AI-5 reeditado em forma de drama

Uma peça de teatro em cartaz em São Paulo encena a reunião que instituiu o AI-5 a partir de sua ata oficial, reverberando no presente.

Foto: Felipe Sales

É comum hoje ouvir que a ficção e realidade estão misturadas: fake news, declarações e contra-declarações quase simultâneas, Golden Shower… a disputa narrativa faz parte da política. Muita gente busca na ficção elementos para compreender a realidade política. As séries House of Cards ou Game of Thrones são acompanhadas e estudadas por muitos atores políticos como guias de ação. Há quem eleja Shakespeare como o mestre das narrativas com lições políticas, ou mesmo há quem busque nas biografias de vidas exemplares um padrão de construção de sua própria carreira. Enfim, historicamente, a arte, principalmente a literatura e o cinema, serviram de laboratório da luta política.

Mas existe um jeito bem particular e interessante de realizar essa mediação: o teatro verbatim ou palavra-por-palavra. Nesse tipo de teatro de documentário, o texto dramático pode tomar a forma de cartas, tabela estatística, relatórios de banco, notícia de jornal, depoimentos, transcrição de julgamentos, votações ou atas de reunião.

O uso de documentos históricos na narrativa artística não é novidade. Uma biografia romanceada ou um filme “baseado em fatos reais” busca esse tipo de ancoragem ou legitimação. Ademais, muitos coletivos de arte ou de ativistas, dão a ver documentos ou informação que normalmente passa desapercebida ou oculta. Exemplos são os crimes da ditadura brasileira, o viés racista das execuções policiais etc.

Foto: Felipe Sales

Mas, se a intervenção artística provê uma arquitetura de significado para os documentos em questão, através de sua colagem em formato de livro, instalação ou performance, há um tipo de teatro ou cinema que não altera em nada o documento, mas o reproduz palavra-por-palavra. O script ou roteiro é integralmente dado pelo texto pronto. As intervenções se dão na montagem, cenário ou ambientação.

O coletivo paulista Oitenta e Dois publicou, por exemplo, a transcrição da sessão da Câmara dos Deputados que votou o impeachment de Dilma Roussef. Adicionou apenas fotos dos deputados, do plenário e de algumas poucas manifestações de rua. Mas o grosso da publicação é a votação tal qual ela ocorreu, com as declarações de cada um dos parlamentares na hora do voto. O que impressiona é como a narrativa audiovisual se comporta no papel. Algumas declarações ficam ainda mais obscenas, outras diminuem em impacto. Mas o formato documento escrito recoloca o evento, de modo que o revemos com outros olhos. Não há comentário ou análise por parte do grupo . Toda a informação textual vem de sites oficiais (ache o documento em issuu.com/oitentaedois).

O resultado é muito poderoso.

Quem lê a transcrição do depoimento de Lula, por ocasião de sua condução coercitiva e interrogatório no aeroporto de Congonhas (http://www.r7.com/r7/media/pdf/Evento156-TERMO1transcricaolula.pdf), percebe imediatamente a força da narrativa dramática que poderia advir de um tratamento teatral verbatim desse texto.

Foto: Felipe Sales

Esse é o caso da peça em cartaz, em São Paulo, chamada AI-5, uma reconstituição cênica. Trata-se, como revela o título, da ata oficial da reunião do Conselho de Segurança Nacional que aprovou o Ato Institucional em 1968, em seguida decretado. Nela estão transcritas todas as discussões acerca da instituição de uma ditadura sem máscaras, os argumentos pró e (um único) contra.

A peça é muito impressionante em vários níveis. Um deles é a abertura com que se discute o endurecimento do regime. Os políticos, generais e ministros do Conselho de Segurança Nacional têm perfeita consciência do que estão a fazer e da gravidade que é instituir uma ditadura aberta. E tudo isso vai enunciado naquele português semi-formal, uma mistura de jargão processual (“sr. Presidente” etc), chavões e arroubos de sinceridade.

Parte da importância da peça reside, assim, no que ilumina da história recente do Brasil. Somos relembrados que Delfim Netto era membro do Conselho e ministro da economia. Ele esteve na reunião e defendeu a ditadura mobilizando a argumento econômico. Recordamos Pedro Aleixo, o vice-presidente, que foi o único a falar – moderadamente – contra o Ato, formulando a preocupação com o “guardinha da esquina”. As falas reacionárias que conjuram o direito revolucionário para manter a ordem e violentar a oposição. Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais que depois ganhou um banco de presente.

Foto: Felipe Sales

Por si só isso seria suficiente para recomendar a peça: informação histórica relevante para coletivos de arte e de ativistas, escolas, educadores, historiadores e a sociedade em geral.

Mas a memória histórica só realmente reverbera no presente: a peça nos convida a refletir sobre os dias de hoje, e é fácil imaginar quantas reuniões semelhantes ainda estão sendo realizadas dentro e fora do poder. A peça existe há três anos, e os ecos que essa montagem lançou sobre a realidade política brasileira repercutiram em vários momentos: o impeachment, o governo Temer, a prisão de Lula, as eleições, o governo Bolsonaro…

Aliás, o maior desafio da dramaturgia do grupo é incluir de alguma forma o que está por definição deixado do lado de fora do gabinete: a sociedade brasileira, que fica clamando por participar da narrativa formal da reunião. Assim, o Brasil real irrompe na peça de várias maneiras: por vezes nas falas dos próprios atores, que incorporam e vocalizam conteúdos do presente (“Ele não” etc), nos adereços do cenário, panelaços e, principalmente, nas figuras das duas “mocinhas” que brevemente interrompem a narrativa para nos fazer lembrar que o Brasil acerca do qual o Conselho fica falando somos nós, e que o sangue que correu foi o nosso.

Um contexto mínimo do momento histórico ajuda a desfrutar a peça. Depois do golpe de 1964, ainda havia alguma vida política e parlamentar. Foi a fala de um deputado da oposição, Márcio Moreira Alves, pedindo entre outras coisas que as moças brasileiras fizessem uma greve de sexo contra os militares em geral e contra os cadetes em particular, que motivou a reunião do Conselho de Segurança Nacional (todos homens brancos). O discurso foi usado como pretexto para suspender todas as garantias democráticas e liberar geral a tortura e assassinato, pois, como analisaram na reunião, tratava-se de mais um convite à subversão e desestabilização do regime. O texto do Ato é lido ao final da peça, o que ajuda a compreender a amplitude política do documento.

O Coletivo Ato de Resistência: A Política Em Cena é um grupo de guerreiras e guerreiros que levam essa peça há anos, insistindo em sua relevância. Cada vez mais atual, a peça é altamente recomendada a todos aqueles se interessam pela história recente do Brasil e todos aqueles que buscam elementos para construir a resistência do presente e a liberdade do futuro.

A peça está em cartaz todas as quintas feiras de maio e junho no teatro da Cia. Redimunho de Investigação Teatral, às 20h30. É no Centro de São Paulo, na rua Álvaro de Carvalho 75, pertinho da Estação Anhangabaú. Tel: 94060 8883. A concepção da peça é de Paulo Maeda.

A temporada segue depois de 14 de junho a 14 de julho, sextas e sábados 21hs. Domingos 19hs. No Teatro Municipal da Mooca Arthur Azevedo – Rua Paes de Barros 955, Mooca. Bilheteria: Ingressos a 30,00 inteira.

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