Com cortes, universidade é devolvida às elites

Estudo mostra quais as várias barreiras enfrentadas pelos estudantes de baixa renda que conseguiram entrar na universidade pública. Os auxílios abrem alternativas, mas estão sendo cortados. Pouco a pouco, o ensino superior volta a ser inacessível

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Por Fabiana Moraes no The Intercept Brasil

Que a entrada no ensino superior é um sonho acalentado por muitas pessoas a gente já sabe, e que o aumento efetivo de uma população mais pobre nas graduações é uma realidade nacional, também: segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, o Inep, a presença das classes de menor renda na universidade aumentou seis vezes em 20 anos.

O que ainda é pouco discutido, porém, é que ingressar na universidade é “só” mais uma etapa na corrida por formação e melhores condições de vida no país. Permanecer – ou não – durante, em média, 4 anos de curso é outra grande questão justamente para as pessoas mais pobres. As razões são diversas: necessidade de conciliar emprego, estágio e aulas; eventuais defasagens proporcionadas pelo ensino básico e/ou fundamental (público ou privado); falta de dinheiro; sofrimento mental; dificuldades em obter auxílios ou bolsas; etc.

Significa dizer que, se entre quem tem menos dinheiro no bolso, chegar a uma graduação é bem difícil, finalizar o curso e sair com conhecimento na cabeça e diploma na mão são outros tantos quinhentos. Desde 2016, quando, por exemplo, os arrochos começaram ainda mais fortes nas federais, o crescimento da baixa renda nas universidades está estagnado, como mostram os dados do Inep. É o retorno de uma sombra do passado, quando o ensino superior era benesse quase exclusiva dos mais ricos no país.

Foi por muito pouco, por aquele triz capaz de mudar completamente a vida da gente, que a estudante Roberta Bolívar, 26 anos, não abandonou o curso de medicina na Universidade Federal de Pernambuco, a UFPE. Roberta, mineira que saiu da periferia de Belo Horizonte em 2016 para vir estudar no Nordeste, entrou no ensino superior através do Sistema de Seleção Unificada, o Sisu, do Ministério da Educação, o MEC.

Filha de um PM de baixa patente e de mãe professora do ensino fundamental, ela representava tanto orgulho quanto um obstáculo naquele momento: a renda familiar era de R$ 3 mil brutos, pouco dinheiro para dar conta de três pessoas (a estudante, sua irmã e a mãe, que não chegou a morar com o pai de Roberta). Dava ainda menos conta da necessidade de pagar aluguel, alimentação e transporte para a possível futura médica em outra cidade. A mãe da jovem, aposentada, passou a produzir artesanato para complementar a renda. Também recorreu a empréstimos e se endividou.

Roberta foi morar em Caruaru e dividia um apartamento com mais duas pessoas, o que barateava as despesas. Mas a distância da família, o pouco dinheiro, a falta de uma rede mínima de apoio por perto e a instabilidade na nova residência provocaram arranhões graúdos na saúde emocional da jovem. Um ano depois, Roberta voltou para BH e sofreu outro baque: a mãe a procurou para dizer que já não tinha condições de manter os custos da filha estudando em outro domicílio. Ela teria que abrir mão de todo esforço dedicado.

Foi a partir disso que ela procurou uma advogada e, posteriormente, o pai, que estava distante e pouco contribuía. Ele, que também estava aposentado mas voltou a trabalhar, concordou em pagar R$ 1 mil mensais para que a filha conseguisse se manter. Esse valor aumentava (ou não) a depender dos ganhos que os pais da estudante obtinham mês a mês.

A situação melhorou, mas não durante muito tempo: as altas sucessivas na inflação elevaram os custos de alimentação, moradia, internet, energia elétrica, etc. O aperto, dividido com os estudos intensos do curso de medicina, voltou, mas Roberta não podia solicitar um dos auxílios estudantis oferecidos pelo MEC. Segundo ela, a renda da família era pouca para pagar todos os compromissos, mas era alta para obter ajuda financeira da instituição federal. “Não se leva em consideração, por exemplo, que você vem de outro estado e consequentemente paga muito mais por isso” (na verdade, existem auxílios-moradia, como veremos, mas os cortes orçamentários comuns nos últimos anos limaram editais diversos para obter os mesmos).

A solução, para a estudante, foi realizar alguns trabalhos como modelo, renda fundamental para dar conta do período pandêmico, quando a renda familiar caiu mais ainda. Roberta, que já estava trabalhando em hospitais quando o vírus chegou, conseguiu concluir a primeira etapa do curso em janeiro deste ano e agora tem mais dois anos de formação prática pela frente. Pretende complementar a renda com plantões e prestar concursos para residência médica.

Estudante de medicina, Roberta trabalha como modelo para custear as despesas de viver longe de casa.
Foto: Arquivo Pessoal/Roberta Bolívar

É bem importante expor que casos como o de Roberta não devem ser lidos pela chave de uma romântica “superação” individual. Histórias como a dela são coletivas e extremamente comuns. Posso contar várias estando posicionada de dentro: faço parte do corpo docente da mesma UFPE, justamente do campus de Caruaru, nascido dentro do Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, o Reuni, criado em 2003. Com ele, foram inauguradas, até 2010, 14 novas universidades e mais de 100 novos campi. Foi uma das medidas mais efetivas para a democratização do ensino superior do Brasil, criando milhares de novas vagas e proporcionando formação de qualidade também longe dos centros e capitais.

Mas o cotidiano nessas instituições mostra como essa chegada na universidade pública não é o fim de um movimento, mas ainda seu longo processo. Posso citar, só de cabeça, vários casos que tornam a permanência nos cursos extremamente instável: lembro-me bem quando diversos estudantes que moravam em cidades vizinhas (Cupira, Panelas, Sairé etc.) iam para o campus com o transporte gratuito oferecido pelas prefeituras de seus municípios. Diversos chegavam cobertos de suor e extenuados em sala de aula, isso porque muitos motoristas se recusavam a sair da BR-104 e adentrar a pista que leva até a universidade, um percurso curto para quem estava motorizado, mas longo e inseguro para quem estava a pé e caminhando sob temperaturas altas. Na volta para casa, quase noite, o constrangimento se repetia, e era preciso voltar para a BR e ali permanecer, sem ponto de parada ou qualquer estrutura mínima de conforto e segurança, à espera do transporte.

Quem conseguia pagar vans, cerca de R$ 500 mensais à época, não enfrentava o mesmo perrengue. Em 2017, fizemos, na Agência Experimental de Comunicação da UFPE, a Aveloz, uma reportagem especial contando as tantas dificuldades de várias alunas e alunos do interior do estado em chegar à sala de aula por conta do transporte.

“Muitos estudantes de baixa renda que entram na universidade vêm de um longo período de tentativas, são sobreviventes. Passam por uma série de filtros. Quem mais conclui o ensino médio, e nas idades consideradas adequadas, ainda são as classes mais altas. Pessoas pobres que chegam à universidade conseguiram terminar a educação básica e assimilaram entrar no ensino superior”, diz o pesquisador Gustavo Bruno de Paula, autor da tese “Desigualdades sociais e evasão no ensino superior: uma análise em diferentes níveis do setor federal brasileiro“, defendida ano passado na UFMG. O ensino médio é o período escolar com maior taxa de evasão no Brasil: de acordo com o IBGE, 11,8% dos jovens entre 15 e 17 anos estavam fora da escola em 2018, algo como 1,2 milhão de pessoas sem atividade educacional.

O estudo da UFMG, baseado em dados de ingressantes de 2016 (o mesmo de Roberta), tinha como um dos intuitos saber até que ponto a evasão estava associada à origem social dos estudantes das federais, o que nem sempre foi uma realidade de acordo com os resultados obtidos. A pesquisa adotou um procedimento inovador, separando a evasão do curso ou instituição da evasão do sistema do ensino superior.

Gustavo descobriu, por exemplo, que o abandono de um curso universitário pela escolha de outro é algo considerável nestes dados. Ou seja, o que a princípio parece evasão pode ser mobilidade. No entanto, essa realidade é mais frequente justamente entre estudantes de maior renda, que podem contar com melhor estrutura e prolongar, por exemplo, o tempo de formação até conseguir lugar nos postos de trabalho.

Com estudantes de baixa renda o movimento é outro: quem consegue ingressar na universidade procura manter a todo custo a vaga conquistada. “Muitos estudantes são jovens adultos e não estão certos sobre o que escolher, boa parte pode não acertar de primeira aquele curso e acaba se redirecionando. Muitas vezes essa mudança pode ser positiva, uma correção da trajetória para o que a pessoa deseja profissionalmente. Meu argumento na tese é que são os estudantes com mais vantagens sociais, com mais condições socioeconômicas, que podem fazer esse tipo de movimento, enquanto para as camadas populares isso é mais arriscado. Podem se arrepender de novo, podem atrasar a entrada no mercado de trabalho.”

É por conta de fenômenos assim, que sugerem um olhar mais delicado sobre a evasão universitária, que o pesquisador chama atenção: as bases de dados podem esconder diversas dimensões da desigualdade. “É necessário observar a vivência acadêmica, perceber como os estudantes estão sobrevivendo, avaliar a qualidade dessa permanência. A evasão não é a única forma de estudar a questão”, continua ele, para quem, neste sentido, os auxílios estudantis são vitais para garantir a estabilidade estudantil em uma série de casos, mas não só.

“Percebemos que receber ou não o auxílio tem um impacto muito grande sobre a chance de permanência do estudante, é um dos principais efeitos positivos. Mas eu acho que temos que fazer mais pesquisas nessa direção. A assistência precisa ser não só acadêmica, mas social também. Muitos professores assumem que estudantes entram com autonomia escolar, e não é assim.” Na tese, na qual há também 12 relatos de universitários evadidos da UFMG, nos aproximamos dessa realidade através da experiência de Felipe, filho de mãe doméstica e pai pedreiro.

A nota no Enem não permitia que Felipe adentrasse o curso desejado, psicologia. Através do Sisu, ele optou, como segundo curso, por estatística. Estava convencido, através de relatos de amigos, de que arrumaria emprego mais rápido. Foi selecionado para a UFMG e UFSCar. Escolheu a primeira. Já nos primeiros seis meses de curso, ficou claro que ele tinha não só muita dificuldade no domínio da matemática, mas mesmo nas formas de estudar. Na pesquisa de Gustavo, ele, que abandonou o curso rapidamente, conta:

“Eu acho que a grande frustração foi que eu não pensei que precisaria estar preparado o quanto eu precisava pra fazer esse curso. Eu bem dizer nem sabia estudar. Tipo, cheguei ali, fui tentando fazer o que dava. Mas não tava entendendo nada das aulas. Não tava em condições pra fazer aquele curso (…) Você vai precisar ter uma base, senão você não vai construir nada em cima daquilo.”

Diploma em viração

A já citada interiorização dos cursos, somada à mobilidade permitida pelo Sisu, tanto são responsáveis por mudanças positivas na configuração universitária quanto exigem cuidados específicos. Uma das questões mais comuns é a mudança de domicílio de estudantes que, por conta disso, ou precisam morar em residências universitárias ou alugar quartos ou apartamentos. Por essa razão, as universidades públicas também oferecem, via MEC, auxílio complementar moradia (que podem chegar a R$ 800 quando somados a auxílios como o alimentação, a depender de cada instituição).

Mas os diversos cortes orçamentários realizados nas instituições nos últimos anos, esvaziando ou impedindo milhares pesquisas e muitas vezes o funcionamento básico das federais, também chegou a estes incentivos cabais. Segundo Jônatas Felix da Silva, da Pró-Reitoria para Assuntos Estudantis da UFPE, dois editais (de assistência estudantil e de moradia) que regularmente aconteceriam em 2020 foram suspensos no primeiro semestre em virtude da pandemia e não foram retomados por conta dos cortes orçamentários. Os editais do segundo semestre do mesmo ano não foram lançados. “Em 2021, apenas um edital foi lançado, tendo havido a inclusão de, até o momento, 640 estudantes. Normalmente, neste período (2020-2021) haveria quatro editais, dois de assistência estudantil e dois de moradia estudantil”, conta.

Segundo Jônatas, a UFPE não realizou nenhum corte ou reduções de bolsas em decorrência das tesouras no orçamento, o que chegou a ser cogitado. A pandemia, no entanto, foi outro motivo para a evasão, fazendo com que houvesse mais saídas que ingressos de estudantes no universo de pedidos de auxílio. Em dezembro de 2021, a UFPE realizou o pagamento de 7.211 bolsas e auxílios para 4.736 estudantes (segundo dados de 2020, 28.989 estudantes de graduação estavam matriculados naquele momento).

Hoje, para conseguir ingressar nos auxílios estudantis, os estudantes precisam ter renda per capita inferior a um salário mínimo e meio, como determinado pelo Programa Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes). “A diferença entre os estudantes de maior e menor renda está no nível de bolsa em que são classificados. As bolsas de manutenção estudantil 2 são para os estudantes menos vulneráveis e a bolsa de manutenção estudantil 1 para os mais vulneráveis”, explica.

Emanuele Santos, 25 anos, foi uma das pessoas que precisou apertar os cintos durante meses por conta da suspensão dos editais. Aprovada no curso de comunicação social da UFPE em 2019, ela terminou reprovando o primeiro período: não conseguiu cursar as disciplinas por conta de um trabalho que realizava na época. “Queria ser demitida, mas não quis pedir a saída para não perder os direitos trabalhistas. Estava há 4 anos na empresa e precisava desse dinheiro”, conta.

Emanuele, estudante de Comunicação da UFPE, não conseguiu conciliar trabalho e aulas no primeiro semestre.
Foto: Arquivo Pessoal/Emanuele Santos

Assim, no semestre posterior, ainda sem ter sido desligada, conseguiu cursar duas disciplinas, uma à noite e outra no dia da folga, para não atrasar mais o curso. Em 2020, veio a pandemia e ela voltou para a cidade na qual nasceu, Belo Jardim, a cerca de 50 quilômetros do campus. Ano passado, na expectativa do retorno presencial, voltou para a cidade – e para o aluguel – e tentou o auxílio-moradia quando teve a notícia da suspensão dos editais. O salário mínimo de sua mãe, frente à inflação, estava mais roído. “Me sustentei com o seguro-desemprego e depois com R$ 650 de um estágio. Consegui me virar com o que tinha.”

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