Acordo das Pandemias: um fracasso esperado

Desde o início, países ricos sabotaram a negociação do tratado, buscando torná-lo inócuo. Prazos corridos terminaram de inviabilizá-lo, por hora. Novas rodadas só terão sentido com objetivo claro para o texto: equidade e justiça na Saúde Global

Foto: BRAC
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Neste sábado (1º/6), a 77ª edição da Assembleia Mundial da Saúde, espaço deliberativo que reúne anualmente os países-membros da Organização Mundial da Saúde (OMS), foi encerrada sem a realização de seu maior objetivo: aprovar o Acordo das Pandemias. Durante os últimos dois anos, negociações em torno do texto do tratado foram travadas com a perspectiva de se encerrar a tempo da Assembleia deste ano – mas uma série de desentendimentos entre os Estados levaram ao naufrágio do plano.

Ao longo dos últimos meses, a cobertura de Outra Saúde revelou o teor dessas divergências. Nesta reportagem, retomamos algumas delas – a maioria, ligadas à indisposição de países do Norte Global em aceitar cláusulas que buscam impedir que a desigualdade da resposta à covid-19 se repita no combate às próximas pandemias. As nações em desenvolvimento também questionaram a atuação do Órgão Negociador Intergovernamental (INB, na sigla em inglês), espécie de mediador das rodadas, que teria ignorado suas demandas para acelerar a finalização do texto.

No entanto, a Assembleia não se resumiu a impasses. Foram aprovadas emendas ao Regulamento Sanitário Internacional, outro tratado importante no âmbito da Saúde Global. Além disso, apesar da ausência de consenso no Acordo das Pandemias, os membros da OMS definiram a extensão do prazo das negociações por até um ano. A expectativa é que, aprimorado, seu texto possa ser aprovado na Assembleia de 2025.

O especialista indiano KM Gopakumar, consultor legal da Rede do Terceiro Mundo (TWN, na sigla em inglês) acredita que agora é preciso foco nas “negociações baseadas no texto”, e não em conversas abstratas – e a ênfase deve estar na garantia de um Acordo justo para as maiorias globais e os países do Sul. Entrevistado por este boletim, ele revela algumas das medidas indispensáveis para que o tratado concretize esse horizonte.

Pedras no caminho da escrita do Acordo

Ainda em janeiro deste ano, a especialista da Malásia Sangeeta Shashikant, coordenadora do Programa de Propriedade Intelectual da Rede do Terceiro Mundo, lançava em Outra Saúde o questionamento: a Europa sabotará o Acordo das Pandemias? Naquele momento das negociações, a União Europeia (UE) havia apresentado um bloco de propostas que poderia valer-se do tratado para praticamente legalizar a biopirataria.

A manobra consistia em esticar até o limite o princípio de que, para uma resposta global conjunta, é preciso que os países se comprometam a notificar os demais sobre a descoberta de um agente patogênico. Na proposta europeia, haveria uma forte obrigação de “compartilhar todos esses recursos biológicos e informações epidemiológicas e clínicas com uma rede global de laboratórios”, denuncia Sangeeta. O dever de dividir os avanços tecnológicos promovidos com essas informações, por sua vez, quase sumia. 

Aproveitando-se do regime patentário global, isso significa que os grandes centros científicos e farmacêuticos – via de regra, as potências tradicionais – poderiam capitalizar-se com novos remédios, testes ou vacinas desenvolvidos com esses dados sem recompensar minimamente os países que os ofereceram. Uma “tentativa flagrante de transferir vastos recursos do Sul Global para o Norte sem termos e condições de repartição de benefícios significativo, justo e equitativo”, avaliou a consultora malaia.

Paralelamente, em fevereiro, Índia e África do Sul encabeçaram uma tentativa de flexibilizar patentes de tratamentos e testes de covid-19 na Organização Mundial do Comércio (OMC). O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, respondeu afirmando que “as questões de propriedade intelectual devem ser parte das negociações do Acordo das Pandemias”. Porém, os países mais pobres já alertavam que, nesse âmbito, havia pouca esperança de sucesso.

Ainda naquele mês, em uma conferência de imprensa fechada de que participou Outra Saúde, organizações que acompanharam o processo negociador expuseram cinco ameaças ao Acordo das Pandemias. A maioria delas remete à linguagem “tímida”, não-vinculante, em pontos cruciais como o acesso equitativo a insumos de saúde, combate ao hoarding, apoio à produção local de vacinas e medicamentos e financiamento público global de pesquisas. Sem obrigações, argumentam as entidades, nada disso se materializaria.

Mas mais graves que quaisquer problemas do texto, elas denunciavam, eram as arbitrariedades do INB na condução das negociações: o órgão estaria “prejudicando sistematicamente o interesse dos países em desenvolvimento ”. O Grupo da África e o Grupo pela Equidade – este último, composto por nações como Brasil e Palestina –, que se organizaram para intervir na construção do tratado, traziam “propostas concretas sobre temas como propriedade intelectual, produção local, transferência de tecnologia e aquisição equitativa de vacinas” e a OMS se recusava a pô-las em discussão, alegando pouco tempo para debatê-las devido à aproximação do prazo. “Diplomatas de países do Sul Global relataram ter dificuldade de entender se estão negociando com os representantes do Norte Global ou com o Secretariado da OMS”, revelaram as entidades.

Os bloqueios impostos às movimentações dos Estados e da sociedade civil dos países em desenvolvimento também foram ressaltados em uma nota do GT Acordo sobre Pandemias e Reforma do RSI, composto por especialistas brasileiros da Saúde Global como Deisy Ventura e Paulo Buss. “Os mecanismos de participação social do INB foram inadequados, dando pouco espaço à contribuição de entidades e especialistas com histórico relevante de atuação no tema, principalmente do Sul Global”, apontam em seu texto.

Outro erro do INB, segundo Gopakumar, foi ter “demorado para iniciar as negociações baseadas no texto”. Em praticamente todas as rodadas, as discussões estavam em aberto — método que abriu margem para que o órgão revisasse desnecessariamente as sugestões dos países mais pobres. “A credibilidade do INB ficou em déficit nesse processo”, ele diz.

Nessas condições, escreveu o indiano em março, o risco que se desenhava era que o Acordo das Pandemias reforçasse as desigualdades já tão gritantes na Saúde Global. Em seu ensaio, ele destrinchou, artigo por artigo, as principais deficiências do tratado àquela altura.

Em texto de abril, traduzido neste boletim, a economista Mariana Mazzucato, que já presidiu o Conselho da OMS sobre a Economia da Saúde para Todos, também ressaltou que as avaliações correntes sobre o Acordo diziam que seu rascunho era “vergonhoso e injusto”. Mais uma vez, a linguagem não-vinculante e a falta de compromisso com a flexibilidade da propriedade intelectual eram alvo de críticas. A insatisfação se arrastava há meses. “Se o tratado for reduzido para se tornar o mais inofensivo possível, ele falhará”, cravou Mazzucato.

O texto final e seu revés

No final de abril, foi apresentado um novo rascunho do tratado, incorporando as mudanças acordadas nas negociações dos meses anteriores, que seria o penúltimo formato do texto antes do fim das rodadas. Nele, houve recuos quanto à transparência dos gastos com pesquisas – tema caro tanto à Big Pharma quanto a quem a enfrenta – e o uso de flexibilidades do Acordo TRIPS para ampliar o acesso a medicamentos.

Contudo, um progresso crucial surgiu ali. Integrou-se ao texto, a partir daquele momento, uma indicação de que os países do Norte Global compartilhem um quinto de seus insumos de saúde (vacinas, testes, medicamentos, etc) com a OMS, para distribuição às regiões com maior demanda. A medida racionaliza o enfrentamento às pandemias – já que esses Estados e as empresas que sediam tendem a fabricar bem mais do que precisam desses produtos, enquanto outros amargam uma escassez que se agrava pelo aumento dos preços durante emergências.

Além disso, “muitas demandas dos trabalhadores e trabalhadoras da saúde foram incluídas”, explica o Coordenador de Equidade em Saúde da Internacional dos Serviços Públicos (ISP) Pedro Villardi. “Referências explícitas ao trabalho decente e a necessidade de desenvolver políticas de apoio aos trabalhadores e suas famílias em caso de morte ou sequela na resposta a emergências de saúde” entraram no texto que chegou à Assembleia.

Esses avanços, mesmo que restritos a um rascunho, foram a senha para uma retaliação mais dura do Norte Global. No início de maio, o governo do Reino Unido vazou para a imprensa que não assinaria o tratado, quebrando o consenso exigido para a adoção do Acordo. Demonstrando o velho nacionalismo de vacinas visto na pandemia do coronavírus, o governo do país caracterizou a proposta de compartilhamento de imunizantes e outros produtos como “contrária ao interesse nacional” e inaceitável, noticiou o Telegraph.

A manobra britânica puxou o carro de outras objeções questionáveis: a Suíça declarou “não estar pronta para assinar o texto”, os EUA passaram a criticar as já tímidas medidas relativas à propriedade intelectual e o fiasco do Acordo começou a ficar evidente. Seu fracasso, contudo, já podia ser esperado pelos que acompanharam todas as distorções ocorridas no processo de negociações. À Assembleia Mundial da Saúde, restou a tarefa de balizar um novo prazo para a continuidade das tratativas.

Para um Acordo justo com os povos

Com a conclusão da edição de 2024 da reunião anual da OMS, diversas entidades internacionais se pronunciaram sobre a nova situação. Em geral, foi avaliada de forma positiva a reformulação de outro tratado, o Regulamento Sanitário Internacional. Um comunicado da Médicos Sem Fronteiras (MSF) nota o avanço representado pela definição clara, no novo texto, do que constitui uma “emergência pandêmica”.

Já nas próximas rodadas de negociação do Acordo das Pandemias, Gopakumar insiste que devem ser “incluídas obrigações legalmente vinculantes que garantam o acesso sustentável e previsível a tecnologias, recursos financeiros e insumos de saúde para preparação contra pandemias”. Outras organizações fizeram considerações no mesmo sentido.

A secretária médica da MSF, Maria Guevara, defende que “os governos se comprometam com obrigações firmes nas questões que ficaram faltando” no tratado a ser concluído em 2025. Os temas que não podem ficar de fora, ela diz, são “a transparência e a transferência de tecnologias e conhecimentos; a ligação das contribuições dos povos às pesquisas com a garantia do acesso aos produtos de saúde; a colaboração em esforços de produção, armazenamento e alocação; e o estabelecimento de um mecanismo global de acesso a patógenos e repartição de benefícios”.

“Regras globais justas devem ser estabelecidas para fortalecer as infraestruturas locais, a produção rápida e alocação equitativa de produtos médicos e o financiamento robusto do combate às pandemias”, opinou a organização intergovernamental South Centre, voltada para o desenvolvimento de países do Sul Global. 

A mensagem do South Centre à Assembleia Mundial da Saúde se conclui com um alerta duro, mas que desnuda a encruzilhada em que o Acordo das Pandemias se encontra:  “A adoção de um tratado só fará sentido se forem incluídas medidas significativas e obrigatórias que possam impedir a repetição das lacunas e falhas da resposta global à pandemia da covid-19”. O risco é “fracassar na promessa de não deixar ninguém para trás”, arremata a entidade.

No mesmo sentido vai a nota do GT Acordo sobre Pandemias e Reforma do RSI, que frisa que “a defesa do acordo é dificultada pela complexidade do processo negociador, com numerosos rascunhos e rodadas que não se fizeram acompanhar de mecanismos eficientes de comunicação”.

“O INB não pode repetir seus erros e deve facilitar o processo de negociações”, alerta Gopakumar. “Um Acordo das Pandemias que reforce o status quo ou institucionalize a desigualdade deve ser rejeitado pelo Sul Global”, crava o especialista.

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