As cinco ameaças ao Acordo das Pandemias

Tratado corre o risco de ser inócuo no combate às próximas emergências globais. Pior: a própria OMS parece chancelar o desperdício do instrumento. Especialistas que acompanham as negociações expõem seus entraves – e quem os causa

Foto: UN Women Asia and the Pacific
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Há pouco mais de um ano, os países-membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) negociam o chamado Acordo das Pandemias, um novo tratado cujo objetivo será preparar a resposta global conjunta aos próximos eventos pandêmicos – que podem estar mais próximos do que esperamos. Até aqui, as conversas em torno do Acordo, também conhecido como Instrumento Pandêmico, seguiram, em parte, um roteiro bastante comum nas negociações entre os Estados no campo da Saúde. 

De um lado, países em desenvolvimento pressionam por uma abordagem solidária no Acordo, defendendo o compartilhamento mais equitativo de insumos e tecnologias essenciais para que as populações pobres do mundo se protejam de ameaças à sua saúde. Do outro, nações do chamado Norte Global cumprem o papel de advogadas dos interesses das grandes empresas farmacêuticas, bloqueando a inclusão de medidas como a flexibilização das patentes de vacinas, medicamentos e testes, o incentivo à produção local e o livre compartilhamento dos resultados de pesquisas científicas no texto do tratado.

Contudo, no correr das negociações de seus termos, um cenário mais grave que o mero impasse político têm vindo à tona. Em um briefing fechado de que participou Outra Saúde, um grupo de especialistas de cinco países traçou um quadro preocupante para a próxima rodada de negociações do Acordo, iniciada nesta segunda-feira (19/2) e que seguirá até o dia 1º/3.

Para forçar consenso até maio, data-limite para que o texto final do Acordo seja apresentado à Assembleia Mundial da Saúde, o próprio Secretariado da OMS tem pressionado os Estados a desistir de propostas que causem polêmica entre as partes – em geral, “polêmicas” justamente por ameaçarem os lucros da Big Pharma ou garantirem mais autonomia para os sistemas de saúde das nações do Sul Global. O Secretariado tem até mesmo se recusado a inserir as propostas dos países do Sul Global no rascunho do texto a ser debatido. Essas são apenas algumas das queixas apresentadas.

Mas o mais grave, argumentam as fontes, é que este é um tratado em que haverá graves consequências caso o texto final seja inócuo e protocolar. A ausência de previsões mais firmes contra uma resposta “com fins lucrativos” às próximas pandemias pode ser o fator definidor para sua gravidade: milhões de vidas estão em jogo. Com base nas considerações de especialistas da África do Sul, da Austrália, do Brasil, do Egito e da Índia, Outra Saúde reuniu nesta reportagem as cinco principais ameaças à utilidade real do Acordo das Pandemias.

1. A marginalização da equidade

Desde o início das negociações, a OMS afirmou que a equidade – um conceito entendido como a garantia de acesso à Saúde proporcional às necessidades, maiores no caso de países mais pobres – deveria ser uma prioridade do Acordo das Pandemias.

Porém, relata KM Gopakumar, consultor jurídico indiano ligado à Third World Network (TWN), “o que se tem visto é a marginalização sistemática da equidade” nas negociações. Ele explica que em diversos pontos do tratado, como nos artigos 9 a 13, o texto vem sendo suavizado para reduzir as obrigações das nações mais ricas de compartilhar ferramentas essenciais para o enfrentamento às próximas pandemias.

O rascunho do Acordo prevê, por exemplo, que os países deverão compartilhar amostras e dados dos patógenos que estejam causando essas futuras emergências de saúde. A orientação é importante: sua motivação é facilitar o desenvolvimento de medicamentos, vacinas e testes a partir desses agentes infecciosos. 

Contudo, estão sendo escritos em “linguagem suave”, diz Gopakumar, os artigos do tratado que orientam o compartilhamento desses mesmos insumos. Ou seja, não haveria obrigatoriedade para o Norte Global, sede dos maiores e mais bem-financiados centros de pesquisa do mundo, de dividir com os países pobres a ciência que produziram com informações cedidas pelos próprios países pobres. 

Para o consultor, o que é preciso é que constem no Acordo “obrigações igualmente vinculantes de compartilhar os benefícios advindos do compartilhamento dos patógenos, como remédios, vacinas, testes, etc.”, já que sem isso não haverá “acesso equitativo à preparação para pandemias”.

Ao se utilizarem no Instrumento Pandêmico palavras que não remetem à obrigatoriedade, “nada é concreto e vinculante no sentido de garantir o acesso mais equitativo aos insumos de saúde”, aponta Gopakumar.

2. Medidas tímidas contra o hoarding e outras restrições ao acesso

Um dos principais entraves ao acesso equitativo almejado é a dificuldade de garantir um suprimento adequado dos insumos a todos os países – em especial os com menos infraestrutura para produzi-los ou recursos para adquiri-los.

Sem uma política mais firme nesse âmbito, denuncia Mohga Kamal-Yanni, consultora egípcia da People’s Vaccine Alliance, três decisões-chave estarão na mão das empresas: onde se produzem os suprimentos, para onde eles serão vendidos e a que preço.

Arrisca-se chegar a um cenário, como lembrou Francisco Viegas, consultor brasileiro da Médicos Sem Fronteiras (MSF), em que determinadas drogas não estarão disponíveis nos países do Sul Global onde elas foram testadas – já que elas poderiam “ser vendidas a preços mais altos no Norte” pelas farmacêuticas que terão suas patentes. Essa “séria violação da ética médica”, aponta o brasileiro, só poderia ser evitada ao substituir “a abordagem de mercado por uma abordagem de Saúde Pública” sobre o tema no Acordo.

Também chama a atenção, diz Viegas, a “falta de uma abordagem contra o hoarding” no tratado. A prática, também conhecida como açambarcamento, consiste em abusar do poder econômico para acumular um recurso a ponto de fazê-lo faltar para outros países – como quando os Estados Unidos compraram doses o suficiente para imunizar quatro vezes a sua população, enquanto, à época, apenas cerca de 10% dos africanos já tinham tido acesso à vacina da covid-19.

De acordo com o consultor da MSF, “o atual formato [do tratado] é tímido ao tratar desse problema”, contendo apenas “linguagem vaga”. É preciso “que os países pressionem para que a linguagem do Acordo seja mais concreta em relação a essas questões”, orienta Viegas.

3. Falta de ousadia no estímulo à produção local

Outro caminho para enfrentar os entraves de acesso é democratizar a produção de medicamentos e vacinas – afinal, quem produz internamente não precisa comprar de fora.

Para isso, existe uma solução bastante óbvia à mão: “produzir mais no Sul Global, e não apenas no Norte”, diz Mohga Kamal-Yanni. Mas os países em desenvolvimento precisam receber a tecnologia para fazê-lo. Porém, ela questiona , “como fazer transferências de tecnologia sem remover a principal barreira a elas, que é a propriedade intelectual”?

Exatamente com esse raciocínio é que vem sendo criticada a abordagem “frágil” do texto do Acordo em relação à propriedade intelectual de produtos farmacêuticos, com artigos pouco incisivos no estímulo ao compartilhamento.

Para Kamal-Yanni, é preciso que se permita chegar aos países de renda baixa e média “tecnologia, mão-de-obra, experts, know-how e recursos para o financiamento” da produção local, sem que eles sejam onerados com o proibitivo  custo dos royalties normalmente exigidos para utilizar a propriedade intelectual das grandes farmacêuticas.

Igualmente determinante, argumenta Francisco Viegas, é que a flexibilização de patentes não seja regida pelo licenciamento voluntário por parte das empresas. 

“A transferência voluntária de tecnologia não será suficiente”, ele alega, para enfrentar um evento da magnitude de uma pandemia. Do contrário, “as mesmas iniquidades, ou mesmo mais duras” que as vistas durante a pandemia da covid-19 poderão se repetir.

As vantagens de um waiver nas patentes de drogas, por outro lado, são claras. “Pelo menos 12 milhões de pessoas morreram no mundo devido à desigualdade no acesso a remédios para HIV, o que mudou quando a Índia começou a produzi-los” como medicamentos genéricos, lembrou Mohga.

4. Entraves ao financiamento público global de pesquisas

O texto atual do Acordo das Pandemias também peca ao não dar prioridade ao financiamento público e comum de pesquisas científicas que auxiliem no enfrentamento às próximas pandemias, avaliou Rachael Crockett, diretora da Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês).

É preciso, diz a australiana, que os países criem mecanismos por meio dos quais todos contribuam com recursos públicos para grandes projetos de colaboração internacional em pesquisa nas áreas úteis para esse fim, como a epidemiologia – e que, igualmente, todos os Estados possam acessar e utilizar sem custos as descobertas dessas investigações, para o desenvolvimento de insumos e estratégias de Saúde.

A ideia contrasta com um cenário em que o grosso do desenvolvimento de pesquisas farmacêuticas siga em mãos de laboratórios privados e possa ser explorado comercialmente por empresas no caso de uma nova emergência global, cenário também visto durante a guerra por vacinas durante a pandemia da covid-19.

Caso essa concepção mercadológica de ciência seja superada no tratado, a resposta às doenças infecciosas de alcance global será menos cara e mais rápida. Vidas serão salvas com mais eficiência. 

“Nas negociações, que condições serão postas para o financiamento público de pesquisas? Ele será voluntário ou obrigatório?”, ela também questiona. A obrigatoriedade, que hoje não está prevista no Acordo, seria essencial para que os países do Norte Global cumprissem com suas obrigações em relação ao resto do mundo, argumenta a diretora da DNDi.

Ações nesse sentido não estão desligadas da problemática das patentes: “muitos países hoje não possuem o dinheiro para investir em pesquisa porque seus sistemas públicos de saúde têm que dirigir todos os seus recursos para a aquisição de remédios caros das grandes farmacêuticas”, aponta a sul-africana Lauren Paremoer, professora da Universidade da Cidade do Cabo e membro do Movimento pela Saúde dos Povos (MSP).

“O Acordo será uma prova da disposição dos países de usar seu peso diplomático em favor de pesquisa e desenvolvimento para o bem comum”, concluiu Crockett.

5. Arbitrariedade na condução das negociações

Apesar do rumo das negociações ter sido insatisfatório até aqui, a situação estaria menos grave caso todas essas críticas levantadas por países em desenvolvimento e relatadas pelos especialistas no briefing estivessem recebendo mais espaço para serem expressadas. 

Contudo, explicou Gopakumar, o método de condução das conversas está “prejudicando sistematicamente o interesse dos países em desenvolvimento nessas negociações”.

Dois conjuntos de países têm sido os principais afetados: as nações africanas, mais vulneráveis às pandemias pelas deficiências em infraestrutura e recursos legadas por séculos de exploração colonial e neocolonial; e o chamado “Grupo pela Equidade”, organizado por 29 países em desenvolvimento – entre eles, o Brasil e a Palestina – para “trabalhar em conjunto nas negociações do Instrumento Pandêmico” em favor de um acordo efetivamente benéfico para a vasta maioria da população mundial.

“Não estão ocorrendo negociações em torno das propostas” que esses dois grupos trazem à mesa, diz o consultor jurídico da TWN, já que o Secretariado da OMS “pressiona contra a inclusão de emendas no texto”, encaminhando-as para subgrupos de discussão. 

Os especialistas questionam: por que as propostas precisariam de uma “pré-discussão” em subgrupos, se poderiam simplesmente ser discutidas de forma aberta por todos os Estados nas rodadas oficiais de negociação? Argumentos de que o “texto ficaria excessivamente grande” e de que “só posições de consensos devem entrar no rascunho” do tratado “não têm precedentes”, diz Gopakumar. O consenso não deveria ser alcançado exatamente nas negociações, e não antes delas?

Diplomatas de países do Sul Global relatam ter dificuldade de entender se estão negociando com os representantes do Norte Global ou com o Secretariado da OMS – que deveria, na verdade, estar cumprindo um papel de mediação e facilitação das conversas. O central, apontam, não é abstratamente fechar o Acordo até maio, mas concluí-lo em bons termos.

De acordo com Lauren Paremoer, “o Grupo pela Equidade já trouxe propostas concretas sobre temas como propriedade intelectual, produção local, transferência de tecnologia e aquisição equitativa de vacinas”, mas os diplomatas do Norte Global as ignoram e o secretariado da OMS dificulta sua introdução nas negociações.

Nenhum ator dessas conversas admite estar bloqueando propostas urgentes – e todos defendem, em seus discursos, a equidade na Saúde. Porém, “é preciso ir além das declarações gerais”, adicionou Rachael Crockett. “A equidade não deve servir de slogan, mas de objetivo real das negociações”, ela pontua.

Que Acordo das Pandemias surgirá?

Nesse ritmo, dizem os especialistas, é possível que haja êxito em concluir algum Acordo das Pandemias até maio – mas não o que os povos do mundo precisam. 

“Todo o sentido do Acordo das Pandemias era exatamente romper com o status quo”, diz Rachael Crockett, mas sua redação perpetuará – mais pela inação do que por conter um conteúdo ativamente regressivo – o atual quadro de grandes desigualdades entre as nações na capacidade de responder a cenários pandêmicos.

“A pressa em preservar a data-limite de maio pode fazer a política tomar precedência em relação às necessidades práticas” da população mundial, avalia Rachael Crockett. E com isso, “o Acordo das  Pandemias pode acabar contendo todas as palavras bonitas, mas ser inútil” para finalidades concretas, completou Mohga Kamal-Yanni, o que resultaria em mais uma oportunidade perdida para a Saúde Global – os estragos que a última pandemia causou em todo o mundo não trariam lições.

Por trás dos impasses, avalia Lauren Paremoer, “há uma divisão entre países do Norte e Sul, mas eles remetem principalmente a uma divisão entre os povos e as grandes farmacêuticas”.

O prazo é curto até a próxima Assembleia Mundial da Saúde, em maio – mas ainda há tempo para que os Estados e a OMS se posicionem decisivamente ao lado dos povos e garantam uma fisionomia mais avançada para o Acordo das Pandemias, potencialmente salvando milhões de vidas.

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