A Europa sabotará o Acordo Anti-Pandemias?

Mudanças propostas pelo bloco europeu no rascunho do tratado distorcem seu sentido – e o tornam menos voltado ao Comum. Negociações precisam ter foco: garantir Saúde aos povos, não lucros a farmacêuticas do Norte Global

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Por Sangeeta Shashikant, da Third World Network (TWN), autora convidada | Tradução: Rajnia de Vito

Em maio deste ano, terminará o período de negociações do Acordo Internacional sobre Prevenção e Preparação para Pandemias, informalmente conhecido como Acordo das Pandemias. Até lá, desenvolve-se um cabo-de-guerra em torno do caráter que terá o tratado. Beneficiará a ampla maioria da humanidade, prevendo uma lógica solidária de compartilhamento de recursos e tecnologias? Ou será uma “tentativa flagrante de transferir vastos recursos, especialmente do Sul Global para o Norte, sem termos e condições de repartição de benefícios significativo, justo e equitativo”? É sobre esta disjuntiva que alerta nossa autora convidada, Sangeeta Shashikant. No texto que se segue, Shashikant, uma especialista da Third World Network (TWN), analisa em profundidade a recente proposta da União Europeia para o Acordo – que pode desfigurá-lo de uma vez por todas, em detrimento da saúde de bilhões de pessoas. O tema é decisivo para a Saúde Global nas próximas décadas e merece ser amplamente conhecido. Boa leitura! (G.A.)


Quando Genebra estava se preparando para as férias de Natal em dezembro passado, a União Europeia (UE) circulou uma proposta de seis páginas sobre acesso e “compartilhamento de benefícios” para os membros da Organização Mundial da Saúde (OMS). A proposta chega em um estágio muito avançado das negociações sobre o instrumento de pandemia e é preocupante.

O “compartilhamento” proposto pela UE é totalmente inadequado e terrivelmente falho. A proposta se desvia dos padrões internacionais estabelecidos pela Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) e seu Protocolo de Nagoya. Consequentemente, ela exacerba a desigualdade, desencoraja a troca oportuna de espécimes e de sequências genéticas pelos membros da OMS, mina a soberania nacional e corrói o caráter intergovernamental da OMS.

Este artigo examina em detalhes os aspectos críticos que destacam as deficiências da proposta da UE e suas possíveis ramificações na colaboração internacional durante emergências de saúde pública.

Inconsistência com os direitos dos Estados Partes sob a CDB e o Protocolo de Nagoya

A associação entre o acesso, de um lado, e a repartição de benefícios, de outro, é um direito estabelecido pelo Protocolo de Nagoya e tem a sua origem em uma injustiça histórica; entidades de países desenvolvidos se apropriam indevidamente de recursos genéticos do Sul Global, reivindicam direitos de monopólio por meio do sistema de propriedade intelectual e não compartilham os benefícios derivados do uso desses recursos. Daí surgiu e se popularizou o termo “biopirataria”, que orientou as negociações do terceiro objetivo da CDB, a repartição justa e equitativa dos benefícios.

Consequentemente, em 1992, com a adoção da CDB, foi aceito internacionalmente que os Estados têm “direitos soberanos” sobre seus recursos biológicos, um princípio também aceito pelos membros da OMS no contexto da Estrutura de Preparação para Pandemia de Influenza (Estrutura PIP). Dessa forma, a CDB (e, posteriormente, seu Protocolo de Nagoya) determina que o acesso aos recursos genéticos depende do consentimento prévio, livre e informado do país que fornece os recursos genéticos e da repartição justa e equitativa dos benefícios em termos mutuamente acordados (operacionalizados por meio de contratos juridicamente vinculativos).

De acordo com o Artigo 4 do Protocolo de Nagoya, esses elementos podem ser multilaterais por meio de um “instrumento internacional especializado” (SII, em inglês), desde que tais instrumentos “apoiem e não sejam contrários aos objetivos da Convenção e deste Protocolo”.

Infelizmente, a proposta da UE não atende a esse padrão jurídico estabelecido. O parágrafo 5(e) da proposta afirma que o acesso a amostras e dados de sequenciamento devem ser concedidos “sem condições” “aos destinatários solicitantes” (definidos como uma “instituição, organização ou entidade”), contradizendo os princípios fundamentais da CBD e de seu Protocolo de Nagoya.

O parágrafo 5(d) da proposta da UE menciona “diretrizes” a serem desenvolvidas pelo Secretariado da OMS, mas elas são apenas para o reconhecimento de laboratórios e biorrepositórios, bem como bancos de dados capazes de receber amostras e dados de sequência. As diretrizes são, por sua própria natureza, não vinculantes e, no passado, não conseguiram produzir resultados equitativos.

Além disso, a UE propõe que as diretrizes sejam estabelecidas pela OMS juntamente com outras organizações quadripartites para a Abordagem de Saúde Única (Organização Mundial de Saúde Animal, FAO e PNUMA). Isso significa, na prática, que as diretrizes serão preparadas pelos secretariados dessas organizações e que haverá muito pouco controle dos Estados-Membros sobre o desenvolvimento das referidas diretrizes. O Quadripartite inclusive já foi chamado a atenção por ignorar os regimes de acesso e repartição de benefícios em seu projeto de plano de ação conjunto para a implementação da Saúde Única.

Essas discrepâncias não apenas ridicularizam os direitos internacionais conferidos aos Estados Partes (que a UE também é legalmente obrigada a defender), mas também levantam preocupações sobre a possibilidade de a proposta exacerbar as desigualdades e, consequentemente, desencorajar o compartilhamento oportuno de amostras e dados de sequenciamento. Em essência, ao divergir das normas internacionais estabelecidas, a proposta da UE ameaça impedir o espírito colaborativo necessário para uma preparação e resposta eficazes a emergências de saúde e pandemias.

Separadamente, é preocupante o envolvimento central do Quadripartite no desenvolvimento de diretrizes, incluindo “orientação sobre a interpretação do que constitui um patógeno desconhecido” no parágrafo 3. Aí está estabelecido o que o Quadripartitite espera que os membros da OMS compartilhem rapidamente com o Sistema de Acesso e Repartição de Benefícios da Pandemia (PABS) proposto pela OMS, e o papel do Quadripartitite na coordenação da rede de laboratórios da OMS. Isso é alarmante do ponto de vista das implicações para a soberania nacional dos membros da OMS e sua autoridade na tomada de decisões dentro da OMS.

Minando o caráter intergovernamental da OMS e promovendo conflitos de interesses

A OMS opera como uma organização intergovernamental responsável perante seus Estados Membros, que são aqueles que detêm o poder de decisão. No entanto, a proposta da UE desconsidera descaradamente a função de tomada de decisão dos membros da OMS ao sugerir no parágrafo 2 que o sistema PABS deve ser administrado por uma parceria multissetorial composta pela “OMS e as organizações relevantes do sistema da ONU, outras organizações internacionais relevantes, organizações regionais e partes interessadas, incluindo a sociedade civil e o setor privado”. Essa parceria determinará os detalhes dos contratos de compartilhamento de benefícios, firmará acordos com os fabricantes de produtos relacionados à saúde e também terá a tarefa de operacionalizar a disponibilidade e a acessibilidade do fornecimento durante uma pandemia ou uma emergência de saúde pública de interesse internacional (PHEIC).

Além disso, é extremamente preocupante o fato de que a proposta da UE perpetua conflitos de interesses. O setor privado, com quem os contratos de repartição de benefícios devem ser assinados e de quem o fornecimento é exigido, estaria agora em posição de influenciar os vários elementos do sistema PABS. Além disso, o papel central atribuído ao setor privado na capacitação de cientistas de países em desenvolvimento e na rede de laboratórios coordenada pela OMS no contexto da repartição de benefícios (veja abaixo) é muito preocupante porque as disposições têm o potencial de minar a confiança nos sistemas de laboratórios de saúde pública e na ciência nos países em desenvolvimento.

Uma abordagem de múltiplas partes interessadas para governar o PABS é  desnecessária e indesejável. A COVID-19 destacou o fracasso da abordagem “multissetorial”, uma vez que o acelerador Access to COVID-19 Tools (ACT) mostrou-se inadequado. Um sistema PABS eficaz depende de um mecanismo de governança que seja independente, livre de conflitos de interesses e responsável perante os membros da OMS, um caminho seguido com sucesso pela Estrutura PIP.

Uma definição demasiado ampla de “patógenos”

A proposta da UE obriga o compartilhamento de todos os vírus ou organismos “que causam ou podem causar uma doença ao seu hospedeiro humano”. Isso se estende a quaisquer vírus ou organismos novos ou existentes, bem como a quaisquer variantes. O escopo proposto é injustificadamente amplo, indo muito além dos patógenos que causam emergências de saúde e pandemias.

De acordo com um observador de longa data do processo da CDB, essa proposta pode ser parte de uma política mais ampla da UE para minar outros regimes nacionais e multilaterais de ABS etc., expandindo o acesso aos recursos genéticos e minimizando os benefícios a serem compartilhados.

Além disso, a proposta da UE exige não apenas o compartilhamento da amostra física de patógenos, mas também “informações epidemiológicas e clínicas úteis para sua utilização”, dentro de um prazo estrito e específico.

Se acordada, a proposta da UE exigirá que os membros da OMS criem uma infraestrutura de vigilância em todo o seu território, abrangendo todos os organismos que tenham a menor possibilidade de causar doenças em seres humanos, e compartilhem todos esses recursos biológicos e informações epidemiológicas e clínicas relacionadas com uma rede global de laboratórios, sem quaisquer condições e com um mecanismo de repartição de benefícios disfuncional.

Nenhuma condição vinculativa associada ao acesso: Repetição de falhas do passado

Antes da adoção da Estrutura PIP, os laboratórios designados pela OMS, que recebiam amostras de influenza com potencial pandêmico eram regidos pelas diretrizes da OMS, mas os laboratórios receptores, como os Centros Colaboradores da OMS, violavam repetidamente as diretrizes.

A não conformidade e a apropriação indébita de amostras e sequências compartilhadas (já que esses laboratórios entraram com extensas reivindicações de patentes) eram comuns entre os laboratórios designados pela OMS. A confiança no sistema de compartilhamento do vírus da gripe se desgastou, e os países em desenvolvimento insistiram em reformular o sistema. Esses apelos tornaram-se mais intensos à medida que os países em desenvolvimento afetados também lutavam para obter acesso oportuno e acessível às vacinas no auge do surto de gripe aviária H5N1 e da pandemia de H1N1.

Em 2011, os membros da OMS adotaram por unanimidade a Estrutura PIP, que fornece um mecanismo para a cooperação internacional com relação à vigilância e resposta global à gripe com dois acordos de transferência de material padrão (SMTA) juridicamente vinculantes. O SMTA 1 rege o compartilhamento entre laboratórios designados pela OMS (ou seja, centros nacionais de influenza, centros colaboradores da OMS, laboratórios de referência H5, laboratórios regulatórios essenciais), e o SMTA 2 rege o compartilhamento com entidades fora desses laboratórios.

A Estrutura PIP também contém Princípios Orientadores para o desenvolvimento de Termos de Referência (TOR) para a respectiva categoria de laboratório designado pela OMS, bem como os TORs, que estabelecem os parâmetros do trabalho técnico que esses laboratórios realizarão. Assim, a SMTA 1 exige legalmente que os laboratórios receptores cumpram os respectivos TOR. Vale ressaltar que os termos e condições de acesso e uso pelos laboratórios designados pela OMS foram determinados pelos Estados membros da OMS e não o Secretariado.

O sucesso da Estrutura PIP é amplamente conhecido. Em 2016, um grupo de revisão de especialistas da OMS considerou a Estrutura PIP como uma “ferramenta ousada e inovadora para a preparação para a pandemia de influenza”. Os benefícios que ela gerou foram úteis para vários países durante a resposta à pandemia da COVID-19. O papel dos benefícios da PIP está bem documentado.

Em vista desse contexto, a proposta da UE dá muitos passos para trás. Em vez de se basear no modelo bem-sucedido da Estrutura PIP, a UE está optando por uma abordagem fracassada que também é inconsistente com as normas internacionais e com uma estrutura global eficaz.

A UE reconhece a repartição multilateral de benefícios, mas de forma distorcida e extremamente inadequada

Aparentemente, a proposta da UE parece propor um mecanismo detalhado de repartição de benefícios. No entanto, o diabo está nos detalhes. O compartilhamento multilateral de benefícios é proposto em duas partes no parágrafo 6, com “parte A – especificamente durante uma situação de pandemia” e parte B – “Sempre”.

A UE propõe incluir esses elementos de repartição de benefícios em contratos que serão desenvolvidos pela plataforma multissetorial (parceria) que inclui o setor privado e outras partes interessadas que também podem defender os interesses do setor privado, um evidente conflito de interesses. Os contratos serão tornados públicos, sujeitos à proteção da “confidencialidade comercial”, o que significa que os aspectos operacionais vitais dos contratos podem nunca ser públicos.

De acordo com a parte A (especificamente durante uma situação de pandemia), enquanto a situação de pandemia persistir, os fabricantes de produtos de saúde relacionados à pandemia deverão disponibilizar para a “parceria … somente mediante solicitação da parceria … trimestralmente ([…%] gratuitamente e […%] a preços sem fins lucrativos) … para distribuição com base no risco à saúde pública, necessidade e demanda”.

Em tempos de pandemia, a demanda mundial por produtos de saúde, especialmente diagnósticos, terapias e vacinas, excederá a oferta disponível. Portanto, é fundamental envolver os fabricantes de diferentes regiões e sub-regiões na produção de itens essenciais relacionados à pandemia. A abordagem mais rápida para ampliar a capacidade de produção é por meio do licenciamento, em que os fabricantes recebem a autoridade para produzir e recebem a tecnologia e o know-how necessários. Notavelmente, embora esse aspecto seja abordado na proposta de Acesso e Repartição de Benefícios (ABS) apresentada pelos países em desenvolvimento descrita abaixo, ele está visivelmente ausente do texto da UE.

Além disso, as várias ressalvas anexadas à proposta da UE provavelmente resultarão em acesso desigual, como ocorreu durante a COVID-19. O benefício na parte A só será operacionalizado mediante solicitação da parceria. O envolvimento do setor privado (e de outras partes interessadas relacionadas), bem como dos países desenvolvidos (que gostariam de ter acesso prioritário) na parceria, tem um grande potencial de prejudicar qualquer solicitação rápida de fornecimento aos países em desenvolvimento.

Além disso, como não há compromisso legal de um fabricante em fornecer até que uma solicitação seja feita pela parceria, os fabricantes não terão reservado nenhum fornecimento para aPABS/OMS. Nesse meio tempo, os fabricantes terão firmado vários acordos de compra antecipada com países ricos, prometendo fornecimento prioritário. Pode levar muitos meses até que o fornecimento esteja disponível para os países em desenvolvimento, mesmo que uma solicitação seja feita pela parceria.

Além disso, o suprimento a ser fornecido também é apenas “trimestral”, o que sugere que o destinatário do suprimento estará no fim da fila, enquanto a distribuição deve levar em conta o “risco à saúde pública, a necessidade e a demanda”. Embora o “risco à saúde pública e a necessidade” possam ser determinados com base em dados relativos à prevalência e seus efeitos, a questão da “demanda” é contestável.

Por exemplo, a extensão da Decisão TRIPS de 17 de junho de 2022 para diagnósticos e terapias está sendo contestada na OMC por países desenvolvidos e empresas farmacêuticas multinacionais com base no fato de que não há demanda por terapias para a COVID-19. Os países em desenvolvimento, a OMS e a sociedade civil têm argumentado repetidamente que o problema não é de demanda, mas de disponibilidade e acessibilidade em tempo hábil. Como resultado dessa disputa, a OMC não conseguiu estender a Decisão TRIPS no prazo de seis meses após sua adoção, conforme determinado pela 12ª Conferência Ministerial. Um ano e meio depois, a prorrogação da Decisão TRIPS da OMC continua pendente, tendo perdido o prazo de dezembro de 2022.

Em contrapartida, a proposta de ABS dos países em desenvolvimento exige que cada fabricante/desenvolvedor de produtos de saúde se comprometa contratualmente a fornecer pelo menos 20% de sua “produção em tempo real” de cada produto relacionado à pandemia fabricado para a OMS para distribuição com base no “risco e necessidade de saúde pública”. Isso significa que todos os fabricantes/desenvolvedores devem se comprometer legalmente a fornecer à OMS para distribuição equitativa, com a OMS no topo da fila. Os fabricantes que firmam acordos de compra antecipada com outras nações já estariam cientes de seus compromissos legalmente vinculantes para garantir que o fornecimento adequado esteja disponível para a OMS em todos os momentos. Assim, quaisquer outros acordos não interfeririam no fornecimento reservado para distribuição equitativa.

Na parte B (em todos os momentos), a UE propõe no subparágrafo (i) que os fabricantes “se comprometam a se engajar na capacitação e na colaboração científica e de pesquisa em termos mutuamente acordados com cientistas e pesquisadores de países em desenvolvimento” com relação à Pesqusa e Desenvolvimento (P&D) e à produção de produtos relacionados à amostra do patógeno. Esse aspecto não oferece nada mais do que o status quo, pois são “termos mutuamente acordados” e, como tal, voluntários.

No subparágrafo (ii), a UE sugere que os fabricantes de produtos para a saúde contribuam para apoiar a rede de laboratórios coordenada pela OMS, incluindo a capacitação de laboratórios e biorrepositórios de países em desenvolvimento na rede “e sua capacidade de detectar e caracterizar rapidamente patógenos e analisar materiais genéticos”. Para esse fim, “contribuições anuais” serão definidas nos contratos de compartilhamento de benefícios.

Essa proposta é egoísta, com o setor farmacêutico e os países ricos sendo os principais beneficiários. O setor farmacêutico criará capacidade e fornecerá contribuições anuais para que os países em desenvolvimento possam compartilhar rapidamente amostras e sequenciar para o desenvolvimento de produtos de saúde para pandemias, que podem ser vendidos com lucros enormes para os países ricos.

Embora a menção a contribuições anuais sugira a repartição de benefícios em termos monetários, não há detalhes sobre a fórmula para obter benefícios monetários ou sobre o teto que será coletado. De forma alarmante, a proposta é que as contribuições anuais apoiem a vigilância e o compartilhamento rápido de dados de amostras/sequências (o único aspecto que interessa à indústria farmacêutica e à UE) e não outras atividades de preparação, por exemplo, o fortalecimento do sistema de saúde ou medidas de resposta durante uma PHEIC ou uma pandemia.

Isso marca um afastamento significativo da estrutura do PIP, que tem uma referência clara para a coleta de benefícios monetários dos fabricantes de vacinas contra a gripe, diagnósticos e produtos farmacêuticos que usam o Sistema Global de Vigilância e Resposta à Gripe da OMS, com um acordo entre os membros da OMS de que 70% devem ser usados para a preparação (que não se limita à vigilância) e 30% para a resposta à pandemia. Um plano de implementação de alto nível é regularmente elaborado pela Secretaria do PIP em consulta com o Grupo Consultivo do PIP após receber feedback de várias partes interessadas, incluindo o setor privado e a sociedade civil.

Além disso, no subparágrafo (iii) da parte B, quando uma PHEIC persistir, a UE propõe que, “mediante solicitação da Parceria”, os fabricantes disponibilizem “a preços sem fins lucrativos” uma determinada porcentagem dos produtos “trimestralmente”, “para uso com base no risco à saúde pública, na necessidade e na demanda”.

“Sem fins lucrativos” não é definido em todo o texto da UE. De fato, durante uma PHEIC, apenas uma determinada porcentagem estará disponível a um preço indefinido “sem fins lucrativos”, o que implica que o fornecimento restante estará disponível a preços altos. Também não há certeza do fornecimento devido às várias ressalvas anexadas ao texto. 

Além disso, a proposta toma um rumo preocupante ao estipular que, no cenário em que uma PHEIC se transforma em uma pandemia, as quantidades fornecidas durante a fase inicial da PHEIC serão consideradas parte do compromisso geral de fornecimento para a fase pandêmica subsequente. Esse aspecto da proposta revela uma falta de compromisso por parte da UE em obter resultados equitativos, já que o fornecimento deve aumentar dinamicamente para atender à demanda elevada durante uma pandemia, levantando sérias dúvidas sobre a capacidade da proposta de se adaptar de forma eficaz às demandas crescentes e intensificadas de uma crise de saúde generalizada.

Dois pesos e duas medidas na abordagem das preocupações com a propriedade intelectual

No parágrafo 5(h), a UE proíbe reivindicações de propriedade intelectual apenas sobre patógenos e dados de sequências genéticas na forma recebida (ou seja, a forma não modificada). Ela reconhece que as amostras e os dados podem estar sujeitos à propriedade intelectual de outra forma e exige o respeito à tecnologia proprietária usada na preparação das amostras.

O texto proposto pela UE promove a possibilidade de apropriação indevida das amostras e sequências compartilhadas por meio do sistema de propriedade intelectual (PI), contribuindo para a perpetuação da desigualdade. Além disso, o texto apresenta um padrão duplo preocupante. Apesar de o objetivo declarado do instrumento de pandemia ser o de aumentar a produção e o fornecimento para um acesso equitativo, a proposta da UE não só defende a preservação dos monopólios de PI existentes sobre as tecnologias, mas também facilita o estabelecimento desses monopólios. Essa postura ergue barreiras adicionais à pesquisa e ao desenvolvimento (P&D), bem como aos esforços de produção por fabricantes em países em desenvolvimento, além de levantar suspeitas de desvios de dinheiro.

Isenção não razoável na proposta da UE

A proposta da UE isenta todas as organizações sem fins lucrativos, que são destinatárias das amostras ou dados de patógenos, das obrigações de repartição de benefícios. Deve-se observar que uma organização sem fins lucrativos não significa necessariamente que essas organizações não gerem receita. Por exemplo, as universidades podem usar sequências, reivindicar patentes sobre o uso para o desenvolvimento de diagnósticos e, posteriormente, licenciá-las em troca de royalties. Essas entidades que geram receita com o uso do sistema PABS devem contribuir para a repartição monetária de benefícios e licenciar essas tecnologias para fabricantes de países em desenvolvimento.

As lacunas na proposta da UE prejudicarão a eficácia do PABS

Visivelmente ausentes da proposta da UE estão os termos e condições determinados pelos membros da OMS sobre o compartilhamento e o uso de dados de sequências genéticas (GSD), uma questão de importância fundamental para os países em desenvolvimento.

Em vez disso, a proposta da UE exige que cada parte compartilhe rapidamente as sequências por meio de upload em bancos de dados reconhecidos pela OMS. Além disso, sugere absurdamente o desenvolvimento de diretrizes (que não têm efeito legal) para o reconhecimento de bancos de dados capazes de receber e transferir sequências, pela OMS, em consulta com os bancos de dados que estarão sujeitos às diretrizes. Como os membros da OMS e seus laboratórios estão compartilhando GSD, os termos de acesso e uso devem ser decididos pelos membros da OMS e devem ter efeito legal, como estar sujeitos a um acordo de acesso a dados, que já é comumente usado com relação a GSD de patógenos pandêmicos em potencial. Essa abordagem foi sugerida pelos países em desenvolvimento em sua proposta de ABS, com os termos a serem determinados pelos membros da OMS.

Outra lacuna pode ser encontrada no parágrafo 7(f)(ii). Ele afirma que o PABS só estará operacional depois que uma determinada porcentagem de fabricantes tiver celebrado contratos de repartição de benefícios. Isso representa um desafio para a eficácia do PABS, uma vez que outros fabricantes que não assinaram contratos de repartição de benefícios poderão aproveitar livremente o sistema PABS (receber amostras e GSD, já que não há condições legalmente vinculantes para o acesso) assim que ele se tornar operacional e, portanto, não serão motivados a assinar contratos de compartilhamento de benefícios, ameaçando todo o sistema ABS e o acesso equitativo durante PHEIC e pandemias.

De modo geral, a proposta da UE é uma tentativa flagrante de transferir vastos recursos, especialmente do Sul Global (um hotspot de organismos) para o Norte Global, sem termos e condições de repartição de benefícios significativo, justo e equitativo.

Proposta de ABS dos países em desenvolvimento oferece equidade significativa

72 países em desenvolvimento – o Grupo da África e o Grupo para Equidade propuseram um sistema PABS abrangente que se baseia no modelo da Estrutura PIP, levando em consideração as lacunas e lições aprendidas em sua operacionalização e os desafios de desigualdade enfrentados durante a COVID-19. Em vista do amplo apoio dos membros da OMS a essa proposta, ela deve ser o ponto de partida das negociações. Notavelmente, essa proposta não sofre com as deficiências e lacunas destacadas acima.

A proposta do Grupo da África/Grupo para a Equidade introduz termos e condições padrão (SMTA 1) como um elemento necessário para governar o compartilhamento de amostras e sequências de PABS entre a rede de laboratórios da OMS. Além disso, inclui o SMTA 2, que é aplicável à transferência de materiais PABS para entidades receptoras, definidas como desenvolvedores ou fabricantes de diagnósticos, vacinas, terapias e outros produtos médicos.

O SMTA 2 também descreve os compromissos de compartilhamento de benefícios criados para agilizar o acesso a vacinas, diagnósticos, terapias e outros produtos a preços acessíveis para lidar com PHEIC e pandemias, inclusive diversificando a produção por meio de licenciamento e expandindo as opções de fornecimento. O compromisso de repartição de benefícios também inclui a consideração de atender às necessidades dos países em desenvolvimento, inclusive para o estoque da OMS antes da PHEIC, com o objetivo de se preparar para uma resposta rápida, de acordo com a recomendação do Diretor-Geral da OMS e em conformidade com o plano de alocação da OMS, se esse plano for recomendado pela OMS.

A proposta do Grupo da África/Grupo para a Equidade também anexa ao texto os SMTAs detalhados que não constam no documento da UE

Além disso, os 72 países em desenvolvimento sustentam que os usuários que obtêm benefícios financeiros do sistema PABS devem fornecer contribuições monetárias significativas de repartição de benefícios para apoiar a preparação e a resposta à pandemia, com detalhes sobre sua operacionalização.

Com relação ao GSD, eles propõem permitir o acesso por meio de um banco de dados de sequências PABS transparente e multilateral, responsável perante os membros da OMS, que garanta transparência, responsabilidade e, principalmente, operacionalize a repartição justa e equitativa de benefícios, com o uso de acesso a dados por click-wrap e acordos de uso para usuários que desejem acesso, bem como um Acordo de Acesso a Banco de Dados entre a OMS e outros bancos de dados. Os detalhes desses acordos devem ser determinados pelos membros da OMS.

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