Por que resgatar o Marxismo Cultural

Após vasto mapeamento do termo, livro de Iná Camargo Costa sustenta: ele foi “criado” por Hitler, explorado pelo macarthismo e redescoberto pela “nova” ultradireita. É preciso recuperá-lo — para organizar uma frente cultural contra o fascismo

.

Por Lindberg Campos |Imagem: Frida Kahlo, O marxismo dará saúde aos doentes (1954)

Dialética do marxismo cultural, de Iná Camargo Costa (Editora Expressão Popular). Para comprá-lo, aqui. Leia textos da autora em Outras Palavras

Embora o setor acadêmico dominante tenha feito de tudo para difamar e rejeitar o gênero panfleto, não apenas por soberba e certamente por ingenuidade e paixão pela empulhação, a tradição dos trabalhadores jamais abriu mão dele, tendo inclusive formado um mestre no assunto: Vladímir Lênin. Entretanto, faz-se de grande importância ressaltar que, como qualquer outra espécie de literatura, a sua simples utilização não é o bastante, já que produzir um bom panfleto é algo enormemente difícil.

Por sinal, suspeito que o objeto dessa resenha tenha conseguido selecionar e organizar materiais relevantes de tal maneira que eles conseguiram cumprir essa tarefa, que é árdua. Foi depois de terminar a terceira leitura de Dialética do marxismo cultural (2020), de Iná Camargo Costa, que fiquei persuadido que, sem sombra de dúvida, ainda é possível aliar qualidade literária e conteúdo pertinente dentro de uma forma de maior circulação. De fato, o projeto editorial desse trabalho como um todo – desde a capa até o formato de “livrinho”, passando pela fonte em tamanho grande e pelas notas cuidadosas – é um ótimo exemplo de agitprop, pois demonstra uma clara intenção de submeter a unidade entre forma e conteúdo às necessidades do debate público mais amplo, municiando-o precisamente ao extravasar os limites da tão necessária propaganda socialista ou da sempre muito bem-vinda denúncia do capitalismo.

Mas, afinal, do que trata tal intervenção a essa hora brasileira? Iná diz a que veio logo no início da parte I:

Marx encerra o posfácio à segunda edição do livro O capital avisando que a dialética não se deixa intimidar por nada, além de ser essencialmente crítica e revolucionária. Esta é uma tentativa de seguir seu exemplo. Marxistas que honram a própria tradição não podem aceitar a caracterização do marxismo cultural formulada pelo inimigo, assim como Marx, Engels e os companheiros da Liga Comunista não aceitaram o fantasma brandido pela santa aliança anticomunista do século XIX e por isto em 1848 redigiram o histórico Manifesto Comunista justamente para definir comunismo nos seus próprios termo. Estamos há algum tempo desafiados a apresentar a verdade (…) sobre o marxismo cultural. (p. 13)

Como se pode ver logo acima, o que está em jogo é preencher de sentido real o que tem sido colocado como espantalho e atacar o monopólio da direita reacionária contemporânea em torno da definição do “marxismo cultural”. Isto é, desde o início observamos um convite ao leitor para “transformar a incriminação em arma de luta no front cultural” (idem). Como boa militante, Iná escreve de modo a contribuir para a luta do proletariado e, por isso mesmo, extrai as vantagens teórico-práticas que resultam do rastreamento das “incontáveis vítimas desde a primeira aparição do fantasma”, justamente com o intuito de resgatá-las “para o nosso time” (p. 14). Tal empreitada se mostra de grande interesse ao constatar que os processos complementares de radicalização e de ganho de posição na luta de classes por parte da reação têm como precondição uma “crise de direção” e a consequente incapacidade de “luta pela revolução” por parte do proletariado: “o fascismo só prospera em situações em que a classe proletária está desarmada em todos os sentidos, especialmente no plano político-programático” (idem). Efetivamente, a composição psicossocial da extrema direita, que busca armar um Estado policial para fazer com que os trabalhadores paguem o “adiamento da crise final”, deve muito ao poder de mobilização de dois dos fundamentos mais conhecidos da ascensão nazifascista, a saber, o racismo e o anticomunismo (p. 14-15). Assim, a historicização, ou exorcização, do que aparece como pura novidade ou aleatoriedade – o espectro do marxismo cultural –, tem o potencial de adicionar alguns tijolos à formação e à organização da revolução proletária, exatamente porque centra fogo em um dos fundamentos da reação que visa à destruição das condições mínimas de luta popular.

“A certidão de nascimento do marxismo cultural foi, portanto, lavrada por Hitler” em seu livro Minha luta (1925-1926), que se tornou best seller a partir de 1933, e cujo aspecto temático mais flagrante é a “declaração de guerra ao marxismo e à sua expressão cultural máxima que seria o bolchevismo” (p. 16). As correspondências entre a ruminação hitleriana e aquela dos astrólogos terraplanistas de hoje em dia são deveras chocantes e merecem ser mencionadas: “o marxismo, enquanto arma da conspiração judaica internacional, nunca pôde criar uma cultura (…) o bolchevismo na arte é a única forma cultural possível de exteriorização do marxismo (…) são produtos doentios de loucos degenerados” (p. 16-17). Comunismo, marxismo e bolchevismo são ligados à onipresente conspiração globalista e judaica, porém, hoje, provavelmente, “sino-russa”: “o marxismo emerge de uma doutrina (…) elaborada pelos judeus e os judeus respondem a 90% da produção cultural na Alemanha” para então dizer que “daí o combate (…) à social-democracia, pois esta organização se baseia na doutrina do judeu Karl Marx”, e finalmente concluir afirmando que “a social-democracia é contra a economia nacional e tem o objetivo de preparar o terreno para o domínio da alta finança internacional, controlada pelos judeus” (p. 17-18). Por enquanto, basta dizer, primeiramente, que a confusão entre social-democracia e bolchevismo e entre arte moderna e arte de esquerda funciona como unificação da reação à Revolução de Outubro de 1917 e à República de Weimar (1919-1933) (p. 18); em segundo lugar, tal retórica diz respeito àquela típica “falácia da generalização apressada”, cujo intuito é o de justamente produzir uma “abstração indevida”, que imediatamente interdite o debate (p. 59).

A segunda parte é dedicada às raízes estadunidenses desse ininterrupto enfrentamento preventivo a lutas por conquistas democrático-populares. Nesse sentido, Iná focaliza ao menos três momentos: o primeiro red scare, ou “ameaça vermelha” em português, que foi desencadeado, não por acaso, ao redor do fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), pelo Espionage Act, de 1917, e pelo Smith Act, de 1918, sendo aquele o “início à perseguição de militantes de esquerda” e esse a autorização de usar “todo tipo de violência contra as organizações dos trabalhadores” (p. 29); o segundo red scare pode ser pensado como uma forma mais ampla do que veio a ser mais conhecido como macarthismo, que compreende o período entre a metade dos anos 1930 e atravessa a década de 1960 e cujo sentido já nos é bastante familiar: “agora a prioridade passa a ser a luta contra a ‘infiltração comunista’ na administração pública, no sistema educacional e na indústria cultural” (p. 31); já “o red scare dos anos 1990 é uma versão muito pálida dos dois primeiros, mas não menos ameaçador, pois já conseguiu até eleger o atual presidente daquele país” (p. 37) e isso sem mencionar algumas de suas principais ações originais tais como as investidas “estadunidenses de contrainsurgência (…) principalmente na América Central, e (…) na Colômbia” (p. 29).

Por fim, Iná nos reconduz ao ponto de partida, isto é, à longa tradição de crítica e autocrítica do marxismo e à sua filiação ao enfrentamento contra todas as forças que se colocam em defesa da superstição, do medo, da morte e em oposição violenta à luta pela verdade e pela emancipação humana. Ela nos recorda que “períodos como o que estamos atravessando, de ascensão do fascismo, nos colocam diante da necessidade de recomeçar tudo de novo”, tendo como “régua e compasso” a memória do trabalho na “frente cultural com o próprio marxismo” (p. 45). Assim, nunca é demais insistir que os comunistas são realmente inimigos, principalmente se o termo não for vulgarizado até o ponto de não significar nada, já que sair chamando tudo o que se move de comunista é sinal forte de fraude – não se refere a nenhuma indistinção sistemática e verificável, seja ela programática ou prática. Em outras palavras, comunista é aquele que participa da luta de classes com o intuito de pautar a crítica da economia política e, consequentemente, de superar o atual regime de propriedade dos meios de produção, bem como as relações de produção capitalistas realmente existentes através da organização dos reais produtores, os trabalhadores. “Dialeticamente, para um marxista, o marxismo cultural (sub specie spectrum)”, diz Iná, “nada mais é do que a fusão operada pelo inimigo entre marxismo ocidental e materialismo cultural, numa operação ideológica que requenta, além de mal e porcamente reciclar, a marmita nazista” (p. 49).

O que tentamos fazer aqui foi um mapeamento das vigas que sustentam esse livro tão bem-vindo a ajudar a arejar um pouco o debate público brasileiro. Podemos somente citar a relevância dos incontáveis dados, as conexões bastante oportunas e as listas deveras reveladoras da ampla gama de inimigos eleitos sob o “fantasma do marxismo cultural” por parte da reação. Não se pode, contudo, deixar de salientar que os comunistas contam com um inimigo ainda mais antigo do que o regime do capital e que, não à toa, sempre auxiliou as forças antirrevolucionárias e contrarrevolucionárias a ganhar unidade em torno da estratégia histórica de impedir que os trabalhadores se auto-organizem e tomem consciência da sua centralidade no processo material de produção da riqueza: a metafísica religiosa em geral e a Igreja católica em particular:

Gramsci, em seus Cadernos do cárcere, tem inspiradoras análises dos desafios postos aos intelectuais pela presença e dominação cultural da Igreja católica na Itália, cuja condição de empresa privada que obteve status de Estado graças aos fascistas (pelo Tratado de Latrão em 1929), foi examinada no artigo “O Vaticano”, publicado na revista Correspondência Internacional em 1924. Ali Gramsciafirma sem meias palavras que o então papa Pio XI apoiou o golpe de estado do fascismo e declara que, além de contar em seus quadros com indivíduos de habilidade consumada na arte da intriga, o Vaticano é a maior força reacionária da Itália e um inimigo internacional do proletariado. (p. 50)

De fato, não é incomum flagrar os apóstolos da reação acusando o materialismo de querer politizar todas as esferas da vida e de efetuar uma verdadeira “terrenização do pensamento” por meio de seu ímpeto de atacar, simultaneamente, a naturalização da alienação e da exploração. Foi provavelmente isso que fez com que Iná chegasse a considerar o marxismo cultural como “herdeiro de todas as conquistas da ciência” e a reafirmar seu “compromisso irrevogável com a verdade – tanto a científica quanto a histórica – porque sabe que a mentira tem um papel reacionário” (p. 58). Finalmente, após listar algumas experiências culturais incontornáveis e que foram desencadeadas em momentos de revoluções, a camarada encerra sua intervenção retomando algumas linhas do “poeta que a plenos pulmões cantou a Revolução em prosa e verso”, Maiakovsky: “COME ANANÁS, MASTIGA PERDIZ. TEU DIA ESTÁ PRESTES, BURGUÊS” (p. 62).

Leia Também:

Um comentario para "Por que resgatar o Marxismo Cultural"

  1. Ricardo Cavalcanti-Schiel disse:

    “Marxismo cultural como herdeiro das conquistas da ciência”. Uau!!!
    Isso tá mais é com cara de religião…
    Na tentativa de depurar a caricatura putativa da alt right (o tal “marxismo cultural”), o que se faz aqui é tentar defender outra caricatura, falando, como sempre, em nome da “classe operária”.
    Isso de falar em nome de uma classe, de uma “raça” ou de um sujeito hipostasiado qualquer, só tem um grave problema objetivo: esse sujeito nunca é mais do que uma projeção.
    E Moisés falou aos seus: — Nós somos o povo eleito de Deus.
    Isso ainda embala muita gente! Só tem um problema: não tem nada de objetivo.
    Muitas vezes o messianismo não é muito mais do que descabelado.
    E será que a velha e anquilosada língua de madeira ainda encanta alguém???

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *