Em cena, a escrita sem fim de Marguerite Duras

Espetáculo teatral em cartaz no Sesc Consolação entrelaça personagens e motivos das obras de Marguerite Duras situadas na Índia e Indochina.

Foto de Bruna Pezzutti.

Por Maurício Ayer

“A história de minha vida não existe”, respondeu Marguerite Duras, peremptória, a uma jornalista que lhe propôs escrever sua biografia. Mas acrescentou em seguida que estava interessada em ler o que a jovem autora escreveria a seu respeito, a sua história. Mais do que negar a “realidade factual”, ainda que reconhecendo que ela é tão frágil quanto a memória e o esquecimento, Duras chamou a atenção para um ponto central de sua poética: entre o vivido e o narrado, ela não enxerga uma cisão, ao contrário, há um trânsito, alimentação mútua, e vastas regiões de indistinção. E também que as histórias pertencem tanto a quem as vive quanto a quem as conta. Histórias que, a rigor, só existem porque alguém vai lê-las, ouvi-las, assisti-las.

É nesse fio de navalha entre o vivido e o escrito que acontece Marguerite mon amour – Recital.Duras, espetáculo teatral criado pelo Grupo Macunaíma/CPT. Assim, Marguerite adolescente – que vive, na virada dos anos 1920, na Indochina, um amor proibido –, seu amante chinês, a mãe, Anne-Marie Stretter (a pálida embaixatriz francesa com seus incontáveis amantes), a mendiga louca e o vice-cônsul de Lahore, personagens que participam da vida e da escrita de Duras, presentes em mais de uma obra, estão também no Recital. Em meio às falas, gestos, cenas, música, objetos, figurino, surgem passagens de Uma Barragem contra o Pacífico, Cinema Éden, O Vice-cônsul, India Song, A mulher do Ganges, O amante, O amante da China do Norte, entre outros livros, peças de teatro e filmes escritos e realizados por Duras.

Porém, mesmo os leitores e espectadores durassianos mais fiéis poderão ser traídos pela memória. Pois o espetáculo é como um pequeno universo que se desdobra a partir de um ponto, talvez a única coisa permanente em uma obra em que tudo é transitório: o lugar onde a dor e o amor formam uma só palavra, em torno do qual gravita uma fantasmagoria viva – como a dança de fragmentos melódicos em música de câmara.

Motivos e personagens se encontram como ressonâncias que uns e outros provocam entre si. São ecos, invenção de um passado remoto ou próximo, a formar aquilo que Duras descreveu em India Song como uma “melopeia feita de cacos de memória, e no decurso da qual, às vezes, uma frase emergirá, intacta, do esquecimento”. O delicado emaranhado desse espetáculo, sem dúvida, só pode ter sido o tecido de um longo e amoroso convívio do diretor e do elenco com Marguerite Duras e suas criações.

A vida escreve o tempo todo. A bem dizer, para Duras, não faz mesmo qualquer sentido essa separação entre viver e escrever. Não porque se escreve a partir da vida, mas porque a própria vida decorre do escrever: não é sobreviver, mas presença intensa, testemunho singular do que é singular, dor compartilhada como amor, o avesso do banal.

Por tudo isso, sinto que Marguerite Duras é uma presença nesse Recital e continua a escrever através dele.

Informações sobre o espetáculo: 

Título: Marguerite, mon amour – recital.Duras

Com Nara Chaib Mendes, Jui Huang, Thais Velasques, Kaio Pezzutti, Rafaela Cassol, Fabio Martinelli e Evandro Netto.

Direção: Emerson Danesi

Espaço CPT/SESC – SESC Consolação – 7º andar

Quintas às 20h até 24 de agosto de 2017.

Classificação Indicativa: 16 anos.

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2 comentários para "Em cena, a escrita sem fim de Marguerite Duras"

  1. ADRIANA GONCALVES PIO disse:

    Muito bom!
    Fico aqui, com água na boca. Pois vivo na Paraíba, o que faz impossível assistir a este espetáculo. Também sou uma fã e interessada na vida e obra da Marguerite Duras.
    Viva o teatro!

  2. ADRIANA GONCALVES PIO disse:

    Muito bom!
    Fico aqui, com água na boca. Pois vivo na Paraíba, o que faz impossível assistir a este espetáculo. Também sou uma fã e interessada na vida e obra da Marguerite Duras.
    Viva o teatro!

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