Poderá a juventude enfrentar o apartheid vacinal?

OMC resiste à quebra das patentes, com protelações e jogos de cena. Mas cresce, em universidades de todo o mundo, movimento que frisa: reter a tecnologia é crime, inclusive porque a pesquisa foi financiada por fundos públicos

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Por Alan Rossi da Silva e Luciana N. M. Lopes

A ordem econômica vigente tem subjugado o Sul Global por séculos. Isso não é novidade para nós. No entanto, a pandemia do Covid-19 deu início a um dos capítulos mais agudos desta história. Nosso povo está morrendo em massa.

Tentando responder a essa situação insustentável, em outubro de 2020, países do Sul Global instaram a Organização Mundial do Comércio (OMC) a adotar medidas para mitigar os efeitos da pandemia em seus territórios e apoiar seus esforços para salvar a vida das pessoas. A Índia e a África do Sul, enraizadas em sua própria luta histórica contra efeitos negativos dos direitos de propriedade intelectual, exigiram a suspensão de certas disposições do acordo TRIPS (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio) para a prevenção, contenção e tratamento da covid-19. A iniciativa ficou internacionalmente conhecida como TRIPS Waiver.

Apesar dessa clara reivindicação de solidariedade do Sul Global, mais de um ano depois, esse debate tem sido vergonhosamente adiado na OMC. Pressionados por empresas transnacionais, uma minoria dos chamados “países desenvolvidos” tem se dedicado a atrapalhar as negociações. Todas as mortes e sofrimentos têm sido reduzidos a um imenso teatro, no qual atores poderosos têm tentado ao máximo atrasar, limitar ou bloquear completamente o final desse dramático espetáculo.

O movimento mais recente dessa coalizão que prefere proteger lucros em vez da vida acaba de se tornar público. Um documento vazado revela os detalhes de um “acordo” entre Estados Unidos, União Européia, Índia e África do Sul que acabaria com esse “impasse” na OMC. Afastando-se da proposta original, o escopo desse acordo seria restrito (i) a vacinas (excluindo outras importantes tecnologias em saúde, como medicamentos e testes diagnósticos) e (ii) a patentes (excluindo outros importantes direitos de propriedade intelectual, tais como segredos comerciais, desenhos industriais e direitos autorais).

É bastante claro para nós que o que tem sido chamado de “acordo” é, na verdade, apenas mais um exemplo claro do projeto histórico de subjugação do Sul Global. E o que tem sido reivindicado como solução para um “impasse” nada mais é do que uma forma tardia, ineficaz e desrespeitosa de tentar silenciar nosso sofrimento.

Apesar deste ser um movimento que faz parte de um ato ilusório tradicional, essas potências econômicas não estão conseguindo vender esse “compromisso” como uma vitória crível para a humanidade ou como uma solução razoável. A verdade é: chegamos a um momento na história em que eles estão tão à vontade que nem se dão mais ao trabalho de fingir.

Entretanto, mesmo que nossos governos, pressionados pelos jogos globais de poder, decidam fechar os olhos para sua própria população e render-se, queremos deixar uma coisa clara: não somos nossos governos. Sabemos que esta é a mesma velha história — “apenas negócios” — e não vamos comprar esse “acordo” como uma vitória.

Derrotas sucessivas não estão minando nossa esperança. O fato de nossas cartas abertas, artigos de opinião e múltiplas reivindicações não estarem sendo ouvidas não nos desencoraja. Pelo contrário. As coisas estão mais claras do que nunca. Esses revezes estão impulsionando o surgimento de uma força totalmente nova: um número crescente de jovens ativistas tem se engajado e revigorado nosso movimento. A geração pós-TRIPS está se conscientizando do que aconteceu. Estamos entendendo o que foi feito com nossos pais, o que está planejado para nós e o que estão pretendendo fazer com nossos filhos.

Enraizados nas lutas de nossos ancestrais e cientes das transformações de nossa época, estamos prontos para responder ao nosso próprio chamado histórico e continuar lutando por justiça. O apartheid da Covid-19 é uma bomba que está explodindo agora e que, certamente, será ouvida mais tarde. Apesar de sua aparente estabilidade, não é sensato apostar na durabilidade do sistema de propriedade intelectual vigente. A hora de honrar nossos mortos está chegando e nenhum sistema injusto será capaz de resistir a nós.

Isso não é uma ameaça nem um lamento juvenil. Esta é simplesmente uma declaração direta de um grande número de corações que estão cansados ​​de todo esse sofrimento e injustiça. Este é um resultado inevitável de séculos de exploração e indiferença. Não subestimem nossa resiliência. Os tempos estão mudando: agora é hora de todos nós atendermos aos nossos chamados e abandonarmos completamente todos os tipos de vitórias ilusórias.

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