Ato Lula Livre no ABC
Manifestação com Lula no Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo, 9 de novembro 2019. Em ato massivo, o ex-presidente faz sua primeira fala oficial desde sua libertação.
Publicado 10/11/2019 às 13:46 - Atualizado 09/01/2020 às 00:36
Desci na estação Jabaquara do metrô para pegar o ônibus 288 para Ferrazópolis, onde é o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo: estava marcado um ato com Lula. Eram 12h30.
Na fila para comprar o bilhete no guichê, muita gente passando e operando as máquinas automáticas. Logo ouvi um “Lula Livre!”, que todo mundo repetiu com energia. Notei nessa hora que havia muitas camisetas vermelhas, com ou sem o rosto do metalúrgico. Alguém emendou um “Chupa Bolsonaro!”, que foi prontamente seguido de sonoro “Ei Bolsonaro, vai tomar no cu!”.
Eu tinha visto no dia anterior pela internet o momento da libertação de Lula, em Curitiba. Ele falou um pouco para o povo. Fez muitos agradecimentos, encontrou o pessoal da vigília Lula Livre, que esteve presente todos os dias de sua prisão. Também apresentou sua futura esposa, a Janja. O povo pediu aos gritos “beija, beija!”… e eles se beijaram.
Vi depois na internet um meme assim: “Sexta-feira, não é nem 7 horas e Lula já beijou”.
O noticiário ferveu com o evento de sua liberdade, e as redes de direita estavam histéricas, com inúmeros memes e mensagens furiosas. Como se analisa hoje, a soltura de Lula refaz a aliança moristas-bolsonaristas. Os lavajatistas estavam ressentidos com a pouca energia que o presidente dispende na defesa da Lava Jato. Bolsonaro na realidade acha em Lula um foco perfeito para desviar a atenção dos resultados catastróficos de seu governo. Mas para Sérgio Moro, trata-se de um evento humilhante.
A companheira A relatou que no seu bairro dos Campos Elísios, houve certo alarido contra Lula. Vi um vídeo onde o famoso prédio Copan irrompeu em Lulas Livres no início da noite paulistana, logo após a decisão do STF.
Mas na real, nas ruas, parece que predominou a normalidade e certa indiferença.
Fui checar o MASP em São Paulo, na noite de sexta depois da sessão do Supremo, no caso de haver uma manifestação espontânea. Lembrei que, quando Gilmar Mendes impediu que a presidenta Dilma nomeasse Lula ministro, a direita imediatamente tomou as ruas e se espalhou pela Paulista, que o então governador Alckmnin fechou de ponta a ponta. Foi nesse dia que o acampamento coxinha iniciou sua jornada de mais de 3 meses em frente da FIESP .
Cheguei ao museu mais de 22h. Havia pouco movimento, alguns sem-teto já arrumados para dormir, uns hippies com suas bancadas de artesanato, uma bateria de jovens mulheres (só chocalhos), um ou outro fotógrafo – e só. Um jovem tinha uma camiseta que dizia “Your girlfriend thinks I am hot”. Um grupo de uns 10 ciclistas passeou pelo vão, luzes acesas e capacetes fosforescentes. Foram chegando alguns poucos lulistas, mas deu para ver que não ia ter nada grande.
O MASP atrai muitos adolescentes que vão lá socializar, de noite, especialmente no espaço atrás do edifício, naquela beirada que que dá vista para a avenida 9 de Julho. Fui atraído pelo som de uma pequena fanfarra. Fui ver e eram umas 30 moças que ensaiavam seu grupo, duas delas de pernas de pau. Fiquei muito tocado de reconhecer que os metais e tambores executavam uma dolente melodia que é a canção Bam Bam, um dub-reggae de Sister Nancy. Sentei pertinho e me deixei levar pelo embalo jamaicano. De repente um menino pré-adolescente, negro, me ofereceu um baseado. No susto, recusei, mas fiquei encantado de ter ganhado a confiança não-solicitada de um jovem desconhecido.
Saí fora e caminhei para casa, e reparei nos outros jovens espalhados pela avenida, em geral estudantes, mas muitos namorados, abraçados e se beijando na calçada ou nos cantos.
O erotismo da juventude é indomável.
Comprei então meu bilhete no guichê da estação Jabaquara, sábado, e embarquei no ônibus que leva a São Bernardo do Campo, passando por Diadema. O ônibus estava aceso com a animação de muitos que também estavam a caminho do Sindicato. Várias camisetas vermelhas, bonés e bandanas e o clima era de alegria.
Mas ao meu lado sentou um casal de jovens, de uns 20 anos. Entre eles, fizeram troça do evento de hoje. Até discutiram brevemente o que ia ocorrer, mas exclusivamente em termos das redes: falaram de memes e vídeos, um deles intitulado “Lula x Bolsonaro”, e outro “Terceira Instância”. O moço falou “quero ver o pau comer” e postou alguma coisa em seu celular. Mas logo esqueceram o assunto e passaram o resto da viagem de uma hora falando, curiosamente, de questões trabalhistas dentro da empresa de material de construção onde trabalhavam. A certa altura, ele falou do programa do apresentador Celso Russomano. O programa trata de abusos contra o consumidor. “É legal que a gente aprende sobre direitos e também dá risada”. Ele contou, divertido, como tinha visto na televisão um gerente de loja fugindo de Russomano, que estava filmando em sua loja.
Desci na estação Ferrazópolis às 13h30 e o povo todo lá, elétrico, cantava o famoso “Olê olê olê olá”.
Cruzei a avenida pela passarela, onde encontrei o senhor da camiseta verde do “Porcomumas. Sinistra Critica Palestrina”. Faz décadas que deixei de acompanhar o futebol, mas como palmeirense de batismo, fiquei destruído com a intrusão de Bozo na celebração da conquista da taça deste ano. Decidi então cumprimentar o amigo palestrino. Sorrimos e segui caminho.
Vi inúmeros motoristas buzinando em apoio à massa de vermelho e branco que chegava à vizinhança do Sindicato. Claramente a luta social tem um significado local muito forte naquela região, operária.
Mas, contradizendo minha primeira impressão, um grupo de adolescentes passou fazendo pouco da emoção vermelha, e várias mulheres gritaram “O Lula está livre, babaca!”.
Nessa hora acendeu uma percepção da virada simbólica que a liberdade de Lula sinalizou. Recordo-me de ter ouvido muito – e visto estampado em camisetas coxinhas – a frase “O Lula está preso, babaca!”. Machucava muito, pois era ofensivo ao mesmo tempo estritamente verdadeiro.
Algo semelhante me sobrecaiu com o “Tchau, querida!”, que foi uma despedida de Lula a Dilma gravada no grampo ilegal vazado por Moro em 2016. Era muito acintoso ouvir a frase carinhosa nos lábios dos calhordas e bandidos que operavam a derrubada da presidenta. Então, hoje, ouvir a resposta perfeitamente simétrica à agressão verbal coxinha foi mágico.
Dobrei à esquerda para subir a João Basso, que é a rua do Sindicato e onde um carro de som estava instalado. Estava bem cheio de gente, desde a esquina da Marechal Deodoro. Logo vi um homem negro com um boneco de pano do Lula com faixa presidencial e gravata vermelha. Trazia o bonequinho aos ombros, como se um filho fosse. Achei o máximo.
Vi depois dois ou três ambulantes que vendiam o boneco: R$50. Hesitei mas não comprei.
Estava quente e abafado, então muito ombro, muito torso e muito pescoço à vista. Corpos jovens e velhos, bonés, bandanas e bandeiras no calor do asfalto. Vi bandeiras da constelação petista: CUT, CMP, MST, MTST, o estandarte da Juventude Manifesta além do PCdoB, PCO e PSOL – e o Coletivo Democracia Corinthiana.
Mas notei inúmeras camisetas que tinham um cunho mais pessoal e local: escolas de samba, clubes de futebol operários, associações de bairro, sindicatos e cooperativas – além de várias “Lute como uma garota”, CCCP e uma da banda Whitesnake.
O clima de festa a céu aberto ficou marcado em mim quando vi um homem sem camisa e com uma bandana vermelha Lula Livre passar por mim, suado, purpurinado e provavelmente alcoolizado, como se vê em blocos de carnaval. Logo compreendi que a purpurina se soltava de sua bandana, onde as letras Lula Livre cintilavam meio descascadas. Achei a cena bela e depois vi que bandanas iguais provocavam efeito semelhante em outros corpos.
Alguém me tocou o ombro com a mão e reconheci o companheiro P, que frequentemente encontro em manifestações, sempre com seu indefectível chapéu. Ele falou “como esperamos esse dia! Foi difícil” e nos abraçamos. De repente, chorei no mormaço de São Bernardo, e ele também desatou em choro. Eu tinha guardado as lágrimas para algum ponto emocionante do evento, talvez uma bela figura de linguagem, ou algum refrão pungente que cortasse os ares. Mas rolou que o abraço fez desatar as águas salgadas represadas já há tanto tempo, e solucei no ombro amigo, mais do que eu julgara capaz. Percebi como ando com os nervos à flor da pele e como meu corpo está a reter entulho afetivo. P e eu nos consolamos e nos despedimos.
O prédio do Sindicato faz esquina com a rua João Lotto, e a massa de corpos quentes era densa já a partir daquele ponto. O carro de som não estava longe e achei que valia a pena ficar lá. Até consegui encostar em um automóvel estacionado e não arredei pé, a despeito da pressão dos corpos que se me roçavam a céu aberto.
Restava agora fazer o que sempre é preciso fazer nessas horas: esperar. Eram 13h30 e entendi que tinha umas duas horas de pé pela frente.
A moça a meu lado disse que na TV estavam dando que Lula falaria às 14h, mas um amigo alertava-a de que ainda estava chegando muita gente e que ia demorar.
Olhei o entorno e reparei no prédio do Sindicato. Grandes banners adornavam sua fachada: os esperados MTST, PT Jovem, Frente Povo Sem Medo. Mas um outro banner capturou minha atenção, de fundo laranja, o da Frente Antifascista São Paulo. Eles estão sempre presentes em atos autonomistas e era a primeira vez que eu os via no atual contexto mais cutista. Ficaria muito feliz se autonomistas estiverem disputando o sindicato por dentro e ganhando destaque na luta sindical.
O calor estava pegando, e os vendedores de cerveja e outras bebidas trabalhavam muito. A certa altura, o povo exigiu que seus guarda-sóis fossem recolhidos, pois barravam a visão. Foi o que ocorreu.
Confirmei a variedade do povo ali: todas as cores e todas as formas, com fortes traços negros e indígenas, de vários matizes.
Passou um sósia do Che Guevara, com charuto nas mãos, boina e farda militar. Ele tentava energeticamente abrir caminho pelo povo – sem perder a ternura!
Notei as bandeiras dos estados de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul, duas do Brasil e uma LGBTQI. Vi uma sacola da URSAL.
O som do carro chegava em mim fraco e era difícil ouvir a música e as falas esparsas. Mas por vezes o povo cantava junto, e toda a multidão cantou aquela do Raul Seixas: “Viva, viva, viva a sociedade alternativa!”.
Além dessa canção, tocaram aquela da campanha de 1989, a do “Lula Lá”. O clima era ainda de palpável alegria e antecipação. Muitos gritos de guerra e palavras de ordem, especialmente “Lula, guerreiro, do povo brasileiro!”.
Um esquerdista mais cínico talvez achasse tudo meio retrô e saudosista. A mensagem do dia era de retorno e restauração, sublinhada por todas aquelas canções antigas – até Raul, porra! O mítico Sindicato dos Metalúrgicos, friamente, representa uma categoria, a manufatureira, em contração, e as lutas do passado teriam decantado no populismo do culto à personalidade de Lula. De fato, um grupo de mulheres a meu lado gritaram muito “Ô, o pai voltou, o pai voltou!”.
Mas eu não estava nessa vibe e aguardava emocionado.
Finalmente Lula chegou ao palanque, e imediatamente minha visão foi bloqueada por braços e celulares. Além disso, o som não tinha melhorado. Busquei me espremer pelos corpos em direção a um lugar melhor, mas só avancei 2 metros. Melhorou a visão, mas o som era fraco. Falaram Haddad, Freixo e outros, mas se ouvia muito pouco por cima do rumor voluptuoso das pessoas. Ademais, os odiosos helicópteros da imprensa jogavam barreira sonora intransponível.
Eu, que nunca perco oportunidade de desancar carro de som e reclamar do formato púlpito, surpreendi a mim mesmo gritando, desesperado, com o povo: “aumenta o som! Aumenta o som!”. De nada adiantou.
Acabei por me conformar e apurei os ouvidos. Depois de muita festa, o povo fez silêncio suficiente que permitia, bem no limite, entender o que Lula falava.
Começou agradecendo as pessoas, inclusive Janja – que desta vez não beijou, apesar dos pedidos em coro. Lembrou do dia de sua prisão e da manifestação que aconteceu no mesmo local. Disse que poderia ter ido para uma embaixada, mas que assim seria considerado fugitivo e culpado para sempre.
Contou um pouco de sua rotina na cadeia. Disse também que ia falar bastante, porque ficou mais de 500 dias sem ninguém com quem conversar – de fato, falou mais de 45 minutos.
Falou mal do Bolsonaro, o “destruidor de sonhos”, do ministro Moro, da Globo: “estou de volta”. Insistiu que o tempo todo conseguia dormir com a consciência tranquila, e que tem certeza que nem Moro nem Dallagnol o fazem de noite – nem Bolsonaro.
Lula falou um pouco para cada público. À esquerda prometeu ação comum e citou longamente as lutas do povo do Chile, da Bolívia e da Argentina, que apontou como modelos a seguir. Singularizou o colapso do Chile como o inevitável resultado da agenda Guedes – e o povo respondeu: “Esquerda, unida, jamais será vencida!”.
Lembrou Marielle e exigiu perícia nas gravações. Esse nome foi muito festejado pelo povo.
A imprensa, depois, focou muito nesse tom mais de confronto, e até o general Heleno acusou o petista de pregar a luta armada por causa disso. Mas o principal do discurso foi construir a visão de um Brasil feliz. Ele sempre traz imagens de mães que vão ao mercado com seus filhos e saem de mãos cheias, cita o liquidificador, a televisão e a geladeira, enfim, conta a narrativa da inclusão pelo consumo. Criticou os juros que caem na Selic mas não nas Casas Bahia. Sua mensagem geral é de otimismo. Disse que “não adianta ter medo” e que é preciso lutar.
No geral, achei que ele quis marcar sua oposição de opositor a Bolsonaro, mas claramente buscará apoio ao centro depois de acalmar a esquerda. Fico impaciente com seu foco no calendário eleitoral, o que significa que a renovação dos movimentos e das lutas não é ação prioritária, exceto onde ajudam na reconstrução da hegemonia do partido e da sua candidatura.
Ele terminou sua fala e foi muito aplaudido. Vi depois na internet que ele foi carregado pela multidão até o prédio do sindicato. O carro de som tocava aquela canção “Vermelho”, que é muito popular em manifestação petista.
Tentei sair fora rapidamente e buscar a avenida Paulista para ver a manifestação coxinha que ia ter lá. Tinha muito interesse em avaliar o impacto da libertação de Lula e quais as pautas direitistas que estão em jogo agora.
Fui descendo lentamente a rua lotada, e de repente passou um panão amarelo com letras gigantes que escreviam Lula Livre. O tecido passava por cima da gente, puxado e empurrado por todas as mãos, como se faz nas arquibancadas do futebol. A luz amarelada do sol difuso filtrado pelo pano dava uma atmosfera muito viajante para a minha caminhada rua abaixo. O clima meio surreal foi intensificado por uma camiseta que vi, “Fora Temer”, o que me fez viajar no tempo.
Saí na avenida, peguei a passarela e achei assento no ônibus em direção à estação Jabaquara. Eram 16h.
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