A aventura golpista ganhou novos contornos ontem

Depois da reportagem do Estadão, Braga Netto piora crise ao defender voto impresso em nota oficial

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Brasília, 7 de julho. O ministro da Defesa, Walter Braga Netto assina junto com os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica uma nota em tom de ameaça dirigida a um senador da República: “As Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano”. 

Brasília, 8 de julho. O que sabíamos: diante da repercussão negativa da nota, Braga Netto e Paulo Sérgio (Exército) telefonam para Rodrigo Pacheco (DEM-MG) que, depois, divulga que ambos defenderam “ponderação” e “apreço ao Senado”. É o suficiente para que o presidente da Casa considere o assunto encerrado. No mesmo dia, o comandante da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Junior, concede uma entrevista ao Globo que vai estampar a manchete do jornal no dia seguinte. Sustenta que “a nota foi dura como nós achamos que devia ser”, pois seria um “alerta às instituições”. Perguntado sobre o caráter golpista do caso, diz a célebre frase: “Homem armado não ameaça“.

O que não sabíamos daquele mesmo 8 de julho, mas foi revelado pelo Estadão ontem, piora em vários graus o que já era visivelmente ruim. Em uma reunião com alguém descrito como um “importante interlocutor político” e “dirigente partidário”, Braga Netto teria passado o seguinte recado ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PL-AL): “O general pediu para comunicar, a quem interessasse, que não haveria eleições em 2022, se não houvesse voto impresso e auditável. Ao dar o aviso, o ministro estava acompanhado de chefes militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica”, descreve o jornal, que ouviu fontes da política e do Judiciário nas últimas duas semanas. 

Ainda de acordo com essa apuração, depois de receber o recado, Lira dividiu com um “seleto grupo” que a situação era “gravíssima” e o momento preocupante. E, diante do que considerou uma ameaça de golpe, procurou Jair Bolsonaro. Em uma “longa conversa”, disse ao presidente – que naquele mesmo dia, no começo da tarde, tinha declarado “ou fazemos eleições limpas no Brasil ou não temos eleições” – que não embarcaria na aventura golpista.  

O pano de fundo do recado de Braga Netto e da ameaça de Bolsonaro era a discussão do voto impresso, que acontece em uma comissão especial da Câmara. A princípio, o governo tinha maioria para passar a proposta de emenda à Constituição que prevê a mudança – e se tornou central na estratégia bolsonarista de descrédito das instituições democráticas. Mas três ministros do Supremo – Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso – haviam conseguido virar o jogo no fim de junho, depois de se reunirem com 11 dirigentes partidários.  

Depois da conversa com Bolsonaro, Lira fez postagens nas redes sociais em defesa da democracia. E, segundo a reportagem, foi a partir daí que ele ressuscitou a pauta do semipresidencialismo. 

Em reação à reportagem, choveram notas de repúdio de congressistas, políticos locais, entidades de juristas… Foram muitas, mas a essa altura do campeonato, são uma resposta mais tímida do que o problema exige. Lira não negou o conteúdo da matéria, se limitando a afirmar que haverá eleições em 2022.  

Já Braga Netto chegou a classificar as informações como “invenção”, disse que “não se comunica com os presidentes dos Poderes, por meio de interlocutores”. Em nota oficial, afirmou que a reportagem, vejam só, é que “gera instabilidade entre os Poderes da República” por veicular “desinformação”. Tudo no script já que ninguém imaginava que ele confirmasse a revelação.

Mas a nota acabou escalando a crise porque Braga Netto colocou mais lenha na fogueira do golpismo: “Acredito que todo cidadão deseja a maior transparência e legitimidade no processo de escolha de seus representantes no Executivo e no Legislativo em todas as instâncias”, afirmou. “A discussão sobre o voto eletrônico auditável por meio de comprovante impresso é legítima, defendida pelo governo federal, e está sendo analisada pelo Parlamento brasileiro, a quem compete decidir sobre o tema.”

De acordo com a Folha, o apoio do voto impresso feito publicamente pelo ministro da Defesa fez crescer em alas do Judiciário e do Congresso a avaliação de que é necessário afastar militares de decisões políticas. Na visão de ministros do Supremo “e mesmo de alguns de seus subordinados na cúpula militar”, Braga Netto teria abraçado o papel de “provocador-chefe da República”.

Na análise de juristas do grupo Prerrogativas, a conduta do ministro é “absolutamente deformada” e “golpista” e merece uma apuração rigorosa. O Congresso articula a convocação de Braga Netto para prestar explicações.

Pachecou

A reação do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, à revelação do Estadão lembrou muito a postura de Rodrigo Pacheco diante da nota de Braga Netto e dos comandantes das Forças Armadas e da entrevista do comandante da Aeronáutica – com a diferença de que o caso, agora, é muitíssimo mais grave. 

“Conversei com o ministro da Defesa e com o presidente da Câmara e ambos desmentiram, enfaticamente, qualquer episódio de ameaça às eleições. Temos uma Constituição em vigor, instituições funcionando, imprensa livre e sociedade consciente e mobilizada em favor da democracia”, escreveu Barroso no Twitter.

Repetir que as instituições estão funcionando não vai fazê-las funcionar. Ao contrário. Já o presidente do Supremo, Luiz Fux, optou pelo silêncio – o que também é altamente problemático.

O vice-presidente do TSE, Edson Fachin, foi o único a colocar pingos nos is, constatando que o sistema eleitoral do país “encontra-se desafiado pela retórica falaciosa, perversa, do populismo autoritário” e que não é de se espantar que um “líder populista” deseje “criar suas próprias regras para disputar as eleições”.

Pelo que se pesca de veículos como ValorFolha e Estadão, há no Supremo a avaliação de que as ameaças dos militares não são factíveis porque, ao contrário de 1964, “não têm apoio das instituições para promover intervenção no Estado democrático” e, portanto, o golpe não passaria de um blefe. Aparece até a tese de que, no limite, tudo visa evitar a investigação de militares pela CPI da Covid. 

Não vai parar

Só que já foi repetido milhares de vezes que, mesmo que não resulte em levante dos quarteis e tanques nas ruas, o golpismo de Jair Bolsonaro e dos militares mina a democracia brasileira e tem consequências graves. Normaliza o inaceitável. Além disso, não vai parar.

Basta analisar o que disse Jair Bolsonaro ontem. Questionado sobre o caso, ele se negou a comentar e indicou: “Na nota dele [Braga Netto] está feita a resposta, ok?” Como se a nota não fosse escandalosa e, por si só, merecesse explicação.

Além disso, o presidente da República fez mais um ataque ao processo eleitoral, voltando a repetir que a apuração dos votos não pode ser feita por “meia dúzia de pessoas, de forma secreta” em uma “sala lá do TSE”.

Aí o TSE responde, rebate as mentiras de Bolsonaro, explica pela milésima vez como funciona a apuração. E terá de fazê-lo de novo e de novo – mas fica claro que, sozinho, não pode com a campanha de destruição conduzida pelo presidente e seus aliados.

Autoengano

E, de acordo com o Valor, uma ala de ministros do STF acredita que um inquérito para investigar formalmente as declarações de Bolsonaro pode “colocar um ponto final na retórica antidemocrática do governo”. 

Tirando o corpo fora

Se é verdade que a peça oferecida pela reportagem do Estadão torna o quebra-cabeças da crise muito mais claro, também aparece em alguns lugares a interpretação de que a ida do senador Ciro Nogueira (PL-PI) para a Casa Civil deveria ser lida à luz das tentativas do Centrão de moderar o governo Bolsonaro, escanteando militares, etc. O que, lembremos, se dizia sobre os próprios militares no começo do governo.

Também pipocam, aqui e ali, fontes militares anônimas que se dizem incomodadas com a postura de Braga Netto, alinhado completamento ao presidente Jair Bolsonaro. 

Mas tanto o Centrão, quanto os militares estão consorciados com o bolsonarismo, gozam das vantagens do poder – e, no caso do Centrão, se aproveitam da fragilidade do governo usando os 130 pedidos de impeachment como moeda de troca para abocanhar mais nacos do Executivo. 

A transubstanciação das três forças é totalmente funcional aos propósitos que perseguem e, ontem, Bolsonaro resumiu assim o momento político: “Eu sou do Centrão”. 

E nunca é demais reforçar: amanhã tem nova rodada de manifestações contra o governo.

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