Um tubarão ronda a cachaça de Paraty

Grupo empresarial tenta se apropriar da reputação da Maria Izabel, uma das mais icônicas caninhas do país, produzida artesanalmente há décadas na cidade que é historicamente identificada ao produto. Por que resistência tem interesse cultural

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Por Dirley Fernandes para o Devotos da Cachaça  

O JCPM, conglomerado fundado pelo empresário pernambucano João Carlos Paes Mendonça, insiste em batizar uma linha de vinhos com o nome Quinta Maria Izabel.

O registro da marca de vinhos, no entanto, foi indeferido pelo INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial). Segundo a análise do instituto, “a marca reproduz ou imita registros de terceiros, sendo, portanto, irregistrável de acordo com o inciso XIX do Art. 124 da LPI”.

Porém, amparada em uma decisão liminar da 2ª Vara Empresarial da Comarca do Rio de Janeiro, a linha de vinhos vem sendo comercializada livremente pela importadora Ridouro.

“Eles me procuraram. Ofereceram dinheiro para usar a marca, reconhecendo que a marca era minha”, conta Maria Izabel Gibrail Costa, a produtora da Cachaça Maria Izabel. “Mas dinheiro não me interessa muito. Eu prezo muito meus valores. Nós não conseguimos beber o vinho. Eu disse a eles que não tínhamos gostado e que não me interessava associar aquele produto com a minha marca”.

A produtora de cachaça artesanal de Paraty, Maria Izabel Gibrail Costa

“A marca é o bem mais valioso do século XXI”, diz Rodrigo Moraes, advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), um dos mais destacados profissionais da área de Propriedade Industrial do país. Ele acaba de assumir a causa da Cachaça Maria Izabel. “O fogo pode consumir o sítio onde está o alambique da Maria Izabel e ela vai reconstruir. Mas o prejuízo para a marca pode ser fatal”, diz.

Para o devoto leitor entender todo o imbróglio agora é preciso paciência e atenção porque é uma história complexa. Vamos contá-la em ordem cronológica, com direito a um ou outro salto.

Maria Izabel começou a alambicar a Cachaça Maria Izabel em 1996. Produzida de forma totalmente artesanal em um sítio com ares paradisíacos, onde outrora só se chegava de barco, e tendo a própria Maria Izabel como alambiqueira, a Cachaça Maria Izabel conquistou fama Brasil afora como um dos mais finos produtos da artesania cachaceira. Em 2007, foi uma das autorizadas a usar o selo da Identificação Geográfica de Paraty. Em 2014 e 2016, foi listada entre as 50 melhores do país no I e no II Ranking Cúpula da Cachaça.

A marca, no entanto, demorou a ser registrada. Apenas em outubro de 2012, o INPI concedeu o registro à empresa de Maria Izabel (Alambique Paratycana). A marca está enquadrada na classe 33 (bebidas alcoólicas, exceto cervejas; preparações alcoólicas para fazer bebidas).

O vinho da Quinta Maria Izabel

O empresário João Carlos Paes Mendonça

Aí, entra na história o Grupo JCPM, ou mais exatamente o empresário João Carlos de Paes Mendonça. Presidente do grupo proprietário de 12 shoppings espalhados pelo Nordeste, entre outros empreendimentos imobiliários, e do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação, além de negócios em setores os mais diversos, o empresário adquiriu uma quinta de 130 hectares na região portuguesa do Douro e ali começou a produzir vinhos.

O projeto nasceu em 2012. Em julho de 2013, ele entrou com pedido de registro da marca que leva o nome de sua propriedade: Quinta Maria Izabel.

O pedido foi indeferido em 2016. O escritório de advocacia Dannemann, Siemsen, Bigler & Ipanema Moreira entrou com recurso, mas o veto foi mantido pelo INPI, em decisão de 2018.

Àquela altura, o vinho Quinta Maria Izabel já tinha sido lançado no mercado brasileiro, com a marca sem registro. Segundo a JCPM afirmou em 2015, no momento do lançamento, o nome Quinta Maria Izabel era “para homenagear a mulher brasileira”.

“Com esse discurso e eles estão desprestigiando uma grande mulher brasileira. Pegaram a marca de uma inovadora da cachaça, desrespeitando uma empresária com notoriedade no ramo em que ela atua”, diz Moraes, que já entrou com recurso (embargos de declaração) para tentar derrubar a liminar que concedeu o direito provisório de uso da marca para a empresa portuguesa.

“Com tantos anos de Direito, não posso considerar nenhuma causa ganha”, diz Moraes. “Mas o INPI está do nosso lado”.

Negociação e WhatsApp no cartório

Voltando à linha do tempo. Após o INPI recusar ao JCPM o registro da marca Quinta Maria Izabel (com z, o que é uma forma bem menos encontradiça), Maria Izabel notificou o distribuidor que trazia os vinhos de Portugal. Mas não deu prosseguimento ao processo, já que isso acarretaria custos processuais dispendiosos.

No ano passado, o conglomerado resolveu insistir na regularização da marca e enviou um representante a Paraty. Sem esperanças de conseguir um registro junto ao INPI, queriam negociar um acordo de uso conjunto da marca.

Em 22 de julho do ano passado, Luiz Augusto de Ramos Leal, que vive em Recife (PE), visitou o Sítio Santo Antônio, em Paraty, acompanhado da esposa – que perdeu os óculos nesse dia.

O administrador propôs, em nome da Quinta Maria Izabel, um valor de R$ 100 mil a R$ 150 mil pela autorização do uso da marca Maria Izabel nos vinhos da empresa. O parâmetro da proposta previa um faturamento de R$ 2 milhões com as vendas dos vinhos.

Ao fim da visita, ele presenteou Maria Izabel, que estava acompanhada da filha Maíra, com uma caixa dos vinhos produzidos no Douro.

“Ele chegou tentando mostrar o poder do Paes Mendonça… É dono disso, é dono daquilo… E comentou que se eu não aceitasse o acordo, o empresário iria aceitar de bom grado e tentar outra coisa”, conta Maria Izabel. “Depois que ele se foi, a gente abriu o vinho para experimentar”.

Alambiqueira de paladar apurado, que decide a hora de engarrafar a cachaça que matura nos barris do sítio pela degustação, Maria Izabel, ao provar o vinho lusitano, descartou não só a bebida, como qualquer possibilidade de um acordo.

“O vinho é horrível. Não tem corpo. É mais escuro que um rosé, mas não chega a ser um tinto. E ainda, ácido. Primeiro, eu tomei e não consegui dar um segundo gole. Aí, deixamos respirar. Tentamos de novo e não conseguimos. Descartamos o da taça e o da garrafa”.

Cobrada por uma resposta, Maria Izabel enviou uma mensagem para Luiz Augusto Leal. “Eu não tenho interesse mesmo que use meu nome na marca. Vou ser sincera, a gente não conseguiu tomar meia taça do vinho”.

Dois meses após ser recebido no Sítio Santo Antônio, Luiz Augusto Leal levou seu celular ao 8ª Tabelionato de Notas do Recife e requereu, em nome da Quinta Maria Izabel, a transcrição das conversas mantidas com Maria Izabel pela WhatsApp, em um gesto de deselegância que deixou a alambiqueira perplexa.

Liminar na Justiça Estadual

Enquanto Leal tentava um acordo financeiro, os advogados da empresa agiam nos tribunais. A Quinta Maria Izabel entrou com uma ação na Justiça Federal pedindo a nulidade do indeferimento da marca pelo INPI.

Enquanto o processo corria, os advogados entraram com uma Ação Declaratória de Não Infração de Marcas com Pedido de Tutela de Urgência na 2ª Vara Empresarial do Rio.

“Isso é um grande absurdo. Significa que eles podem seguir usando uma marca indeferida sem cometer uma infração. Eles não informaram na petição que havia um processo na Justiça Federal e nem que o registro havia sido indeferido pelo INPI. Tiveram decisão favorável. Nós já apresentamos embargos e vamos, na próxima semana, apresentar contestação na Vara Empresarial. Depois, faremos a contestação na Justiça Federal”, diz Moraes.

Nos embargos de declaração, o advogado alega que só a Justiça Federal teria competência para conceder uma liminar que coloca em questão o ato administrativo do INPI. “Essa decisão não impede minha cliente, Maria Izabel, de usar a marca na cachaça, só autoriza a outra parte a usá-la nos vinhos. Mas pode cair a qualquer momento. E vai cair. E depois essa ação vai ficar suspensa até a decisão da Justiça Federal”.

Enquanto Maria Izabel tenta defender sua marca, a Ridouro, com sede em Recife (PE), segue comercializando o Quinta Maria Izabel Branco por R$ 306 a garrafa – ou R$ 301,40 no boleto.

“Eu posso criar uma Cachaça Miolo? Não posso… Você só pode ter o mesmo nome em classes que não gerem confusão”, ressalta Moraes. “Não estamos falando de um produto desconhecido, é uma cachaça que construiu ao longo do tempo a sua notoriedade. E vamos demonstrar isso”.

Em tempo: o escritório Dannemann, Siemsen, Bigler & Ipanema Moreira ganhou, em nome da Diageo, dona da marca de whisky Johnnie Walker, uma causa contra a Cachaça João Andante, alegando que os produtos – cachaça e whisky – são afins. No processo, eles alegam risco de “diluição e vulgarização da marca”.

Agora, eles alegam exatamente o oposto para defender o uso da marca Quinta Maria Izabel. Dizem que cachaça e vinho são produtos sem semelhança, ainda que classificados na mesma categoria pela autoridade de proteção empresarial do Brasil, o INPI.

Procurada pela reportagem do Devotos para um posicionamento da Quinta Maria Izabel, a Dannemann, Siemsen, Bigler & Ipanema Moreira disse, por meio do advogado Caio Richa, que não se pronunciaria sobre os processos “porque isso pode adentrar questões estratégicas do cliente” e considerou que a comparação entre os dois processos – o da Johnnie Walker e o da Maria Izabel – são “elucubrações, conclusões da sua lavra”.

Enquanto isso, nessa quinta-feira, Maria Izabel seguia rotulando manualmente mais um lote da Cachaça Maria Izabel. “Estou muito angustiada com tudo isso. Mas muito emocionada com o apoio que estou recebendo”, disse.

Nesta casa, em seu sítio à beira-mar, Maria Izabel envelhece e engarrafa a cachaça que leva o seu nome. Foto: Maurício Ayer
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