram dedicados ao assunto no encontro que durou quase duas horas: 19. E a maior parte deles foram usados para xingar governadores e prefeitos que tentam fazer seu trabalho ao invés de tecer maquinações obscuras…  

A apresentação de Nelson Teich, que na data da reunião tinha chegado há menos de uma semana no governo, é tão breve e vaga como foi sua gestão. Não passou desapercebido que, naquele ambiente digno de uma cena de Tropa de Elite, a ênfase da sua intervenção tenha sido no sentido de que o governo deveria salvar as aparências, tentando mostrar para a sociedade que tem “o controle da doença” para que os planos de retomada econômicas vingassem. Mais de um mês depois, se o governo deixou de ser “um barco à deriva” foi porque o presidente decidiu agir contra a população que governa, editando orientações sobre o uso de substâncias inócuas no tratamento da doença e potencialmente perigosas, como a cloroquina.

Além dos ataques a gestores públicos e dos impropérios sobre as tentativas de lhe obrigar a divulgar os exames de detecção do vírus, da parte de Bolsonaro chama atenção que sua menção à covid-19 tenha sido para confessar a pressão que colocou sobre a Polícia Rodoviária Federal – estrutura que, como a PF, também é vinculada ao Ministério da Justiça. O presidente informa os ministros que ligou para o diretor-geral da PRF – como queria fazer com o diretor-geral da PF – para questionar uma nota de pesar divulgada pela corporação na véspera, lamentando a morte de um policial provocada por coronavírus. “Isso daí não pode acontecer”, sentenciou. A nota dizia: “O que era difícil de se imaginar, hoje se tornou uma triste realidade para todos nós. A doença, a covid-19, não escolhe sexo, idade, raça ou profissão”. Mas para Bolsonaro, o texto tinha que detalhar as comorbidades do falecido, reforçando a falsa narrativa de que só idosos e pessoas com doenças pré-existentes correm risco. A propósito: o diretor-geral da PRF, Adriano Furtado, foi exonerado do cargo no mesmo dia da divulgação do vídeo.     

Agora, parte do governo resolveu voltar suas baterias contra o relator do inquérito que apura se houve interferência do presidente na Polícia Federal. O ministro Celso de Mello já está sendo atacado por Bolsonaro nas redes sociais. De acordo com reportagem da Folha, o presidente pretende acusá-lo de suspeição.

Mas a verdade é que o governo está indo por um caminho muitíssimo mais perigoso. Na sexta, um procedimento corriqueiro do judiciário – Celso de Mello pediu que Augusto Aras, procurador-geral da República, se manifestasse sobre ações que pedem a perícia do celular de Bolsonaro e de seu filho 02, Carlos – despertou no general Augusto Heleno a vontade de ameaçar a ordem democrática. Na sexta, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) divulgou uma “nota à nação brasileira” que fala em “consequências imprevisíveis” caso o pedido de apreensão dos aparelhos seja deferido. No sábado, foi a vez de o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, dizer que “a simples ilação de o presidente da República ter de entregar o seu celular é uma afronta à segurança institucional”. E ontem, dezenas de militares da reserva assinaram uma nota de apoio a Heleno. O texto fala que ministros do Supremo “trazem ao país insegurança e instabilidade, com grave risco de crise institucional com desfecho imprevisível, quiçá, na pior hipótese, guerra civil”.     

E é uma guerra civil o que Bolsonaro imagina quando, na reunião ministerial do dia 22 de abril, enfatiza o esforço de armar “o povo” contra “a ditadura” – sendo ditadura no entender do presidente a prisão de pessoas que desrespeitam decretos de governadores e prefeitos sobre isolamento social. Ele comemora a derrubada das portarias do Exército para controle de armas e munições, ato que também está sendo investigado pelo Ministério Público Federal.  

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