Diário: Ato pela Educação, secundaristas na avenida

No 23 de maio de 2019, secundaristas autonomamente organizados saíram em passeata pela Educação, sob forte presença policial.

Foto: Rogério de Sanctis

Saí na estação consolação do metrô para o ato dos secundaristas autonomamente organizados contra os cortes na educação. Eram 18h.

Segui a pé pela avenida Paulista e já vi parte do contingente policial posicionado: viaturas, PMs e atiradores em várias esquinas até o Museu.

Encontrei uma companheira no caminho. Ela tinha estado no MASP e disse que estava assustada, pois havia muita polícia mas poucos manifestantes. Disse que tinha conversado com pessoas lá sugerindo que não saíssem e que fizessem algum tipo de fórum ou assembleia para avaliar o evento.

Apressei o passo e deu para ver que realmente o efetivo policial era muito grande. No final do ato, contei uns 100 PMS de jaleco verde, 80 do BAEP (antiga Tropa do Braço), umas 60 motocicletas mais uns 30 PMs de apoio. Quando cheguei tinha uns 150 manifestantes. Não chegou a muito mais de duzentos, depois.

O clima estava péssimo mesmo. Quando chegava ao vão do MASP onde estavam reunidos os secundaristas, os PMs estavam formando uma barreira de uns 60 solados, isolando as moças e moços embaixo do vão. O recado era que eles não iam deixar a passeata sair.

Foto: Rogério de Sanctis

Dei um giro pelo vão e vi uns cartazes impressos: “Não é pelo Lula Livre, é contra os cortes na educação”. Vi as faixas, ainda no chão: “Menos cortes na educação”, outra “Estudantes em defesa da educação” e “Fora Bolsonaro. liberdade e Luta”. Vi um cartaz “Fora Bolsonaro e quadrilha. Chega de golpes”. Vi bandeira do PSTU, uma vemelho e negra, uma roxo e negra, uma da “Frente Antifascista de São Paulo”.

Avaliei que eram na maioria jovens de 18 a 20 anos, moças e moços. Já tinha alguma percussão que fazia barulho e acompanhava palavras de ordem contra Bolsonaro, os cortes e também contra Dória, incluindo “Que contradição, tem dinheiro pra milícia e não tem pra educação!”.

Encontrei A que me falou que a ideia era descer a avenida 9 de Julho até a Secretaria Estadual da Educação, na praça da República. Recebi um panfleto da vereadora Samia, vi bandeiras do PSOL, POR4, Notei que dois vendedores exibiam seus panos nas esquinas, e a maioria era de Lula Livre. Um moço vendia livros que arranjou sobre uma bandeira do MST, que estendeu no chão. Notei também que o megafone que eu ouvia era de uma senhora, que era quem levava o cartaz “O golpe do impeachment da Dilma abriu as portas do inferno no BR”, um petismo que que destoava da pauta mais autonomista do ato. Mas também notei que ela cedeu o megafone para a meninada e não monopolizou a voz. Vi passar E e o fotógrafo R, e depois o também fotógrafo L.

Um figura tinha preso um espelho naqueles totens pretos da avenida, instalado uma cadeira e um cartaz: “Barbeiro. Corte masculino ao vivo”. De fato, ele manejava tesouras e dava um trato na cabeleira do jovem que estava sentado.

Foto: Rogério de Sanctis

Fizeram um jogral e falaram da Previdência, da ração do Dória e da merenda, dos cortes na Educação. Pediram educação pública plural e de qualidade. Reiteraram que queriam marchar até a praça da República.

Uma moça trans negra vendia doces numa caixa plana aberta, e veio me falar que “o Bolsonaro deveria enfiar o dedo no cu” para relaxar e deixar de ser fascista. Concordei e disse que os filhos também.

Acabou o jogral e levantaram as faixas do chão e as colocaram lado a lado, formando um paredão. A PM na frente, uns 10 metros entre as duas fileiras. Muita palavra de ordem:

“Não vai ter corte, vai ter luta!”

“Deixa passar, a revolta popular!”

“Ai, aiaiia, aiaiaiaiaiaiiai, Bolsonaro é o carai!”

“Ih, fudeu, estudante apareceu!”

Acompanhei parte da discussão com os “mediadores” da PM. O oficial não queria deixar a passeata sair e dizia que ia ter consequências. Uma moça muito articulada com camiseta da Bancada Ativista falava muito bem e firmemente com o PM, colocando o ponto da liberdade de manifestação, mas de um jeito que ele não conseguia impor uma lógica de ordem militar. Um PM filmava a discussão. Dois outros moços, bem jovens, se colocaram também. Acabou que ele ia “consultar o comandante”.

A multidão de secundaristas de repente começou a se mover e a quase escorrer para fora do vão, evadindo a coluna de policiais de escudo e cassetetes. A coluna assustou e conseguiu, meio lentamente, se movimentar e barrar a passagem. Mas isso abriu um espação do outro lado, e a galera começou a correr para a avenida, congestionada de carros. Fiquei admirado com a coragem da meninada: muito atirador em volta, e isso de tentar ganhar da polícia na corrida é muito loucão.

Mas formou massa crítica na avenida, a PM meio atônita ainda, e o pessoal desceu a ladeira que ladeia o museu e vai dar numa rotatória atrás do MASP, que é a rua Prof. Otávio Mendes. De lá, era possível descer à 9 de Julho ou ainda subir à direita para a rua Itapeva. A faixa de abertura veio descendo com o povo atrás, sem muita correria. Chegamos na rotatória, que é a praça Arquiteto Rodrigo Lefreve, e deu para ver que os PMs da barreira, de jaleco verde, vinham descendo a ladeira que ladeia o museu do outro lado (a rua Plínio Figueiredo), tentando correr e chegar a tempo de bloquear o acesso à avenida 9 de Julho. Eram uns 50.

Foto: Rogério de Sanctis

O pessoal correu mas a maioria não chegou a a tempo e encontrou a barreira debaixo do viaduto. Ficou um impasse por vários minutos, face a face os dois grupos. O ruído era bem alto, reverberando no cimento da estrutura acima. Notei que dois homens da rua ficaram deitados o tempo todo em seus leitos de papelão, inescrutáveis, bem pertinho da linha de tensão.

O pessoal começou a escorrer para a rua dá acesso à rua Itapeva, a Carlos Comenale. Temi uma cilada, pois os policiais estavam agora totalmente mobilizados e conhecem o entorno. Descemos só um quarteirão da rua, logo entrando à direita na rua São Carlos do Pinhal. Dali, um pulo para a primeira à direita, que é uma rua calçada com vários estandes de comida, a chamada Feira Gastronômica. A moçada passou cantando “Acabou a paz, mexeu com estudante, mexeu com satanás – olha o capeta!”, e os clientes com seus hambúrgueres…

Logo passamos para a avenida, no meio dos carros. A via que leva ao Paraíso foi aos poucos esvaziando e o povo ganhou o asfalto. À altura da FIESP, a CET tinha organizado mais ou menos a parte deles e algumas motocicletas da PM estavam à nossa frente, e vi viaturas acesas atrás.

Foto: Rogério de Sanctis

A esta altura, tinha ficado claro que a repressão tinha escolhido evitar agressão com balas e bombas. Fiquei muito admirado com a energia da garotada, essa coisa de correr e deixar PM de escudo e capacete ofegando atrás dá muita vantagem tática. Encontrei M, que é da minha idade, e tentamos avaliar essa configuração da repressão em termos dos futuros atos dos dias 26, coxinha, e 30, do campo popular.

A moçada gritava muito:

“Greve geral, não é palanque eleitoral!”

“Não vão nos calar, Escola Sem Partido é a ditadura militar!”

“Tira a tesoura da mão, tira a tesoura da mão, tira a tesoura da mão, investir na educação!”

O povo avançava sem muita pressa pelo asfalto. Duas colunas de PMS verdinhos vieram em marcha acelerada e aos poucos ladearam a passeata, como é usual quando querem exercer pressão mas sem agressão física aberta.

Passamo pela frente do prédio da Gazeta, onde hoje tem uma universidade, a Cásper Líbero, cujos estudantes observavam o movimento. “Se você paga, não deveria, pois educação não é mercadoria!”. Notei entre nós uma faixa “Mate Bolsonaro com suas próprias armas. Antifas”. Vi uma moça com uma máscara do Bolsonaro diabo, muito estranho.

A noite tinha caído totalmente.

Depois de passar a esquina da avenida Brigadeiro Luiz Antônio, uma barreira de motocicletas bloqueava a rua. As duas colunas de PMs se reposicionaram e cercaram totalmente o povo, agora umas 100 pessoas. Uma coluna do BAEP chegou, com seus gorros, escudos e atiradores, e fecharam o terceiro lado do quadrado (o quarto lado era a fachada da Casa do Japão). Estavam na via que leva à avenida Consolação. Notei que os atiradores miravam suas armas à altura da cabeça dos manifestantes.

Foto: Rogério de Sanctis

Ficou o impasse. Muita tensão e enorme perigo. Eram 19:20 e contei uns 120 PMs, mais 60 BAEP, mais as motos e apoio.

Nessas horas me dá aquele incômodo de decidir onde ficar. Mais velho, de caderninho e de cor branca, me é fácil passar por imprensa e buscar lugares onde é possível ver a violência mas não ser alvo dela – exceto quando é muito grande e o bololô é geral. Era possível entrar no quadrado e ficar com a meninada. Mas eu, com os fotógrafos e passantes, fiquei de fora. Ouvia o rádio da PM, algumas conversas de policiais. Seria um massacre horrível se o pior acontecesse. Não havia saída: era o clássico Caldeirão de Hamburgo.

Foto: Rogério de Sanctis

O impasse durou uns 15 minutos. A avenida parada nos dois sentidos. A meninada não se intimidava e pedia “Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar” e “Chega de chacina, eu quero o fim da PM assassina”.

Encontrei R, e N, e ainda G, que me contou que estivera dentro de um Caldeirão durante as manifestações da Copa e que seu coração estava disparado. Um ciclista entregador passou gritando “Maconheiros!”.

Alguém gritou “Fora Bolsonaro!” do alto de uma janela e o povo aderiu. Um pequeno grupo de jovens, dentro do quadrado, ensaiou cantar “Caminhando e cantando,seguindo a canção…”.

Foto: Rogério de Sanctis

Um novo jogral informou que a PM ia permitir a caminhada até a Secretaria da Educação! Terminaram o jogral com “Dia 30 vai ser maior! Rumo à greve geral!”.

A PM foi se posicionando devagar, e afinal liberou duas faixas para o trânsito conseguir fluir pela esquerda. Eram 19h42.

A passeata seguiu ladeada pela esquerda e direita, um quadrado de motocicletas na frente, mais as viaturas atrás. Esse nível de proximidade entre as partes faz com que um jogo psicológico aconteça: a faixa de trás busca afastar as viaturas que vem na cola, as motocicletas da frente buscam ora obstruir, ora deixar espaço. Em uma ocasião, pararam seus veículos, desmontaram das motos e ficaram de pé, encarando a passeata agora parada, braços cruzados e cara de mau. Ficaram um tempo e voltaram às suas montarias.

A energia não baixou e seguimos pela avenida.

“Sou estudante, não sou ladrão, não vim aqui pra sair de camburão”

“Não vai ter corte, vai ter luta!”

E, em frente ao Shopping Cidade de São Paulo: “Ei, burguês, a culpa é de vocês!”.

Nessa hora notei a série de cartazes pendurados ao alto, no canteiro central da avenida. Acho que é um sindicato que comprou ou alugou o espaço, e trazia imagens e cartuns de Angeli e Laerte. Alguns são muito bons, e era loucão ler as mensagens cercados de secundaristas e mais de 200 policiais. Em um dos cartazes, um juiz pergunta, de malhete na mão (aquele martelo deles): “ A opinião pública já chegou a um veredito?”. Outra traz um moço sentado num banco de praça, lendo um livro, mas cercado de uma multidão, de onde um homem ao megafone ordena: “Saia com seu livro para cima! Você está cercado de ignorância!”. A certa altura, uma secundarista também sacou a graça dos cartazes e ria muito apontando para cima. Sorri com ela.

Notei que um outro moço tinha um caderninho à mão e fui conversar. Era repórter.

A FIESP estava acesa, mas com um padrão meio genérico. Tinha palavras: “running safe” e “Tente outra vez”, com uma caveira cruzada por dois fêmures.

Foto: Rogério de Sanctis

A meninada cantava:

“Somos todos antifascistas!”]

“Aha! Uhu! Eu só quero estudar!”

“Que contradição, tem dinheiro pra banqueiro mas não tem pra educação!”

G chegou perto e disse “Agora vem a parte perigosa”. Referia-se à descida da Consolação, que historicamente é o lugar onde a repressão pega pesado. Aconteceu inúmeras vezes. Além disso, é escuro, não tem ninguém, e o paredão do cemitério, num quarteirão longo, configura lugar perfeito para encurralamento.

Na esquina da rua Augusta, vieram me falar que iríamos parar na praça do Ciclista, que é bem na esquina da avenida Consolação. Achei incrível, eu já estava exausto de acompanhar a meninada, pés doendo e ciático reclamando. Eram quase 20h30 e eu já projetei, agradecido, minha imagem em um boteco da redondeza que eu sabia ter mesa grande, tomada e internet.

Paramos no asfalto ao lado da praça e um jogral foi feito: chamou o dia 30, o dia 14 de junho que é a greve geral. Rolou ainda um sonoro “Ei Bolsonaro, vai tomar polícia, pois no cu, eu garanto, é uma delícia!”.

Foto: Rogério de Sanctis

Mas tinha gente querendo seguir pela Consolação. Votada e aprovada a moção, saímos e tomamos a direita para descer em direção ao Centro. Pensei em parar ali e sair fora, mas decidi seguir com eles, a esta altura eu queria saber como tudo ia acabar. Mas fui à frente da passeata, para checar as travessas e avisar se visse perigo.

Rolou que não, apenas o agora já tradicional Caveirão da polícia, um carro blindado que aparece um carro de assalto medieval, fabricado em Israel. Ele sempre aparece, quando tem passeata, estacionado na garagem do Corpo de Bombeiros.

Descemos pela avenida escura e a meninada ainda muito vocal. Tentei lembrar se eu também, com aquela idade, tinha toda essa energia. Notei que três meninos da rua, um com skate, andavam conosco.

Fiquei felicíssimo do povo cantar “Doutor, eu não me engano, o Bolsonaro é miliciano!”, que é uma reescrita de uma marchinha de carnaval que ouvi no Sílvio Santos em alguma tarde perdida da infância.

Notei dois figuras que filmavam a passeata, parados na calçada ao lado de uma moto, um visual muito heavy metal. Desconfiei.

Passamos perto do colégio e universidade Mackenzie, o que rendeu palavras de ordem:

“Mackenzie, racista, Mackenzie, fascista”

“A verdade é dura, o Mackenzie apoiou a ditadura!”

Passando pelo cruzamento da rua Maria Antônia:

“Pobre informado, perigo pro Estado!”

“Preso formado, perigo pro Estado”

Em frente à igreja da Consolação, notei entre nós um homem da rua, que gritava, extático: “Ô Bolsonaro, você tem que ser castrado!”.

Já na frente do COPAN, tem uma hamburgueria , a“Bullburger”. Notei que os 10 motoboys entregadores olhavam o movimento da galera meio perplexos. Não falaram nada.

Foto: Rogério de Sanctis

Eram 21h20 quando chegamos finalmente à praça da República, em frente a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo.

Fizeram um último jogral, contrastados com a iluminação cênica do prédio da Educação. Todo o efetivo policial se perfilou e pude contar todos: mais de 250 indivíduos. G comentou que “a ação direta já foi feita quando obrigamos o estado a mobilizar tanta gente e gastar com todo o aparato”.

Aproveitei para avaliar a mobilização de hoje. Dividi minha opinião em dois.

Por um lado, admirei a coragem e arrojo da moçada de ter desafiado a PM e ter chamado seu blefe: o desfile de equipamento e tropas era só balão, eles já tinham ordens de não barbarizar, e a meninada ganhou a cartada. Se eu fosse secundarista e tivesse votado naquela hora, ainda no MASP, teria preferido não sair. Mas teria que admitir, depois, que ter saído foi mais potente do que ficar. Do modo que foi, ficou revelado que a direita no poder não sabe bem como lidar com a rua ainda. Por outro lado, temos um governo de extrema-direita é isso é muito sério e novo. A questão do isolamento do movimento é enorme e não pode ser ignorada, é um momento muito ruim de sair pequeno e sozinho. Por mais que se queira depurar e separar quem considera o estado e quem o nega, formar maiorias certamente é caminho a seguir. Percorrer a via do sectarismo hoje me parece uma rota suicida. Não há vontade que supere as condições objetivas da mobilização.

Tomei o metrô e fui para casa.

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