Será possível salvar o Tratado das Pandemias?

Economista italiana alerta para o enfraquecimento de um acordo que deveria servir para garantir a saúde de forma menos desigual na próxima crise sanitária. Norte Global ataca, em especial, as medidas para flexibilizar a propriedade intelectual

Economista alerta para o desmantelamento do Tratado das Pandemias. Créditos: Muy Financiero
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Por Mariana Mazzucato, no Project Syndicate | Tradução: Gabriela Leite

Rascunhos recentes de um tratado pandêmico global na Organização Mundial da Saúde (OMS) foram extensivamente criticados e vistos como “vergonhosos e injustos”. Quando a última rodada de negociações começou, em 18 de março, ficou claro que uma lição importante da pandemia da covid-19 estava sendo ignorada: a saúde pública e a saúde da economia são interdependentes.

Alcançar ambas requer reescrever as regras de como a saúde e o bem-estar são valorizados, produzidos e distribuídos – e como as economias são governadas. O sucesso do tratado dependerá da disposição dos estados membros em incorporar equidade em seus termos. E isso, por sua vez, exigirá um novo paradigma econômico. Se o tratado for reduzido para se tornar o mais inofensivo possível, ele falhará.

O Conselho da Organização Mundial da Saúde sobre a Economia da Saúde para Todos, que presidi, já emitiu recomendações sobre como proceder. Para começar, negociadores de todos os países devem permanecer focados no objetivo principal de prevenir que futuras ameaças à saúde se tornem catastróficas. Isso significa projetar os termos do tratado – incluindo aqueles relacionados à inovação, propriedade intelectual (PI), colaboração público-privada e financiamento – para serem orientados por missões¹. A equidade deve ser a principal prioridade, pois todos – e todas as economias – acabam sofrendo em uma pandemia, se testes, vacinas e terapêuticas que salvam vidas não estiverem acessíveis globalmente.

Além disso, a maneira como a inovação e o conhecimento são governados é tão importante quanto a própria inovação. Os governos têm poderosos instrumentos para determinar quem se beneficia da inovação. Eles são grandes financiadores de tudo, desde pesquisa e desenvolvimento (P&D) em estágio inicial até o desenvolvimento e fabricação de produtos. As vacinas contra covid de mRNA, por exemplo, se beneficiaram de cerca de US$ 31,9 bilhões em investimento público dos EUA. Condições mais fortes para o acesso do setor privado ao financiamento público ajudariam a garantir acesso equitativo e acessível aos produtos resultantes, além de facilitar o compartilhamento de lucros e reinvestimento em atividades produtivas (como P&D) em vez de improdutivas (como recompra de ações).

O objetivo, em cada caso, é estabelecer uma relação mais simbiótica com o setor privado – baseada em objetivos compartilhados, e em riscos e recompensas compartilhados. Como vimos com a propagação repetida de novas variantes da covid-19, uma vacina que apenas alguns podem pagar não vai parar uma pandemia. Qualquer tratado pandêmico deve se comprometer sem rodeios com essa mudança e evitar cláusulas projetadas para servir interesses privados de busca do lucro.

Uma parte crucial para acertar na colaboração público-privada é estabelecer uma abordagem para a governança do conhecimento e direitos de propriedade intelectual que sirva ao bem comum, em vez de proteger lucros de monopólios. Essa questão se tornou um ponto crítico nas negociações do tratado. Países de baixa renda estão sendo solicitados a compartilhar dados de patógenos (que auxiliam no desenvolvimento de novos testes, vacinas e tratamentos) sem a garantia de que terão acesso aos produtos resultantes.

Embora o rascunho atual aluda à importância de regras de propriedade intelectual que não limitem a acessibilidade e acesso, ele apenas “encoraja”, em vez de exigir, medidas voltadas para o compartilhamento de conhecimento e limitação de royalties. É escrito em uma linguagem vaga, pedindo que governos “considerem apoiar” isenções de patentes – outro ponto de discórdia.

Isso sugere que um impulso equivocado para preservar as regras de PI atuais está complicando as negociações. Para incentivar a inovação e fornecer benefícios sociais amplamente compartilhados, as patentes devem ser mais restritas; elas devem incentivar a inovação subsequente produtiva e a inteligência coletiva; e devem ser acompanhadas por compromissos de transferir o conhecimento e a tecnologia necessários para a produção.

Outro obstáculo para o sucesso do tratado pandêmico é que ele parece estar desvinculado de compromissos de financiamento claros. O Fundo Monetário Internacional estima que a economia global sofreu perdas de pelo menos US$ 13,8 trilhões, com os bloqueios provocados pela covid-19 e as interrupções na cadeia de suprimentos, que levaram o mundo à recessão. Os governos então gastaram mais outros trilhões respondendo à crise. Deveria ser óbvio que aumentar os investimentos em prevenção é preferível – em termos de saúde, prosperidade e justiça – a incorrer nos custos de uma crise que saiu do controle. Como o conselho da OMS apontou, “o custo-benefício é maior ao prevenir do que ao curar”.

A qualidade do financiamento é tão importante quanto sua quantidade. Países de baixa renda precisam de financiamento de longo prazo para fazer maiores investimentos em saúde. A menção do tratado à importância do alívio da dívida para liberar capacidade fiscal para prevenção, preparação e resposta a pandemias é bem-vinda, mas a linguagem é preocupantemente descompromissada. O financiamento para saúde deve ser entendido como um investimento de longo prazo, e não um custo que pode ser reduzido para atender a metas orçamentárias de curto prazo. Também é uma responsabilidade que transcende fronteiras nacionais.

Por fim, como o escopo do tratado pandêmico abrange vários setores do governo, a saúde não deve ser deixada apenas aos ministérios da saúde. A saúde é massivamente impactada por escolhas de políticas econômicas (por exemplo, relacionadas a direitos de propriedade intelectual), e decisões em todo o governo impactam os determinantes sociais, ambientais e econômicos da saúde. Os governos – em todos os ministérios – podem e devem redesenhar a maneira como a inovação é governada, como os setores público e privado se relacionam entre si e como o financiamento é estruturado para moldar mercados no interesse da saúde humana e planetária. A falha em priorizar a “saúde para todos” terá ramificações de longo alcance para a resiliência e estabilidade das economias em todo o mundo.

À medida que os estados membros discutem sobre cláusulas – retirando referências à saúde como um direito humano e diluindo restrições à propriedade intelectual, compromissos financeiros e disposições de monitoramento – não deve haver ambiguidade sobre a escolha que enfrentam. Centralizar o tratado no objetivo de prevenir ou minimizar pandemias obrigaria os formuladores de políticas a vê-lo claramente – e abandonar as suposições míopes que limitaram a colaboração internacional e público-privada. À medida que os estados membros se preparam para a Assembleia Mundial da Saúde, em maio, esse imperativo deve estar em primeiro plano.


[1]  Neste ponto, Mazzucato cita seu próprio livro “Mission Economy: A Moonshot Guide to Changing Capitalism” (2021), que sugere que o mundo deve estabelecer “missões”: objetivos grandes e ambiciosos que podem direcionar a inovação e o investimento para resolver problemas sociais complexos e urgentes. [Nota da tradutora]

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