Greve pelo Clima em São Paulo

Ato em São Paulo, parte da Greve Global pelo Clima, em 20 de setembro 2019.

Fotos: Alice Vergueiro

Saí às 17h na estação Trianon-MASP para o ato chamado pela Coalização pelo Clima, parte de Greve Global pelo Clima, que ocorreu em várias cidades do mundo e do Brasil. As expectativas eram boas, a mobilização global é intensa e o Brasil hoje vive sua emergência amazônica. Mas no geral a imprensa brasileira ignorou o evento. O Estadão impresso chegou a dar uma foto grande em sua primeira página de sábado, mas do protesto EM NOVA IORQUE!

Já tinha um número bom de pessoas quando cheguei, uns 3 mil manifestantes mais ou menos. De longe vi as grandes bandeiras da CUT e da Força Sindical. Mas sua presença não era dominante e não havia carrão de som, o que achei ótimo. Apenas duas pequenas carroças de som, as chamadas pipoqueiras, irradiavam falas – naquele momento de crianças. Como as pipoqueiras são menores, é fácil sair de seu raio de alcance se o manifestante assim quiser.

Logo vi os catadores com suas carroças em frente ao museu, na avenida. Eram uns 15 deles, ao redor de 4 carroças decoradas. Uma delas trazia o cartaz “Não buzine, me dê bom dia!”. Nessa hora ouvi o que achei ser uma marimba ou xilofone, e achei bela a cena. Não consegui saber quem era que tocava, mas depois vi na internet as fotografias de A, e compreendo agora que era um músico que tocava seu set de panelas.

Dei um giro pelo vão do museu e vi muitos grupos variados. Havia gente de todas as idades, de 16 a 70, bem equilibrado homem e mulher. Tinha bastante militante, ao redor de seus estandartes e bandeiras, por vezes com um batuque e quase sempre com as camisetas de suas agremiações: PSOL, UNE, PSTU, Faísca, RUA, PDT, PT, Partido Verde, Intersindical, Rede 18. Mas havia também jovens mais de classe média, organizados por escola ou por grupo próprio, como, julguei, o “Fridays for Future. Jovens pelo clima”. Eram uns 10 adolescentes ao redor de sua faixa.

Acompanho o campo socioambiental meio de longe e não conheço bem suas tensões internas, mas tentei observar quais eram os debates principais propostos no ato. Tentei, também, observar uma tensão correlata que é a participação da classe média não militante, o dito centro ou os ditos centrodireitistas, no contexto atual de protesto, onde as esquerdas já estão e a classe média hesita em vir ocupar.

Olhando as mensagens e cartazes, achei que ainda existe uma narrativa mais antiga do ambientalismo, que é a dos animais em extinção, da preservação da natureza exótica, algo distante da vida urbana, mais típica dos anos 1980. Por exemplo, um grupo de jovens trouxe uns 12 cartazes do tipo pirulito, cada um com a foto de internet de um animal em extinção. Um cartaz informava que este era o “Cemitério da Extinção”. C, que encontrei depois, me disse que notava a ausência das grandes ONGs dos anos 1980 e 1990, que tiveram grande impacto na luta ambiental do passado. O Greenpeace até estava lá e participou da organização, mas ouvi R cobrar que eles não fazem ações de impacto aqui no Brasil. Tanto R quanto C parecem analisar que estas ONGs eram expressão de um ecologismo de mercado que já esgotou sua eficácia.

R disse que viu o Greenpeace descarregar e desembalar seus cartazes para a manifestação: estes eram de plástico duro, e vinham embalados em plástico bolha…

Mas as bolas fora não foram exclusividade dessa ONG. Ambulantes vendiam churrasquinho e apitos verdeamarelos, e vi mais de um camelô com sacos de panos “Lula Livre” e bandeiras do Brasil. Devem ter vendido pouco. Mas a educação ambiental do movimento em geral será lenta e gradual, como tem sido com o feminismo.

Enfim, acho que é seguro dizer que o antigo ecologismo está migrando para o ecossocialismo ou para o socioambentalismo. Nesse mais novo campo, tem uma outra tensão interna: existe sustentabilidade dentro do capitalismo? E dentro desta tensão, outra ainda: opor Bolsonaro é uma pauta ambiental?

A maioria dos cartazes, faixas e falas eram, se não anticapitalistas, pelo menos socioambientais, e o bolsonarismo figurava inescapável como agente nocivo destruidor do ambiente. De fato, o governo é cheio de negacionistas ( e terraplanistas!) e tem um plano de ocupação produtiva da floresta amazônica que é extremamente danoso.

Dei um giro pelo local e anotei algumas outras mensagens. Vi muito cartaz com mensagens do tipo “Queima o Bozo não queima floresta” e faixas como “O capitalismo destrói as plantas, destrua o capitalismo”. Vi um pessoal com uns 12 estandartes grandes, brancos, onde estavam desenhadas árvores da cidade de São Paulo, com os fios elétricos suspensos de rua. Reconheci no desenho as “saias de cal”, que, mais antigamente, se pintavam nas árvores de calçada, acho que para evitar o ataque de insetos. O moto do grupo era “Coloque-se Em Meu Lugar” (Try walking in my shoes).

Vi um outro pessoal no fundão do espaço que beira o túnel da 9 de Julho que estava escrevendo, com corpos humanos, uma frase no chão, para ser lida do alto. De fato, dois drones e um helicóptero sobrevoavam o local. Os corpos faziam ler “Amazônia”.

Vi um grupo de autonomistas e suas bandeiras negras, negra e vermelha e negra e verde. Perto deles, no chão, as faixas “Não venda sua revolta, destrua o poder”, “Queime fascistas, não florestas”, “A culpa é do patrão”.

Vi também muitas veganas e veganos lá, com cartazes e faixas. O veganismo, no geral, parece mais politizado que o vegetarianismo e abriga uma crítica social mais abrangente.

Fotos: Alice Vergueiro

Continuei o giro e vi um cartaz “Não há riqueza em um mundo morto”, outro “A natureza chora” e outro “Sorry for our president”. Uma moça com folha de samambaia no cabelo trazia o cartaz “Ar puro, água limpa, floresta em pé”.

Encontrei GP, que me apresentou o cara do Porcomunas. Encontrei GM, que é da Setorial Ecossocialista do PSOL, uma das iniciadoras e organizadoras do ato. Nos falamos um pouquinho, mas fui observar o ato. Vi uma moça que falava ao telefone celular e informava seu interlocutor que “tem muito adolescente aqui”, o que era verdade. Vi uma camiseta do coletivo Democracia Corinthiana.

Encontrei L, a fotógrafa A e o fotógrafo L.

Eram 17h30 e o ato já esparramava para duas vias da avenida. A Polícia Militar estava perfilada no canteiro central, uns 150 deles, de jaleco verde. Mas no geral foram bem tranquilos. R avaliou que Dória não ia querer cenas de violência explícita na conta dele agora.

Tinha um grupo de crianças e adolescentes que faziam uso da palavra no palquinho perto da pipoqueira. Várias cobravam ação dos adultos, muitos falavam de seus futuros. Mais de uma criança gritou Fora Bolsonaro!. Até acho relevante e urgente, mas não pude deixar de lembrar que, em atos coxinhas, ouvi crianças muito pequenas gritarem “Chora PT!” e “Lula na cadeia”, para orgulho dos pais – sem falar nas fotos no colo de PMs armados. Enfim, a infância é uma guerra de adultos travada com corpos de crianças.

Mas um jovem da periferia mandou bem, dizendo que eles moravam em áreas de desmatamento, como o Embu, Cotia e Itapecerica, e que para eles a questão ambiental era bem concreta.

Vi sair para a rua um bonecão que trazia uma faixa presidencial, mas um nariz e chapéu de Pinnocchio.

A passeata ia se posicionando, num clima de conversa e de carnaval. Algumas pessoas expressaram impaciência com esse formato, que chamaram de “sala de visitas”. Havia uma frente de ato organizada, uma comitiva de indígenas e outra de crianças.

Os meninos e meninas indígenas traziam à cabeça um bandana vermelha Lula Livre. Alguns traziam cortes de cabelo ao estilo hipster, e pareciam meio entediados. Talvez seja apenas a adolescência. Atrás vinham os catadores e suas carroças. Algumas delas estavam decoradas: “Os catadores sempre fizeram muito mais do que todos os ministros do meio ambiente”.

Vi o grupo Linhas de Sampa e seu cartaz bordado, e dois globos infláveis, grandões. Vi os cartazes “Clima tenso”, “Globo e PCC, tudo a ver” e “Não corta o clima”.

Vi a faixa “Conselho Mirim em Defesa do Meio Ambiente”, que de fato era acompanhada de crianças, mas achei os dizeres total HQ. Outra trazia “Emergência climática”, “Para o feminismo, o capitalismo não tem eco. Marcha Mundial das Mulheres. Fora Bozo!”, e outra “Veganos contra o capital”.

Vi uma faixa que achei curiosa: “Anula a chapa Bolsonaro-Mourão”. É de um grupo chamado SOCO Sociedade Organizada. Curioso porque tinham um certo look autonomista, mas com uma apresentação mais profissa e menos punk. Anotei as bandeiras do Rebeldia, do “PT SMAD”, o estandarte do AFRONTE e outro “Basta!”, este com um punho cerrado.

Vi apenas duas camisetas com os dizeres que absolutamente dominaram o campo popular desde o assassinato de Marielle: “Lute como uma garota”.

Uma moça veio me perguntar “Você é das cavernas?”. Hesitei e pensei que no geral me considero um homem fofo e não troglodita… Não soube responder. Mas rolou que tem um cartunista, o Gilmar, que se intitula o “cartunista das cavernas”. A moça achou que ele poderia ser eu, mas não era. Rimos e nos separamos.

Eram já 18h e tomávamos tidas as vias da avenida em direção à Consolação. Não havia hora certa de sair. As pipoqueiras tinham alcance bem reduzido, então deu para conversar bastante. Vi P, C, M, G, R e L.

Fotos: Alice Vergueiro

Todo mundo parece que esperava mais gente. Contei ao todos umas 20 a 30 mil pessoas. É até muito bom, mas todos temos no coração o espetáculo de movidas realmente massivas. De fato, a urgência da pauta ambiental hoje, a greve global do clima e a polarização política geral do Brasil davam esperar mais em termos de corpos na rua. Mas pode ser apenas ansiedade da esquerda que está em busca do evento dourado que lhe restaurará a primazia das ruas. Corremos perigo de vida, o desmonte e destruição institucionais são graves, mas vai ser preciso construir a mobilização, em outros termos. Vai demorar e vai dar trabalho, mas “atravessaremos este regime”.

Esta passeata vem sendo construída há tempos, pacientemente. Começou muito pequena e já cresceu tudo isso, conforme me contou GM.

Conversei bastante com as pessoas que encontrei acerca dos dilemas de quem caiu no conto do antipetismo e que ainda se ressente de roçar ombros nas ruas com organizações de esquerda. Os bolsonaristas de ocasião ou os meramente isentões parecem estar numa situação onde precisam achar um lugar onde o golpe foi impeachment e legítimo, mas onde Bolsonaro é uma excrescência ou excesso com quem não querem guardar nenhuma relação. Meu palpite é que eles vão queimar muito chão antes de achar esse lugar. Para usar uma metáfora bíblica, a esquerda já saiu do Egito e vagamos pelo deserto faz muitos anos – faltam uns 20 dos 40 totais. Já tucano, isentão e coxinha democrata nem cruzaram o Mar Vermelho ainda. Falta muito, colega! Estivemos lá!

De qualquer forma, para estes, há que se perguntar onde estão aqueles com quem saíram de verdeamarelo às ruas do país. Onde estão os cartazes “Quero saúde padrão FIFA”? Onde estão as pessoas cujo “filho teu não foge à luta”? Onde estão as panelas pelo clima? De fato, vi um único cartaz que citava o hino nacional, que no geral a esquerda evita, assim como citações bíblicas: “Nossos bosques têm mais vida?”

A passeata foi caminhando bem devagar, com as crianças da frente muito fotografadas pelos profissionais e amadores presentes. Mais atrás tinha um batuque muito bom, os músicos de branco, tinham uma energia muito boa.

Além dos muitos cartazes à mão, algumas novas palavras de ordem: “Mas que vergonha, a floresta queima mais do que maconha!”. Vi as faixas “Pela Amazônia, pela educação, pelas periferias, uma só luta”, “Não é fogo, é o capitalismo”, “Céticos pelo Clima”.

Vi os cartazes “Combustível fóssil é coisa do passado”, “Só podemos mudar o sistema, não de planeta”, “É greve porque é grave”, “Bancada ruralista põe veneno no seu prato”, “Se $ é poder, não compre quem polui”, “No fundo do poço não tem bolha, turma!”.

Estava parado na calçada observando o fluxo quando uma moça acenou para mim, de longe. Não reconheci quem fosse e olhei para os lados, e depois apontei para mim mesmo querendo confirmar que era eu a quem ela acenava. Ela riu muito e indicou que sim, mas, acompanhada, não parou e seguiu seu caminho. Eu fiquei.

Vi uma bandeira da Noruega. Depois percebi que a OAB estava presente. É muito notável o novo ativismo da Ordem, dá um alívio enorme, são muito bem-vindos.

Uma das pipoqueiras ia mais à frente do ato, mas atrás das faixas de abertura. A locutora era mais cutista, e rolou que os autonomistas vinham logo atrás. Então tinha alguma faísca. A moça vermelha puxava “Segura, segura, segura ô fascista, que a América Latina será ecossocialista!”. Em resposta, os anarquistas entoavam “Desmatamento, nunca acabou, porque a esquerda nunca se preocupou!”, uma referência às políticas desenvolvimentistas dos governos do PT, que melhoraram aspectos ambientais mas que não enfrentaram de fato a questão.

Além disso, os autonomistas cantavam “Chega de bandeira, eu quero o fim da esquerda cirandeira!”, que é uma maneira moleca de reiterar seu caráter revolucionário contra a esquerda institucional, que veem como impedimento à transformação radical.

Encontrei S e conversamos. Ele estava indignado e contou que brigara com um mulher que tinha se incomodado com um “Fora Bolsonaro!”. Comentamos sobre os limites do formato passeata, especialmente quando se vai ao centro no fim do dia, onde já não há mais ninguém. Disse que aposta agora em núcleos experimentais ao estilo dos Zonas Autônomas Temporárias (TAZs), replicáveis e de espalhamento por contaminação.

Chegamos finalmente à esquina da Consolação, com nova parada. As crianças ainda estavam segurando a faixa de abertura e notei que o Suplicy estava entre eles, também com a faixa nas mãos, meio sério mas curiosamente bem colocado dentre os pequenos.

Depois de um pouco descemos a avenida, meio devagar, e a passeata quebrou em alguns lugares.

Notei que a esquina do restaurante Sujinho, conhecido por suas carnes, agora tinha novo estabelecimento, também um Sujinho, mas de hambúrgueres. As enormes vitrines deixavam ver os clientes às mesas. O nome da empresa denuncia seu início no campo do restaurante popular. Hoje está chique, como fazia ver a sua nova hamburgueria.

Vi passar um faixão branco gigante, horizontal, de uns 300 metros, onde se lia “SOS Clima”.

Mais para baixo, notei que o ponto de ônibus em frente ao CPV trazia uma bizarra propaganda da rede Burger King na caixa iluminada: “Rebel Whopper. Hambúrguer de planta, sabor de carne. Sabor animal, 100% vegetal”. Bizarro.

Depois do cemitério da Consolação há um prédio residencial novo, o London SP. Ele é bem protegido, com guaritas e muros envidraçados. Um pessoal da frente, mais de classe média, gritou para os poucos moradores às janelas abertas: “Vem, vem, vem pra rua vem, pela Amazônia!”. Mas os autonomistas, que vinham logo atrás, gritaram “Ei, burguês, a culpa é de vocês!”.

Ainda: “Chega de desgraça, eu quero o fim do presidente da fumaça!”.

Acabou que chegamos ao destino, que era a praça Roosevelt. As faixas foram se posicionando na escadaria e a passeata não entrou na praça, mas ficou na rua.

Notei uma carroça que trazia a mensagem: “Reutiliza a consciência”.

A avaliação final foi a de um ótimo ato, diverso, horizontal. Conscientemente não partidário, não foi refratário a quem já está na rua em oposição a Bolsonaro. Teve algum Lula Livre e sindicatos, mas de nenhuma forma foram hegemônicos ou mesmo muito numerosos. As críticas dirigidas ao ato que ouvi são na verdade críticas dirigidas à sociedade brasileira em geral: não há ainda mobilização massiva de resistência e a classe média ainda não sentiu a ficha cair. Achei muito saudável a notável migração da pauta ambientalista para o campo do ecossocialismo ou do socioambientalismo, pois este campo configura uma plataforma onde uma oposição transformista pode se reorganizar, superando impasses atuais da resistência institucional. Este é um campo onde poderemos ver novas configurações de mobilizações. Esta é uma construção que vai gerar faíscas, já que acomoda diversas velocidades sociais. Em outras palavras: parece que a superação capitalista pode não se dar pelas suas forças endógenas (exploração, trabalhadores conscientizados, movimento popular etc), mas por forças exógenas, isto é, a natureza não vai aguentar e vamos precisar discutir abundância, sustentabilidade, consumo, distribuição de riqueza, estilo de vida… e pós-capitalismo. Parece que a discussão urgente é: como vamos viver juntos?

Eram 20h40, garoava e não fiquei para ver o encerramento. Caminhei até a praça da República, ingressei no metrô e fui para casa.

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