Governo decide pelo AI-5

O AI-5 foi passou a valer a partir de ontem – na forma de uma reconstituição online.

A reunião do Gabinete de Segurança Nacional que decidiu pela instauração do regime ditatorial aberto no Brasil em 1968 foi reencenada por grupo de teatro a partir da ata oficial do encontro, guardado nos arquivos oficiais.

A pandemia e o isolamento têm forçado adaptações em todas as áreas. O teatro, quase por definição presencial, tem lançado mão dos recursos digitais, também explorando a linguagem telemática. A reflexão artística sobre o ubíquo formato “zoom”, de múltiplas telas e “cabeças falantes”, hoje familiar por causa das inúmeras reuniões remotas dais quais participamos, tem sido realizada por vários artistas. Esta performance reencenou ao vivo a reunião governamental de 1968, tirando proveito da ferramenta de encontro remoto.

O grupo já vinha trabalhando com o texto da reunião que decidiu pela implantação do AI-5. Ao longo de pelo menos 4 anos, várias montagens do texto já foram realizadas em diferentes ocasiões. Com origens no teatro verbatim, que encena textos documentais tais quais, palavra por palavra, a dramaturgia do grupo evoluiu ao longo dos anos, ao mesmo tempo que tenta lidar com os desafios narrativos de um texto burocrático.

O interesse do texto, porém, não é meramente arqueológico. Há rico material dramático, já que a reunião ministerial – tal como evidenciada pelo revelador vídeo da reunião da equipe de governo Bolsonaro – não é um fórum de debates e de persuasão argumentativa, mas uma arena de rituais declarativos de apoio ou repúdio por parte de homens brancos: mais uma dança de acasalamento do que genuína troca de ideias.

O texto da reunião sobre do AI-5 vem ganhando perturbadora atualidade no Brasil recente, estando presente em manifestações e carreatas bolsonaristas, culminando na prisão de Fabrício Queiroz, em cujo esconderijo havia um pequeno cartaz com o fatídico acrônimo. O interesse do trabalho do grupo com o texto histórico só faz crescer.

Há inúmeros paralelos com o cenário político atual que chamam a atenção. O primeiro deles é o caráter civil-militar da ditadura brasileira. Fala-se, na reunião de 1968, da “união entre o militar e o político”, isto é, do consórcio civil-militar que operou o arbítrio. Havia vários civis presentes na reunião do Gabinete de Segurança Nacional dando o aval ao endurecimento do regime, incluindo o então ministro Delfim Netto. Ademais, o papel de Poder Moderador, no Império desempenhado pelo imperador, é arrogado insistentemente às Forças Armadas, tanto em 1968 quanto hoje. Um ministro militar chega a dizer francamente que “a democracia só existe por vontade das Forças Armadas”.

É muito interessante como o momento político de então é avaliado como de ameaça ao regime e de reação defensiva por parte do governo militar. Apesar do motivo trivial, o endurecimento do regime é apresentado como uma continuação ou intensificação do “processo revolucionário”, como reação a um suposto perigo comunista. Afirma um ministro: “ou a revolução [o golpe militar] avança ou se desagrega”. Outro ministro usa metáforas médicas para discorrer sobre a necessidades de atos ditatoriais: “não se usa pomada onde a amputação se mostra necessária”. A sensação de que o governo Bolsonaro se entende como uma espécie de antecâmara de um novo regime ficou aguçada na reencenação online de hoje.

O motivo trivial fora o discurso do deputado Moreira Alves, que, reagindo ao recente assassinato do estudante Édson Luis de Lima Souto, pedia que os estudantes se recusassem desfilar no 7 de Setembro ao lado dos militares, pedindo mesmo às mulheres brasileiras que não namorassem cadetes e fizessem greve de sexo!

A reconstituição da reunião mostra também que a impunibilidade dos crimes cometidos na futura repressão foram pré-perdoados no texto do ato institucional. Hoje chamamos isso de “excludente de ilicitude”.

Algumas intervenções dramatúrgicas ajudam a dar contexto histórico mínimo à reunião, na forma de inserções gráficas e de trechos de áudio. Algumas falas atuais foram salpicadas ao longo da reunião, que são prontamente reconhecidas e ajudam a dar um sabor mais picante ao encontro.

Mas talvez o maior desafio dramatúrgico seja a tentativa de trazer para a cena o Brasil que foi excluído da narrativa burocrática ao mesmo tempo que é o objeto de toda a trama ditatorial. Isso é feito pela inserção do áudio do relato de Amélia Teles à Comissão da Verdade, onde reporta parte da tortura que sofreu nas mãos da ditadura. Já a voz de Elza Soares encerra os trabalhos, soando depois de quase 2 horas de espetáculo.

A reconstituição da reunião do AI-5 será novamente encenada ao vivo no dia 1 de Agosto (sábado) 18h, no youtube.

A peça é trabalho do coletivo Redes de Resistência, que preparou uma programação que já está em andamento e continua até o dia 9 de agosto, a Terceira Ocupação Cultural (https://www.youtube.com/channel/UC50j5Ed8SGDrOI-qFt5p6tw).

Abaixo, segue o restante da programação.

27 de julho (segunda) 20h – Debate-papo:  Travestis na Dituradura: subversão ou sobrevivência?
Convidados: Helena Vieira, Ave Terrena e Renan Quinalha
Mediação: Sui Teixeira
28 de Julho (terça) 20h – Esperando Godot – Primeiro Ato  
Direção: Ricardo Socalschi
Elenco: Gero Santana, Paulo Maeda, Thammy Alonso
29 de Julho (quarta) 19h – Debate-papo: Repetições na História: Golpes, AI-5 e Pandemia
Convidados: Adriano Diogo e José Luis del Royo
Mediação: Paulo Maeda
30 de Julho (quinta) 20h – Esperando Godot – Segundo Ato
Direção: Ricardo Socalschi
Elenco: Gero Santana, Paulo Maeda, Thammy Alonso

31 de Julho (sexta) 19h – Link Aberto

01 de Agosto (sábado) 18h – AI-5, uma reconstituição online
Direção: Paulo Maeda
Assis. de direção: Letícia Negretti e Rodolfo Morais
Elenco: Grasielli Gontijo, Ricardo Socalschi, André Castelani, Fernando Pernambuco, Cristiano Alfer, Heitor Gomes, Dover Buzoni, Caio Marinho, Mario Panza, Thiago Meiron, Thales Alves, Plínio Flima, Michel Galiotto, Danilo Minharro, Felipe Tercetto, Paulo Gircys, Ramon Gustaff, Rodolfo Morais, Gero Santana, Roberto Mello e Luiz Campos

02 de Agosto (domingo) 18h – Cine-clube: Poéticas da Resistência (via ZOOM)
Filme: Torre das Donzelas
Debate-papo com Susanna Lira e Paula Franco
Mediação: Nathália Bonilha

03 de Agosto (segunda) 20h – Mostras de Processos
Convidados:
Núcleo CInA: A Dita Consequência a Duras Penas de Ontem e  Hoje
Vídeo Solo Dança/Teatro
Artista – Maria Lúcia Branco.
Duração- 7 minutos.

Cia. Híbrida: Violências Urbanas
Teatro/Vídeo
Artistas – Juliane Maria, Letícia Negretti, Paulo Maeda, Ramon Gustaff, Felipe Tercetto, Rafael Castro, Dover Buzoni e Thales Alves
Duração – 25 minutos

Teatro Cartum: Contos Ilustrados – Cruz de Giz
Vídeo/Animação
Artistas: Letícia Negretti, Thonny D´Agostinho, Ricardo Vianna e William Germano
Duração – 5 minutos

Letícia Negretti: Beberei Menos Se Me Amares Mais (Abertura de Processo)
Texto e Criação: Letícia Negretti
Direção Nathália Bonilha
Duração – 10 minutos

04 de Agosto (terça) 20h – Habeas Porcus
Direção: Cristiano Alfer
Elenco: Letícia Negretti, Michel Galiotto e Thiago Marques

05 de Agosto (quarta) 20h – Mostras de Processos
Núcleo CInA – Corpus Infinitus na Arte – O Confinamento no Corpo e no Espaço
Vídeo solo dança/Teatro
Artista – Maria Lúcia Branco.
Duração- 7 minutos.

Coletivo Yorick – Ceci n´est pas une démocratie – Isso não é uma democracia
Vídeo/Teatro
Artistas – Felipe Tercetto e Paulo Maeda
Duração – 4m

Teatro da Neura
Teatro/ Video
Linhas de pesquisa: Teatro Político e Sociedade & Realismo Fantástico
“A adaptação do fazer teatral para o audiovisual”
Artistas – Flávia Gonçalves, Lígia Berber e Michel Galiotto
Dureção: 2 vídeos de 3 minutos cada

Cia Ato Reverso – Projeto “Autoetnografias em cena” apresenta recortes dos trabalhos
“Encontros comigo mesma ou Em busca da pessoa útil que há em mim ” – artista Nathália Bonilha
“Minha avó era uma árvore” artista – artista Diane Boda e trilha sonora Léo Magnin
Vídeo-performance
Duração: 12-15 min

06 de Agosto (quinta) 20h – Capitanias 2020 – Coletivo Yorick
Direção: Paulo Maeda
Assistente de Direção: Luiz Campos
Elenco: Danilo Minharro, Diane Boda, Felipe Tercetto, Grasielli Gontijo, Heitor Gomes, Jamile Rai, Lécio Rabello, Letícia Negretti, Lola, Marcial Macome, Nathália Bonilha, Paulo Gircys, Thiago Meiron

07 de Agosto (sexta) 19h – Link Aberto

08 de Agosto (sábado) 20h – ContrAI-5
Direção: Nathália Bonilha
Dramaturgia: Letícia Negretti
Elenco: Ana Lúcia Felippe, Beatriz Belloti, Denise Muramatsu, Diane Boda, Elaine Lopes, Grasielli Gontijo, Isadora Titto, Jamile Rai, Jordania Miranda, Juliane Maria, Junia Magi, Letícia Negretti, Maria Lúcia Branco, Mariá Guedes, Nathália Bonilha, Sui Teixeira, Teka Romualdo e Thammy Alonso

09 de Agosto (domingo) – Cine-clube: Poéticas da Resistência
Filme: Nuvem Baixa
Debate-papo com André Okuma
Mediação: Felipe Tercetto e Renato Mendes

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