A história e as estórias da cachaça

Projeto Literatura Brasileira & Cachaça envolve pesquisa, palestras, aulas-espetáculo, publicações e muita degustação da bebida brasileira, para compartilhar informações originais e inéditas

Adentrar o labirinto das letras em busca da preciosa água-da-vida brasileira – levando, claro, um cantilzinho no embornal, cheio do nosso elixir, pra aquecer o peito neste caminho tão tortuoso quanto feliz. Colher todas as imagens, os cantos, as entonações, histórias e estórias, tudo que encontrar pelo caminho. Com paciência e cautela, com muita intensidade mas nenhuma pressa, começar a compor o mosaico da presença da cachaça na literatura brasileira. A partir daí, entender como a literatura canta a história, como a história ilumina as letras. E degustar cada encontro – harmonizando com as nossas reais e excepcionais caninhas, tão diversas e qualificadas quanto a nossa produção literária.

Minha intenção neste primeiro parágrafo era sintetizar o que é o projeto Literatura Brasileira & Cachaça, que inaugurei em setembro de 2017, com uma palestra sobre Guimarães Rosa em um espaço cultural em São Carlos, no interior de São Paulo. Mas é só eu começar a falar e a escrever sobre esse projeto, que é um projeto de vida, e a síntese vai pro vinagre, já não consigo conter o brincar com as palavras, como quem abre com os amigos uma garrafa de excelente cachaça e nem se dá conta quando ela já passou da metade. Porque o campo é rico e a colheita é farta: a literatura brasileira é atravessada pela presença da cachaça, nos mais diferentes contextos, ativando os sentidos mais diversos. Assim como toda a nossa história e toda a nossa cultura.

A ideia surgiu quase naturalmente, juntando duas paixões. Sou pesquisador e professor de literatura por profissão – além de tradutor, escritor e editor, e jornalista quando precisa. Comecei neste semestre a dar aulas de Literatura Francesa na FFLCH/USP. E a cachaça é uma paixão antiga, que uns 5 anos atrás eu resolvi tratar com mais seriedade. Então fiz o curso de sommelier de cachaça no SENAC com o professor Jairo Martins, fiz outros cursos e comecei a pesquisar mais e mais o universo da bebida. Jairo preparou um curso muito completo, que nos apresentou da produção ao comércio, da história à gestão, com passagens pela cultura e, claro, muita degustação, de dezenas de garrafas, para conhecer com/em todos os sentidos o destilado brasileiro.

Mais que rapidamente me perguntei: quais são os livros, filmes, estudos, etc. sobre os encontros de literatura e cachaça? Partindo dos geniais Câmara Cascudo e Gilberto Freyre, com suas contribuições inestimáveis para uma sociologia e etnologia da cachaça, o que mais existe? Descobri que há referências em alguns livros, claro, mas não encontrei nenhum estudo sistemático e consequente, com a amplitude que o tema exige. O que me deparei foi com um imenso universo a ser explorado – e, na verdade, uma gigantesca tarefa a se fazer para que a gente possa conhecer melhor este aspecto tão fundamental da história cultural brasileira. Fuçando internet adentro, a começar pelo importante Mapa da Cachaça, segui em frente, e fui encontrando dezenas (ou talvez centenas) de pequenas referências à cachaça, causos, músicas, anedotas, lendas e por aí vai. Achei que eu também poderia dar a minha contribuição.  

Então concebi um caminho para começar um processo de pesquisa de longo prazo, mas cujos resultados eu já pudesse começar a compartilhar desde logo. Selecionei um conjunto de autores e autoras dentre os mais importantes de nossa literatura, e me propus a mapear, em suas obras, onde e de que jeito a cachaça aparece. Em setembro de 2017, como contei, fiz um primeiro encontro em forma de palestra com degustação em São Carlos, e o retorno que eu tive daquela experiência me deu confiança, me fez acreditar que valia a pena apostar na proposta.

Foi assim que defini os contornos da temporada 2018 dos Encontros de Literatura Brasileira & Cachaça, onze no total. E me pus a caminho. Em parceria com Outras Palavras, La Matrioshka e o Ateliê do Bixiga, fechei um calendário, e assim comecei, no dia 3 de março, a compartilhar com pessoas diversas as coisas que ia descobrindo. O primeiro foi sobre José Lins do Rego, uma escolha quase óbvia, não é mesmo? Como não começar procurando as figuras da cachaça em livros como Menino do Engenho ou Fogo Morto? A programação – em parte já feita até aqui e que será cumprida até dezembro – ficou assim:

3 de março • José Lins do Rego: Por dentro do engenho

25 de março • Graciliano Ramos: Em Busca da Aguardente Perdida

15 de abril • João Cabral de Melo Neto: A Lição do Canavial

19 de maio • Chico Buarque: Falando Alto Pelos Botecos

16 de junho • Cecília Meireles: Cachaças Inconfidentes

22 de julho • Antonio Callado: A Revolta da Cachaça

11 de agosto • João Bosco e Aldir Blanc – Glória à Cachaça

15 de setembro • João Guimarães Rosa: A Cachaça e o Labirinto da Língua-Fera

20 de outubro • Jorge Amado: Água da Vida e da Morte

10 de novembro • Mário de Andrade: Cachaças Interessantíssimas

8 de dezembro • Ary Barroso e amigos – Na Batucada da Vida

Para cada encontro, leio de uma a duas dezenas de livros, tanto os livros do/a próprio/a autor/a quanto alguns livros de crítica ou mesmo, em alguns casos, de história, obras que possam enriquecer e dar suporte às leituras. Então organizo meus achados para compartilhar com as turmas. Cada encontro é único, mas há de um modo geral dois formatos: as aulas interativas e as aulas-espetáculo, ambas com degustação de duas a três cachaças diferentes a cada encontro. Nas aulas interativas eu seleciono trechos das obras, lemos juntos, e descobrimos na leitura os sentidos e funções da cachaça naquelas obras. Trago as análises que faço previamente para compartilhar, mas sempre construímos outras leituras em tempo real. As aulas-espetáculo são diferentes: aí eu preparo canções de grandes artistas da música brasileira que são interpretadas ao vivo, e então conversamos, discutimos, analisamos, contextualizamos.

Cada autor ou autora, ou seus livros e canções, torna-se um pretexto para degustarmos cachaças de uma região ou de um estilo específico. Quando lemos José Lins do Rego, degustamos as excepcionais aguardentes da Paraíba. Com Graciliano Ramos, ao ler Memórias do Cárcere, cachaças de Alagoas, Pernambuco e do litoral fluminense, acompanhando as desventuras do narrador. Com Guimarães Rosa, cachaças de Januária armazenadas em umburana, além de outras mineiras de excelência. Com João Cabral tomamos as tradicionais pernambucanas, em um pouco de sua diversidade. E por aí vai!

Alguns encontros foram particularmente ricos do ponto de vista dos diálogos com a história. Ao ler o Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, por exemplo, resgatamos a história do movimento de insurreição que ocorreu em Minas Gerais no século XVIII, para entender a presença da cachaça na vida cotidiana daquele período. Por exemplo, há uma história muito difundida de que os inconfidentes tomavam cachaça em suas reuniões como um gesto nacionalista, em oposição ao vinho português, mas há documentação história para afirmar isso? Qual a fonte? Fui atrás para saber.

Ou o caso da Revolta da Cachaça, episódio histórico relacionado com os engenhos da baía de Guanabara no século XVII, que foi evocado quando estudamos a obra de Antonio Callado. Afinal, de que se tratou essa revolta? Como ela se articula com a dinâmica econômica local e global daquele momento? Quais as pequenas e grandes razões que fizeram com que ela acontecesse? E os seus resultados políticos na formação do Brasil? Todas essas questões foram abordadas, num diálogo intenso entre os tempos da literatura e da história (e também do teatro), regado a excelentes cachaças do Vale do Paraíba fluminense.

O projeto está apenas começando. Hoje já levo esses encontros para outros espaços e outras cidades, onde há gente interessada em saborear literatura e cachaça. A convite das editoras independentes, apresentei um encontro sobre Chico Buarque e a cachaça em Paraty (RJ), durante a FLIP 2018, considerada a principal festa literária do país. Também apresentei em outros espaços de São Paulo e em outras cidades do interior do estado, como São Carlos e Piracaia. A ideia é continuar levando esses encontros para todos os lugares onde haja pessoas interessadas em compartilhar conhecimento e uma boa caninha brasileira.  

E, evidentemente, essa pesquisa em breve se desdobrará em publicações – além dos textos publicados neste espaço.

Estão todos convidados a seguir junto essa viagem!

    

Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OutrosQuinhentos

Leia Também:

3 comentários para "A história e as estórias da cachaça"

  1. Ninno Amorim disse:

    Olá.
    Dá uma olhada na tese de doutorado que defendi no programa de pós-graduação em antropologia da UFPE.
    Estou trabalhando para transformar a tese em livro.
    Antropologia da Cachaça: um estudo sobre produção, circulação e consumo do destilado brasileiro. Ninno Amorim

  2. Really great article – I was thinking about a similar article which I will probably still write, but from a slightly different angle. Thanks for sharing this with your readersObviously a lot of others appreciate it too!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *