Diário: Lula vai ao velório do neto

2 de março de 2019 – Lula liberado para a cremação do neto

Apesar do início das festividades momescas e da visível metamorfose da cidade que se transforma em território folião, até agora só consegui andar a esmo melancólico pelo carnaval.

Neste sábado de manhã, não estava a caminho de nenhum bloco, mas ia a São Bernardo do Campo checar a visita de Lula ao velório de seu neto, que ontem morreu subitamente de meningite. Fui de metrô até a estação Jabaquara, para em seguida embarcar no 288 em direção ao terminal Ferrazópolis. De lá, seguiria de alguma forma para o cemitério Jardim da Colina.

Desde o fim da sexta-feira especulava-se sobre a presença de Lula. Primeiro se seria liberado ou não, depois o transporte, depois a hora exata… Avaliei que chegar umas 10h me colocaria em boa situação.

Olhei pela janela do ônibus 288 a triste paisagem urbana do trecho que antecede a chegada ao centro de Diadema. O céu tingia de cinza tudo abaixo de si e achei o dia perfeito para perseguir sombras fugidias: ver do Lula encarcerado um breve bafo de presença física, já que meu triste Momo se me evadia o corpo ansioso.

Um moço embarcou e começou sua falação em prol de sua instituição, que “recupera jovens das drogas”. Disse que tinha morado nas ruas e que tinha sido salvo por Jesus através do tal grupo. Pedia contribuições na forma da compra de um fone de ouvido, um “original da Nova”. Pensei nessa transferência de valor, do trabalho escravo na China para o cristianismo, através de fiéis pobres do grande ABC.

Cheguei afinal a Ferrazópolis e perguntei do caminho até meu destino. Indicaram um ponto de ônibus na avenida Faria Lima, onde deveria tomar o 19 ou o 24. Encontrei no tal ponto duas senhoras que iam para lá. Conversamos um pouco. Elas não eram da região. Uma delas disse, ao consultar seu celular, que Lula já havia chegado a São Paulo fazia 52 minutos. Contou também que foi dada a ele somente uma hora de presença no velório e cremação.

Uma jovem moça maquiada informou-nos, dentro do ônibus, onde deveríamos descer. Ela disse que queria ir também, mas tinha que trabalhar no Shopping. Disse que desde ontem já tinha gente lá no cemitério.

Uma das condições para a visita de Lula era que não houvesse comício nem discurso. O PT não chamou a militância.

Afinal chegamos a uma espécie de rotatória no centro de um bairro, e descemos. Subíamos a ladeira em direção ao portão quando um rapaz que descia falou alto: “Lula está na área, daqui a pouco”. Uma outra senhora que tinha vindo conosco no ônibus retorquiu: “Para sempre, ele está na área para sempre”.

No dia de hoje, cercado da militância dura do PT, ouvi a mim mesmo falar da situação atual como “travessia”, do futuro como “dia da vitória” e, recordando a companheira A, falar de Lula no contexto do “Livro de Jó”. Metáforas bíblicas abundaram neste sábado. Mas toda essa cristofilia minha acabou por trombar de forma contraditória com um figura lá dentro, como relatarei adiante.

Chegamos ao portão às 10h30 e tinha umas 200 pessoas, dentre elas uns 15 cinegrafistas. Temi que fosse esse o cenário principal do dia. Daquele jeito, veríamos apenas os carros passarem rapidamente de janela fechada.

Fiquei um tempo e senti o clima.

Achei que os homens formavam estreita maioria, e que a idade média estava entre 40 e 60 anos. Havia jovens. Todos pareciam estar tristes e algo sombrios. Tinha raiva também. Nenhum cartaz ou bandeira. Muita polícia.

No meio do rumor natural dos ajuntamentos de rua, de repente irrompiam gritos irados clamando “Soltem o Lula!”, “Volta, Lula”, “Fora Judiciário golpista!” ou “Cadê o Queiroz?”. Lembrei do fenômeno da glossolalia, que é isso de “falar em línguas”. Era como se estivesse rodando um excesso de energia carismática que faiscava em súbitas falas inspiradas. Assim parecia.

Logo vieram anunciar que deixariam o povo entrar, mas que era imperativo que não houvesse gritos ou palavras de ordem, e nenhuma foto. Passei pelo portão e caminhei ao longo de uma extensa fileira de PMs perfilados nas alamedas que davam acesso ao crematório.

A porta do crematório mesmo estava cheia de gente, todos tentando entrar. Mas, àquela altura, já tinham restringido o fluxo e isso resultava em aglomeração. Julguei que o presidente chegaria por outro caminho e achei um lugar bom de ver.

Aí veio o que sempre advém neste tipo de situação: a espera. A cremação estava marcada para as 12h, e eu não ia arredar pé dali. Olhei em volta, ouvi conversas e conversei também.

Um homem contava a outro que, mais cedo, um figura tinha vindo ao cemitério com seu patinete decorado com “Bolsonaro presidente”. Outra pessoa afirmava que “os filhos do Sérgio Moro estão envolvidos em corrupção”. Flutuei com as pessoas a ideia de que Moro prepara um golpe contra Bolsonaro, com os militares.

Vi passar o Ivan Valente e o Boulos. Foram saudados pela multidão.

Ao meu lado, um moço de uns 25 anos estava muito agitado. Buscava participar de conversas, dizendo muitas vezes “o semideus vai chegar. O Lula semideus vai chegar”. Tentou alcançar a grade, esmagando rosas na terra, gritando contra a polícia.

A via que dava acesso ao crematório, onde eu esperava, estava pesadamente guardada. Policiais da ROCAM, PM, PF, GPI e seguranças particulares (do partido?) estavam perfilados e encaravam o público. Além disso, tinha um senhor de jeans e camisa xadrez, de bigode, claramente membro do PT, que percorria a grade pelo lado de dentro, participando da segurança. Os agentes particulares estavam sérios mas amistosos, vinham falar com as pessoas e pediam por favor. Os PMs menos à vontade, de cara fechada, e tiveram que ouvir muito “Cadê o Queiroz?”.

Assim, o moço que gritava “semideus” criava certa tensão na grade. Nessa hora, veio o petista de bigode, falou com o moço e o abraçou. Os dois choraram, e acabou que eu também. Depois, notei que o mesmo homem abraçou e chorou com outras pessoas ali na grade – pessoas que ele não conhecia.

Fiquei muito impressionado: este homem oferecia carinho e acolhimento ao invés de repreensão ou repressão. A presença de toda a segurança era coreografada no sentido da separação e da fricção, mas ele canalizava as irrupções de emoção com carinho e choro, chamando para si a dor dos outros.

Lembrei que vi algo parecido numa passeata do MPL em 2017. Estávamos saindo do Largo da Batata em passeata quando vi essa moça num patinete elétrico. Ela percorria as bordas da passeata e dialogava com manifestantes, BBs, PMs, motoristas de ônibus, motoristas de carros particulares e a galera em geral. Achei linda a sua mobilidade ágil e sua energia: firme, acolhedora, generosa, militante, protetora, combativa, juvenil e de esperança. Lembro que pensei então: “Certamente caminho no futuro, pois esta é uma nova foma de lidar com o estar em público. É disso que a esquerda precisa”.

Abraçado, o moço acalmou.

Aliás, reparei que pelo menos 3 pessoas contaram histórias de abraço: de Dilma, de Lula e de outros. Um foi em Brasília, outro em Campinas, outro ainda na sede do Sindicato dos Metalúrgicos.

Vi um único cartaz, “Lula Livre”. Vi muitos tipos de camiseta com o nome ou rosto de Lula. Um moço alto vestia uma camiseta preta que trazia um crânio humano, sem escrita. Outra delas trazia “#quemocupanaotemculpa”, outra tinha a Mafalda.

Calculei que no total havia umas 2 mil pessoas.

Afinal chegou a carreata do presidente, 4 viaturas pretas. O povo se agitou muito e acorreu às grades. A coreografia da segurança em máxima performance. Submetralhadoras, óculos escuros e diferentes fardas percorriam o palco do cemitério. Fiquei muito impressionado com a figura do delegado que acompanhava Lula: ele parecia um sósia do Brad Pitt, com seu terno de fino corte e cabelo loiro aparado. Aliás, a PF cada vez mais se parece com uma série do Netflix, onde o departamento de maquiagem e figurino capricham na erotização da força policial.

Circulou nas redes depois que um dos PFs trazia um distintivo da SWAT americana, de Miami. Trata-se de Danilo Campetti, um bolsonarista (conforme apontou o companheiro E) e que já divulgou foto onde mostrava o alvo que marcara a tiros, que trazia o rosto de Dilma. Correu também que ele seria o homem que trollou Manuela durante a campanha (ele gravou vídeo). Mas parece que este último é na verdade o caminhoneiro Valdemar Ignaczuk, que depois publicou vídeo assumindo ser quem é. Ele foi candidato do PSL.

A multidão irrompeu num “Lula, guerreiro do povo brasileiro” e “Solta o Lula!”. Ele passou rapidamente pela nossa frente e pude ver seu rosto claramente por uns 5 segundos.

Nessa hora deu vontade de ler tudo no rosto de Lula: as marcas de sua história, o destino de sua jornada, o estado da luta social, tudo isso nas feições entrevistas, a figura do ex-presidente como metáfora para o Brasil. Mas resisti e só digo que ele não parecia destruído.

O povo aqui fora ficou mais agitado e desandou a gritar palavras de ordem: o canto de 1989 “Olê, olê olê olá, Lula, Lula”, “Artur, presente, agora e sempre!” e “Lula Livre!”. Alguns militantes estavam mais emocionados e dirigiam sua raiva à polícia e o Judiciário: “Os milicianos estão no poder!” e “A PM apoiou Bolsonaro nas eleições”. Reparei que um PM ouvia tudo, e também os seguranças do partido.

Alguém puxou um Pai Nosso e o povo rezou junto, de mãos ao alto. Como faço nessas horas, levantei o punho esquerdo pela duração da oração e me dei por satisfeito.

Vieram falar de dentro do crematório que as manifestações aqui fora estavam atrapalhando a cerimônia lá dentro. Falou o Okamoto e ele pediu que nos aquietássemos. Um outro figura disse que iria puxar uma oração aqui fora quando lá dentro fosse feito o mesmo.

Os militantes não se acalmaram, e alguém puxou a canção “Para não dizer que não falei de flores”. Para meu espanto, notei que eu sei toda a letra. Da Internacional já não a lembro inteira, e menos ainda a do Hino Nacional completa.

Enquanto esperávamos, conversei mais. Uma mulher discorreu longamente sobre o Toninho do PT, prefeito assassinado em Campinas. Quando ela falou que gostava de como “a reconstrução do PT está se dando”, pedi que falasse mais, esperando alguma notícia importante de renovação basista. Mas no final ela se referia à luta interna da hierarquia do partido e não a um hackeamento do partido pela militância, conforme desejo. Deixei quieto.

Outra moça contou que FHC teria escrito, em artigo recente, “que o PT estava certo, pois agora, com Bolsonaro, fica difícil negar lá fora que de fato aconteceu um golpe no Brasil”. Parece que o Blog da Cidadania publicou.

Ouvi mais de uma conversa preocupada a respeito de conhecidos e familiares que votaram em Bolsonaro.

Outra mulher contou que mora na região, e que estivera na presença do caixão durante a noite. Disse que os familiares ficaram até certa altura, mas que ela e outras vizinhas tinham vindo de madrugada e ficado na companhia do corpo de Artur, “para que ele não ficasse sozinho”.

Algumas pessoas faziam postagens ao vivo, contando o que viam ao mesmo tempo que se filmavam de smartphone em punho.

Um moço de cabelo encaracolado me falava como Artur, o neto de Lula, era como o ex-presidente: “irradiava luz por onde passava. O Artur tem o olhar do avô, o mesmo olhar”.

Vi entrar o Rui Falcão, Genoíno, Mercadante e um homem com uma bandeira do CMP (Central dos Movimentos Populares). Parece que ele não pôde ficar com ela, e outro homem teve que cobrir sua camiseta “Lula Livre” para ter acesso ao crematório. Li depois que o Suplicy estava lá. Vi o fotógrafo S.

Nessa hora um pregador evangélico começou a discursar no meio do povo. Apesar do clima meio místico da cercania da morte e da presença de Lula, achei que caía muito mal. Ele vestia uma camisa com uma estampa da bandeira americana. O discurso era meio genérico, mas irritei-me com a menção à “verdade vos libertará”, que já foi usado por Bolsonaro e Onyx.

Peguei uma carona na censura de algumas pessoas e gritei contra ele. Só que errei a mão. Queria de alguma forma destacar que tem que separar a igreja do estado, ou no mínimo apontar como era desrespeitosa a intervenção do pastor. Acabei gritando “Sobe na goiabeira! Jesus não vai me falar como me vestir!”.

Uma mulher ao meu lado, de boné vermelho do MST, censurou-me dizendo “Respeita a diversidade”. Tentei formular que a fala religiosa não tem autoridade inerente, mas não consegui. Tenho estado muito sensível hoje em dia com a imposição da pautas universalistas cristãs, do tipo Damares, e acho que toda a esquerda vai ter que falar disso alguma hora com seus militantes evangélicos.

Mas lamentei não ter conseguido opor ao pastor inoportuno uma fala que fosse ao ponto e não que ofendesse a crença pessoal. Afinal, o episódio da goiabeira envolve o abuso sexual sofrido por Damares. Curiosamente, fui apoiado imediatamente por um outro homem de 50 anos, também branco. Achei depois que moça do boné estava certa de alguma forma, ou mais certa do que eu.

Lamentei mais ainda que a censura ao pastor aumentou nos termos que eu tinha colocado, e várias pessoas confrontaram-no e xingaram-no como inimigo. Ele foi afastado, ao final, por seguranças.

Vi uma coroa de flores brancas passar no meio da multidão em direção ao crematório. O arranjo floral era transportado na horizontal, parecendo que algum garçom equivocado trazia um bolo exageradamente decorado por cima das cabeças.

O tempo passou e lá pelas 12h45 a agitação geral indicava que Lula estava para sair. A militância acendeu e gritava “Prisioneiro político, devolvam o Lula!”, “Não tem prova e não tem crime, Lula Livre, Lula Livre”, “Fora milicianos!”, “Eu sou Lula”, “Lula está sequestrado!”, “Aponta o crime dele, mostra a prova!”, “Marielle, presente!”. Um grupo começou a cantar, na melodia do “Um elefante…”: “Lula livre incomoda muita gente. Lula livre incomoda, incomoda, incomoda, incomoda muito mais”.

Muitos celulares foram elevados para registrar a saída, que foi bem rápida. Ao subir no veículo da escolta, Lula se alçou na porta e deu um aceno ao povo. O delegado que o acompanhava teria dito: “Você não deveria ter feito isso”, ao que teria respondido Lula: “Você sabe que eu deveria”. Não tenho a fonte dessa história.

A carreata saiu.

Busquei escapar o mais rápido possível, pois já me imaginava disputando com mil pessoas um lugar dentro do ônibus da volta. Passei pelo portão onde os cinegrafistas tinham passado o tempo todo, desesperados por alguma imagem que não fosse um carro fechado passando. Filmavam, diligentes, um grupo de crianças do BNH ao lado que gritavam “Lula Livre”, pulando com alegria.

Não arrisquei diagnóstico a partir da aparência de Lula, mas vou opinar sobre a militância petista. Acho que no geral ela está em transe. Ela quer muito mudar mas não sabe como, nem sei se sabe expressar o que a oprime, prisioneira de uma narrativa que não comanda. Algumas tensões internas aparecem, como a raiva da base contra a impotência da direção, a luta social versus espera por ciclos eleitorais, ou até mesmo o secularismo versus cristianismo. O PT precisa mudar, por dentro ou por fora, para ter alguma relevância e não se desmanchar quando não houver Lula.

Peguei o Los Angeles 19 e desci no terminal Ferrazópolis. Já no ônibus 288, rumo ao Jabaquara, vi vários jovens foliões em busca dos blocos de São Paulo. A certa altura, embarcaram quatro moços e uma moça, mais de classe média e mais brancos do que a média do veículo. Os figurinos estavam de acordo com a ocasião: chapéu de pirata, purpurina, sainha de tule… Mas a máscara de papel que um deles trazia na mão me perturbou: talvez fosse encanação minha, mas reconheci o rosto estampado do policial civil Flávio Pacca, preso por extorsão na semana passada, ligado a Flávio Bolsonaro.

Desci na estação Jabaquara, tomei o metrô e fui para casa.

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