Ato anti-Lula

Ato da direita pela prisão em segunda instância, em 9 de novembro 2019. A Direita se une na avenida Paulista, instada pela libertação de Lula.

Foto: Marcos Muzi

Eram 17h30 quando saí da estação Trianon-MASP do metrô de São Paulo para acompanhar a manifestação chamada pelos grupos de direita VemPRaRua, Nas Ruas e MBL (Movimento Brasil Livre).

Tinha acabado de chegar de São Bernardo do Campo, onde vira Lula falar a militantes no Sindicato dos Metalúrgicos. O contraste não poderia ser maior.

O ato tinha começado às 16h, então já peguei a coisa andando e não pude fazer o que prefiro, que é chegar cedo e deixar o ambiente decantar devagar. Mas deu para ter uma ideia geral do alcance da reação da direita e extrema-direita contra a libertação de Lula. Em uma palavra: pânico.

Ainda quente do ABC, me era gritante como a composição social do evento era distinta: claramente de classe média e média-alta, branca. Predominavam os homens e mulheres de 50 a 60 anos, alguns com filhos adolescentes. Mas havia também jovens de uns trinta anos, que é o perfil do militantes de direita, mais engajados do que os casais de tiozões e tiazinhas.

Contei no total mais ou menos umas 30 mil pessoas, não muito mais do que nos três ou quatro atos que a extrema-direita fez este ano. Mas era notável que, como se analisa na imprensa, os moristas voltaram aos braços dos bolsonaristas. Lembrei que este ano, em outra manifestação da direita, nesta mesma avenida, o Direita São Paulo (que é bolsonarista) veio socar os militantes do MBL, a quem consideram traidores e covardes, já que estes demoraram um pouco a apoiar Bolsonaro na campanha de 2018.

Tinha visto as chamadas para este ato e notei que os organizadores insistiram muito em manter a pauta da segunda instância como exclusiva, creio que buscando evitar a defesa aberta do fechamento golpista neste momento.

Mas tudo isso não pôde acontecer sem certo contorcionismo conceitual. Notei que a imensa maioria das camisetas eram da CBF. Vi apenas duas camisetas com o rosto de Bolsonaro, ao contrário do que foi o normal desde 2018. Outra mensagem que apareceu bastante foi a “O meu partido é o Brasil”, que, se apropriada pela campanha eleitoral de Bolsonaro, já existia antes dela.

Avaliei que esta foi uma forma de refazer a base do consenso extremista que derrotou Fernando Haddad, mas contornando tanto quanto possível as mazelas governistas de moralidade francamente corrupta. Uma forma de bombar a figura de Moro em sua original versão lavajatista sem entrar no mérito de seu relacionamento com o presidente.

Logo que saí da estação, em frente da Federação das Indústrias de São Paulo, a FIESP, ouvi o carro de som do VemPraRua. Trazia as faixas “Prisão em segunda instância”, e “www.segundainstancia.com.br”. Tinha umas dez mil, talvez quinze mil pessoas na frente do carro.

Vindo do ato de Lula em São Bernardo, num bairro operário, foi muito louco ouvir homens e mulheres de classe média alta, brancos, de camisa lacoste, bermuda e mocassim sem meia, gritarem muito energicamente “O povo, unido, jamais será vencido!”, de punhos em riste e olhar duro.

Ademais, quando o helicóptero da Globo sobrevoou a massa, essa gente gritou muito alto, xingando e mostrando o dedo médio à aeronave. Fiquei surpreso, pois inúmeras vezes, desde 2016, eu testemunhei os mesmíssimos coxinhas festejarem loucamente o helicóptero da emissora.

Vi que tinha um bom número de cartazes feitos à mão, ao contrário das últimas manifestações de esquerda. Muita bandeira do Brasil, como é normal, mas não vi desta vez os pavilhões imperiais que sempre estão presentes. Os militaristas, até onde vi nesse final de festa, estavam mais apagados.

Os cartazes eram quase todos de apoio a Moro e contra o STF: “Fora Tofolli advogado do PT. Cadê a ética? Tenho vergonha e nojo”, “Soltaram o Lula e condenaram uma nação“, “Impeachment de Gilmar”, “Quem não vota como eu voto não tem meu voto”, “Suprema Trapaça do Brasil”, “Aguenta firme Moro”, “Não existe Lula Livre, ele está solto mas é culpado”, “Supremo Esgoto a Céu Aberto”.

Vi mais de 5 camisetas laranjas do Partido Novo.

No carro do VemPraRua, um jovem orador elaborava que “não queremos um Estado maior ou menor, queremos um Estado melhor. E essa história de esquerda e direita também já encheu o saco”. Achei notável o relativo republicanismo dessa formulação.

Outro orador, também jovem, gritava com muita raiva “eu não aceito corrupção, eu não aceito corrupção, eu não aceito corrupção!”. Não tive coragem, mas era o caso de gritar “então cadê o Queiroz?”

Mas fiquei com a sensação de que, apesar de toda a virulências das acusações e xiliques, no fim, a resposta do VemPrarua à grande ofensa da volta de Lula era… a votação da lei da prisão em segunda instância no Congresso.

Politicamente esse é um caminho razoável, mas um que diminui a participação do cidadão “de bem” e coloca tudo nas mãos dos exatos políticos que eles dizem execrar. Pressionar o Congresso através de uma planilha que o grupo mantém online era o máximo da reação do VPR. Achei pífio e tive a certeza que esta estratégia vai ser varrida quando os bolsonaristas dispararem seu levante. E todas as pessoas que me rodeavam vão apoiar o arbítrio e o sangue e foda-se.

Caminhei em direção ao MASP e não vi um carro do MBL. Parece que eles estão buscando se formar como partido e por isso adotam estratégias diferentes dos demais extremistas, como por exemplo disputar posições eleitorais em nível municipal. Em manifestações como esta, eles normalmente não falam a partir do alto do carro de som, mas montam um palco no asfalto, o que dá um ar mais acessivo e humano, ao estilo americano do town hall.

De fato, encontrei-os sentados no chão da alameda Casa Branca, em roda. Eram umas mil ou 2 mil pessoas à volta de um grupo central que fazia um transmissão ao vivo, ou então filmavam um vídeo para posterior publicação. Só que cantavam aquela odiosa cançoneta “Chora Petista”, que faz ameaças abertas ao PT e à toda a esquerda. Trata-se de uma herança dos tempos mais anárquicos do início do MBL, moleca e desinformada.

A letra é tétrica e me dá arrepios: “Chora petista, bolivariano, a roubalheira do PT está acabando. Sua conduta, é imoral, fere os princípios da CF [Constituição Federal] nacional, olê olê, olê olê, tamo na rua pra derrubar o PT”.

Vi na imprensa depois que eles levaram de novo tomates para que os manifestantes jogassem contra um cartaz com os retratos dos ministros do STF que votaram com a Constituição. Muita criança lançando tomate.

Avancei poucos metros até o carro de som do NasRuas, que estava adornado com as faixas Nas Ruas., Avança Brasil, Movimento Conservador, e “Cadê Gilmar?”.

O discurso aqui era mais radical e insurrecional, de explícito apoio a Bolsonaro e às “reformas necessárias que vão destravar o Brasil”. O orador subiu a temperatura dizendo que “fica difícil não deixar acalorar o debate com o maior bandido saindo da prisão, fiquei com nojo do Lula, do PT e do STF. Embrulhou o estômago”.

Seguiu dizendo que “Bolsonaro ganhou o governo mas não ganhou o poder. A esquerda está mas organizada e continua infiltrando a imprensa, a academia”. Pediu a união de toda a direita no Brasil.

Passou a celebrar os empresários que apoiam o governo, o que me deu a deixa para deixar o local.

Eram mais de 18h quando iniciei o retorno em direção ao Paraíso, e o MBL já tinha encerrado suas atividades.

Quase em frente ao carro do VemPraRua, vi um bololô de gente e fui checar. Um homem era imobilizado por 3 coxinhas, que o revistavam também. Entendi depois que o acusavam de roubar celulares. Ele foi agredido antes da PM chegar, que aliás foi aplaudida. Também levaram um menino de óculos, que estava quase chorando.

A postura agressiva, alfa, daqueles homens coxinhas em plena performance pública, me deixou perturbado, especialmente quando alguém gritou “ele fala espanhol também!”. Achei que iam acusar o capturado de ser provocador bolivariano. Tempos estranhos.

Ainda ouvi um pouco da fala de uma procuradora da Lava Jato, que trabalha com Deltan Dallagnol e que falava no carro do VemPraRua. Ela pedia apoio à força tarefa e dizia que a suspensão da prisão em segunda instância “vai soltar estupradores e criminosos”. Implorou apoio ao “projeto anti-crime de Moro”.

Eram 18h30 quando fui saindo fora. Ainda deu para ouvir a música final que o carro de som do VPR irradiava agora, depois de um orador pedir que ninguém aceitasse provocação, pois a esquerda “está solta”.

Escurecia quando vi uns três coxinhas, amigos, que dançavam na rua, meio timidamente, ao som da cançoneta motivacional – duas mulheres e um homem. Traziam bandeiras brasileiras aos ombros e tinham uns 30 ou 40 anos. Fiquei perturbado com o modo como dançavam: seus corpos duros realizavam movimentos meio canhestros e desajeitados.

Como um tiozão de 50, me é super presente como os movimentos de dança que realizo causam riso em gente mais jovem. Mas aquilo que eu via pesava como um tipo de tristeza corporal, era um tipo de retenção e gozo truncado que já vi muito em manifestação coxinha. Parece algum tipo de esclerose em vida, algum tipo de bloqueio mórbido, uma coagulação de energia vital que entra em erupção como ressentimento e ódio. Assustei porque eles eram relativamente jovens, mas moviam-se como velhos, a despeito da atividade física que devem praticar em aparelhos de ginástica.

Deixei o sinistro trio para trás e segui em direção ao Paraíso, a avenida já escura e esparsa de corpos.

Na altura do SESC Paulista e do Itaú Cultural, passei por um menino de uns dez anos que carregava uma caixinha de papelão com balas dentro, que certamente estava vendendo. Mas ele tinha um olhar distante e rodava um plástico preto acima da cabeça, visivelmente entediado. Como que em transe, repetia “Lula Livre, Lula Livre!”. Atrás dele vinha quem deveria ser seu irmão, de cinco anos e também de balas na mão. A seu lado, uma mulher destruída e olhar de abismo. Entendi que eram uma família.

Caminhei pela avenida até o fim e fui para casa.

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