Pode a ópera celebrar o múltiplo e o rebelde?
Singular e surpreendente, “Ritos de Perpassagem” tem como tema um Pitágoras revolucionário e feminista. E flui não segundo um enredo, mas por meio de ritos que fazem do teatro um templo partilhado. Será encenada em SP, este fim de semana
Publicado 25/09/2019 às 17:46 - Atualizado 25/09/2019 às 20:12
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Ritos de Perpassagem (ópera)
De Flo Menezes, com Orquestra do Theatro São Pedro
Sexta e Sábado (27 e 28/9), às 20h
Domingo (29/9), às 17h
Rua Barra Funda, 161 – São Paulo/SP (mapa) – Metrô Marechal Deodoro
Ingressos grátis para participantes de Outros Quinhentos — saiba mais aqui
Na semana de 23 a 29 de setembro, o Theatro São Pedro, tradicional casa de ópera de São Paulo, oferece ao público um espetáculo nada ordinário: Ritos de Perpassagem, uma encomenda do teatro, por meio de seu diretor artístico Paulo Zuben, ao compositor Flo Menezes – que também é professor de composição na UNESP e diretor do importante Studio PANaroma de Música Eletroacústica.
Ritos de Perpassagem surpreende desde logo por ser um espetáculo múltiplo. Como se opera fosse um termo entendido também em sua acepção etimológica, do latim: o plural de opus, uma obra em obras – tanto por ser várias obras em uma, quanto por evidenciar seu próprio tecido construtivo. Não tem propriamente um enredo, mas sim uma narratividade disseminada em situações cênicas, que funcionam ao modo de “ritos” – agnósticos, ou talvez “agonísticos”, como quer o autor. O que isso quer dizer? Os momentos são sagrações; o teatro, um templo compartilhado. As vivências traduzem em ação sonora (instrumental, vocal e eletroacústica), visual, textual e cênica um itinerário narrativo que atravessa a vida de Pitágoras e de seus seculares desdobramentos no pitagorismo, produzindo o radical convívio de possibilidades que não convergem para uma história unitária.
Pode causar estranhamento que uma ópera ponha em cena Pitágoras e o pitagorismo. Cadê a bela soprano e o herói tenor, ameaçados pelo maquiavélico barítono? O relacionamento do triângulo amoroso terá dado lugar às relações geométricas dos triângulos de Pitágoras e das elipses dos corpos celestes do pitagórico Johannes Kepler? Sim e não. Pitágoras é o homem que liderou a criação da primeira comunidade igualitária do ocidente, em Krotona, uma sociedade fundada na amizade e na partilha dos bens e onde as mulheres tinham voz igual à dos homens, em contraste total com as cidades gregas de então. É também o precursor do vegetarianismo, o criador das palavras “filosofia” e “filósofo”, o formulador de muito da base da geometria, da astronomia, da acústica e da harmonia musical. E também um rebelde que, como tantos, terminará sua biografia assassinado por razões políticas.
Entrementes, Pitágoras torna-se uma espécie de entidade transcendente. O filósofo seria para a história como um “neutrino”, esta partícula neutra que viaja quase à velocidade da luz e que atravessa todos os corpos – só que sua presença viajaria a uma lentidão tremenda, a percorrer os milênios. As situações cênicas são atravessadas por sua presença – ora audível/visível ora não – sempre mutável. Tema constante, o atravessamento indica o transcender como característica definidora do humano: o homem e a mulher são capazes de descobrir o que não se conhecia antes, delimitando as margens, e no momento mesmo que o fazem, vislumbrar-lhes o través, que sequer faz sentido ainda, a terceira margem.
A figura de Kepler, o “penúltimo” dos pitagóricos – já que ao fim e ao cabo #SomosTodosPitagoras –, surge primeiramente como aquele em cuja trajetória está o atravessamento dos próprios postulados de seu mestre inspirador, já que, para ser fiel a Pitágoras descarta a órbita circular dos planetas vislumbrada pelo grego e propõe as órbitas elipsoidais. Corajoso formulador de teorias de ruptura, viu-se, ele também, exposto à tacanhice de seu tempo, obrigado a defender sua mãe da acusação de bruxaria; ela resistiu até o fim, mesmo sob tortura, e terminou por ser absolvida. É esse conjunto que levou Karl Marx, quando questionado pelas suas próprias filhas sobre quem seriam os seus heróis, a responder: Espártaco… e Kepler.
O espetáculo pode ser descrito como esse permanente recolocar das dimensões éticas e estéticas da ciência, da religiosidade, da arte, da música, do intelecto e dos afetos, desde o nível subatômico até as galáxias. Um multiverso percutido de todos os lados, um bosque quântico em que as personagens e os episódios são móveis, plásticos, transitivos. Flo atravessa o dilema dual hamletiano na direção da terceira margem e sai-se à la Riobaldo: tudo é e não é. Em vez da linearidade do progresso, o compositor propõe o transgresso: certamente um olhar no porvir, consciente da história, mas entendendo que os percursos são cheios de retomadas, rebatimentos e saltos quânticos.
Reencontrar o tempo passado, retemperado pelos devires do agora, também pode ser um radical salto num futuro.
O compositor, a ópera e o público
O espetáculo insere-se num momento de maturidade de um compositor mundialmente atuante. Flo Menezes, conhecido sobretudo como um “músico eletroacústico”, embora a tecnologia sempre tenha sido para ele mais um recurso do que a circunscrição de um campo, incorpora elementos teatrais em diversas de suas obras, desde o início de sua carreira. Para citar apenas um exemplo, sua obra labORAtório faz do coro e solistas, em sua relação com a orquestra, um verdadeiro coletivo cênico. Neste campo, é evidente (e declarada) a influência do italiano Luciano Berio, talvez o compositor que mais longe tenha levado as experimentações com a voz e a teatralidade no universo da música.
Por outro lado, vale pensar algo sobre a nossa ópera. No Brasil, a ópera já foi uma forma de cultura e entretenimento muito buscada pelas classes médias de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, desde meados do século XIX até o início do século XX. Havia muitas casas de ópera que encenavam principalmente espetáculos vindos da Europa, que excursionavam por aqui e Buenos Aires. A abertura dos teatros municipais, juntamente com o Colón, marca uma mudança do estatuto da ópera, que passa a ser um evento tão social quanto cultural para as classes abastadas dessas cidades.
O Teatro São Pedro, mesmo com a ornamentação que busca o glamour, nem de longe chega na configuração palaciana dos municipais e guarda um pouco desse tipo de teatro que está ali, na calçada, não como uma corte onde se vai para desfilar, mas como pequeno templo da música e da arte… a um passo da calçada. A atual gestão, pela Santa Marcelina Cultura, ousa encomendar uma obra operística original e realizar integralmente sua montagem, o que significa, na prática, propor um questionamento do lugar do gênero hoje em nosso universo cultural e social. A ópera seria uma cultura de outro tempo – ainda que atualizada em cenário, figurinos, iluminação e encenação –, como um museu musical? Ou pode ser um espaço de experiências estéticas e éticas, poéticas e políticas, formuladas hoje e para o hoje, plenamente mergulhadas nos devires de seu tempo? A fé – agonística, pois que conflituosa, atritante, tensa – de Flo Menezes é pelo segundo caminho, o que significa assumir plenamente o questionamento crítico do gênero e deslocar de seu centro cada aspecto da ópera tradicional, a partir da força de uma poética contemporânea.
Por um lado, há um voltar-se a um gênero bastante marcado pelo caldo estético e ideológico do século XIX. Flo, ao tomar a ópera nas mãos, não preserva qualquer compromisso com esse substrato, ao contrário, procura repensá-lo a partir das necessidades desse primeiro quartil do século XXI. A estruturação da narrativa, como dito, é o primeiro ponto completamente revirado. As situações cênicas são pensadas como campos significantes organizados em torno de um núcleo temático forte.
Um exemplo: no momento “Milagre dos Peixes”, embora o título evoque a passagem bíblica, o que se tem é o episódio atribuído à vida de Pitágoras, em que ele propõe um desafio a um grupo de pescadores. Se ele acertar o número de peixes arrebanhados na rede de pesca, os pescadores os libertariam preservando suas vidas; o filósofo acerta e cumpre-se o acordo. O episódio, de contornos mágicos, vem representar a defesa que faz Pitágoras do vegetarianismo, já no sexto século antes de Cristo. Este tema ganha uma construção cênico-musical, ou seja, uma configuração singular audioespacioverbivocovisual (expandindo a fórmula de James Joyce tão cara aos concretistas paulistas), envolvendo a ocupação dos espaços físicos e simbólicos e criando um ethose um pathospróprios a cada momento. Há falas de personagens, mas não propriamente diálogos – o logos não é dual, é antes um fluxo prismático que nuança o tema em seus diferentes aspectos, trazendo-os todos à tona em uma luminosidade iridescente.
Afinal, o que esperar de Ritos de Perpassagem? Creio que estar nessa plateia é uma maneira de atualizar o próprio estatuto de público. É vivenciar uma experiência sensorial “maximalista” (por oposição a minimalista), onde diferentes planos interagem sem convergir para uma unidade simplificadora. É curtir sonoridades inauditas e uma outra presença no espaço.
No momento histórico em que vivemos, quando os negacionismos e reducionismos parecem querer nos enredar e suspender, não resta dúvida que a verdadeira morte seria perder a capacidade de inventar o instante e o porvir. Então este espetáculo é também um lugar para descobrir-se pitagórico na capacidade de traçar órbitas rebeldes e não (necessariamente) (sempre) convergentes, e inventar um convívio com o múltiplo – em que a radicalidade é condição de existência.
SERVIÇO
Ópera: Ritos de Perpassagem
Flo Menezes
Com Orquestra do Theatro São Pedro
Ricardo Bologna, direção musical
Marcelo Gama, direção cênica
Flo Menezes, eletrônica
Raimo Benedetti, criação de vídeo
Tiça Camargo, visagismo
Mirella Brandi, iluminação
Participação:
Grupo Piap
Studio PANaroma
Coro Contemporâneo de Campinas
ELENCO
Marcelo Ferreira, narrador
Neue Vocalsolisten
Katia Guedes, soprano
Susanne Leitz-Lorey, soprano lírica
Truike van der Poel, mezzo-soprano
Daniel Gloger, contratenor
Martin Nagy, tenor
Guillermo Anzorena, barítono
Andreas Fischer, baixo
Ensaio geral: dia 25* de setembro (19h)
Récitas: 27 (sexta) e 28 (sábado) de setembro, às 20h
29 de setembro, domingo, às 17h
Local: Theatro São Pedro
Endereço: Rua Barra Funda, 161 – Barra Funda, São Paulo/SP
Ingressos: R$ 30,00 a R$ 80,00
Plateia central: R$ 80,00 (inteira) e R$ 40,00 (meia)
1º Balcão: R$ 50,00 (inteira) e R$ 25,00 (meia)
2º Balcão: R$ 30,00 (inteira) e R$ 15,00 (meia)
Vendas: bilheteria e internet theatrosaopedro.byinti.com
Formas de pagamento: Dinheiro e Cartões de Débito e Crédito
Classificação indicativa: 12 anos
Duração: Aproximadamente 2h40 (com um intervalo)
Capacidade: 636 lugares
Acessibilidade: Sim
*No dia 25 de setembro acontece o ensaio geral aberto ao público
Programação pedagógica:
23 e 24 de setembro, às 19h
Récitas pedagógicas
Local: Theatro São Pedro
Entrada franca
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