O negacionismo olímpico, ontem e hoje

80% dos japoneses são contra os Jogos de Tóquio, que espalhará o vírus e pode pressionar o sistema de saúde do país. Mas para o Comitê Olímpico, o que vale é o business. Não é a primeira vez que ele fecha os olhos a violações e colonialismos

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Pierre de Coubertin, militar, aristocrata, historiador francês e idealizador dos Modernos Jogos Olímpicos, sonhava com uma agenda esportiva internacional que traria paz e fraternidade a um mundo imerso em crises econômicas e conflitos.

Apesar de seu otimismo implacável, seu projeto olímpico foi rapidamente permeado pela fome de acumulação capitalista e avanço tecnológico de uma Era de Extremos, tal como descreveu Eric Hobsbawm. Capital e novas tecnologias industriais e de guerra, mas sobretudo imagéticas, estiveram presentes desde as primeiras edições dos Jogos e se tornaram inexoráveis ​​na década de 1930, período em que Coubertin é engolido pela própria criação. Ao assumir a forma espetáculo, isto é, da “reconstrução material da ilusão religiosa”, do domínio da categoria do ver como única forma de acesso ao real, como bem expressou Guy Debord, os Modernos Jogos Olímpicos transformaram-se em uma arma poderosa e exemplarmente perigosa “de dominação dos homens vivos quando a economia já os dominou totalmente” (Sociedade do Espetáculo – Guy Debord, 1997, pp. 16-19). Munido de força política e de um arsenal discursivo ancorado ao idealismo liberal, o movimento olímpico internacional atravessou o século 20 sobre as asas de um “compromisso ético e moral” incapaz de reconhecer as realidades socioculturais e econômicas distintas. Seu programa de expansão na África entre os anos 1910 a 1920, por exemplo, não esboçava qualquer oposição ao colonialismo. Pelo contrário, muitas das teses que justificavam a manutenção do regime genocida europeu encontravam guarida no próprio COI, que ignorando contundentes reivindicações anticoloniais dos povos oprimidos reservava-se a discutir não mais que os termos da assim chamada Colonisation Sportive. Projeto que, fiel ao nome, contava com o patrocínio e entusiasmo de colonialistas notórios, conferindo à “raça” uma importância capital.

Jogos Nazistas

Embora hoje em dia tenhamos a tendência de lembrar os Jogos Olímpicos de Berlim de 1936 por meio de imagens de um Adolf Hitler extremamente irritado após a vitória no atletismo do atleta afro-americano Jesse Owens, as narrativas cotidianas do período eram centradas em uma exaltação ao regime nazista. Aparentemente, essa ideologia de cunho ultranacionalista ia muito além dos “ideais internacionalistas” de Coubertin, poderíamos pensar. Porém, a abordagem do COI e do próprio Barão francês ao megaevento nos conta uma outra história, que expressa mais nitidamente o caráter imperativo que os Jogos Olímpicos assumiam já nessa época, em detrimento dos povos sobre os quais estendia a sua tenda. 

Os Jogos nazistas foram saturados pelas imagens da suástica e pela saudação nazista, entre outras imagens cativantes e representações do estado fascista controlado pelo Partido Nacional Socialista. Tudo isso sob a supervisão complacente do Comitê Olímpico Internacional e do então presidente honorário, De Coubertin, que não só reiterou total apoio aos Jogos nazistas, como teceu largos elogios àquela que foi, segundo ele, uma edição exemplar. Contrário às críticas dos jornalistas esportivos franceses, que lamentavam a utilização dos Jogos como pretexto para fins visivelmente nefastos, De Coubertin diria que a ideia Olímpica de fato não foi sacrificada em prol da propaganda nazista, mas, pelo contrário, “o grandioso êxito dos Jogos de Berlim contribuiu de modo magnífico para com o ideal Olímpico”

Durante essa edição, dois atletas judeus americanos, Marty Glickman e Sam Stoller, foram removidos por seus técnicos do revezamento 4×100 horas antes da competição. Este foi o destino de vários atletas judeus durante a década de 1930. Ao longo dos três anos que antecederam os Jogos, o Terceiro Reich conduziu perseguições, esterilizações forçadas e prisões de homossexuais, deficientes, judeus e outros “não-arianos”. No plano esportivo, os nazistas instituíram a política denominada somente para arianos, que determinava a expulsão de atletas “não-arianos”, parcialmente judeus e ciganos de todas as associações atléticas alemãs. Figuras renomadas como o boxeador Erich Seelig, o tenista Daniel Prenn e a saltadora Gretel Bergmann, foram expulsos de seus clubes e, posteriormente, impedidos de integrar a delegação olímpica alemã. Os atletas judeus barrados dos clubes esportivos alemães formaram associações judaicas, tais como os grupos denominados Maccabee e Shield, e criaram instalações improvisadas para continuar a treinar. Entretanto, as precárias instalações esportivas judaicas não podiam se comparar às dos grupos alemães, muito bem financiados. Os ciganos, incluindo o grande boxeador Sinti Johann Rukelie Trollmann, também foram excluídos dos esportes alemães

Às vésperas dos Jogos, atletas que viviam fora da Alemanha, coletivos comunistas, socialistas e associações trabalhistas e esportivas na Grã-Bretanha, França, Suécia, Tchecoslováquia, Países Baixos e Estados Unidos, tentaram articular a realização de um boicote e uma grande agenda esportiva paralela denominada Contra Olimpíadas. Movimento que não logrou sucesso, uma vez que não pôde contar com o apoio decisivo da Associação de Atletas Amadores dos Estados Unidos, favorável à agenda olímpica.

O boicote a esta edição dos Jogos representaria um golpe importante da comunidade internacional nas intenções nazistas. Contudo, cabe lembrar que a verve racista não era uma exclusividade do estado alemão. A concepção de raça enquanto categoria biológica e cultural de determinação da “superioridade” e “inferioridade” entre seres humanos, tinha status de verdade científica, e orientava boa parte da elite intelectual e política mundial .

Até meados do século 20, a raça seguia sendo um dos principais instrumentos retóricos de justificação de um civilizacionismo colonial europeu que, na prática, servia à política de expropriação, superexploração, segregação e genocídio de povos ameríndios, africanos e orientais

A forma assustadoramente descompromissada com que o programa olímpico circulava por esse terreno era perfeitamente condizente com o que o principal teórico do Olimpismo pensava. Historiador de formação, Coubertin dedicou longas e entusiasmadas considerações ao colonialismo europeu, com especial atenção ao francês

Jogos da Era Jim Crow

Embora o brilhantismo de Owens e de outros atletas afro-americanos nos Jogos nazistas tenha desafiado o ideal ariano de superioridade, Coubertin já havia sustentado duas edições anteriores dos Jogos nos Estados Unidos. Os Jogos de Saint Louis de 1904 e os Jogos de Los Angeles de 1932 foram realizados durante a vigência das Leis Jim Crow, que entre 1877 e 1964 orientaram politicas de segregação de negros e brancos em espaços públicos e um regime de violência impune contra afro-americanos, americanos nativos, latino-americanos e asiáticos, produzindo efeitos devastadores no plano político e cultural

Cabe registrar que Saint Louis tanto era uma das cidades mais segregadas dos Estados Unidos à época, como servia de palco à atrações bizarras, acompanhadas da exposição de africanos enjaulados

A edição Olímpica foi anexada ao Louisiana Purchase Exposition, conhecido em português como Exposição Universal de 1904. Entre os 12 e 13 de agosto daquele ano, fez-se conhecer os assim chamados “Dias Antropológicos”. Programação que no primeiro dia contou com  competições tradicionalmente europeias, incluindo arremesso de peso, salto em altura, salto em distância, dedicando o segundo dia ao que seus organizadores denominaram “exibições mais amigáveis ​​para os selvagens”. Nenhuma das atividades propostas (escalada em tronco, arco e flecha, lutas e lacrosse) diziam respeito aos “convidados” não-brancos, os quais não sabiam que estavam sendo submetidos a um “exame científico” de deflagração de sua “inferioridade racial”, conforme defenderam James Edward Sullivan e William John McGee, co-organizadores do evento infame

Antuerpia: Jogos acima de tudo

Em 1920, o mundo acabava de experimentar uma guerra, e mal saía de uma pandemia, quando o Movimento Olímpico decidiu pela realização dos Jogos de Antuérpia, tendo em Coubertin um dos seus mais irrepreensíveis defensores

Além das críticas que recebia pela baixa receptividade às mulheres e à classe trabalhadora, os Jogos Olímpicos se tornaram alvos de forte resistência pública, sobretudo quanto à destinação de fundos públicos para a realização de um megaevento esportivo em detrimento de necessidades mais urgentes. Esse fato gerou uma antipatia generalizada em relação aos Jogos de Antuérpia e ao Movimento Olímpico. Situação que parece se repetir agora, quando movimentos de oposição aos Jogos reivindicam com razão maior atenção às prioridades impostas por uma pandemia

Munique: “os Jogos devem continuar!”

Em 1972, o então presidente do COI, Avery  Brundage, insistiu para que os Jogos Olímpicos de Munique fossem adiante. “Os Jogos devem continuar!”, exclamou, apesar do assassinato de atletas israelenses perpetrado pelo grupo terrorista Setembro Negro, e da manutenção de reféns na vila olímpica durante longas horas. Após uma interrupção de 34 horas, os atletas voltaram às quadras e campos para “celebrar a vida”.

Este breve relato sugere que a história dos Jogos Olímpicos também é a história de seu “não adiamento”, seu “negacionismo”, sua política imperativa. A agenda e a ideologia olímpica se naturalizaram de tal modo, que a entidade máxima do esporte pode hoje constranger nações inteiras à realização de um megaevento, mesmo que não existam condições humanas e sanitárias para isso. Sublinhado pelas determinações econômicas, essa política imperativa suspende soberanias nacionais, reduzindo-as a estados de exceção que desencadeiam violações do meio ambiente e dos direitos humanos

Mas como é possível à agenda olímpica prevalecer sobre qualquer circunstância – a despeito de suas vítimas? “Por seu próprio modo de manifestação”, conforme nos dizem Jean-Marie Brohm, Marc Perelman e Patrick Vassort, “o esporte tornou-se um dos vetores da globalização em curso, uma espacialização planetária sob o regime de um tempo único reificado”, alimentado pela força universalizante televisão. “O tempo ainda marcado pela historicidade, um tempo complexo, de uma certa fluidez dialética, foi substituído, portanto, pelo tempo do esporte”, esse tempo que divide tudo, que reduz a história ao expediente competitivo, das marcas do espetáculo televisivo. “Atualmente”, concluem, “o esporte não é mais do que um dos componentes de um tempo e de um espaço autonomizados no e pelo capital

Integralmente submetido aos interesses financeiros, os Jogos Olímpicos passam agora à condição de infraestrutura de uma escalada neoliberal de grande teor autoritário.

O Negacionismo de Tóquio

Em fevereiro, uma pesquisa apontou que mais de 80% dos japoneses não querem que os Jogos de Tóquio sejam realizados. Esses números não diminuíram nos últimos meses, e o público japonês continua preocupado com as consequências para seu sistema de saúde se os Jogos levarem a infecções generalizadas.

Como o sistema de saúde abrangente do Japão é fundamentalmente baseado na detecção precoce e prevenção de doenças, a preocupação do público é compreensível. Eles temem que não haja instalações médicas suficientes para cuidar das pessoas infectadas que ficam gravemente doentes

No final de junho, em uma declaração pública extremamente rara, o imperador japonês Naruhito revelou sua profunda preocupação sobre a disseminação do coronavírus durante os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de Tóquio

Outra voz relevante dentro da sociedade japonesa manifestou seu profundo receio em relação aos Jogos: em uma entrevista com a CNN, Hiroshi Mikitani, CEO da gigante de tecnologia Rakuten, voz relevante dentro do setor empresarial japonês, chamou os jogos de uma “missão suicida“. Em sua entrevista, Mikitani revelou que tentou alertar o governo sobre os riscos do megaevento, dizendo que não havia mais tempo para vacinação em massa da população japonesa. Ele tentou persuadi-los a adiar ou cancelar os Jogos, mas sem sucesso

Por outro lado, o Comitê Olímpico Internacional (COI) insiste em dar continuidade ao evento. O presidente do comitê, Thomas Bach, declarou recentemente que o trabalho de sua organização é consolidar e montar um show esportivo majestoso, não cancelá-lo. Com as mãos amarradas pelos contratos que o país assinou com o COI e temendo um grande desastre econômico, o governo japonês até agora mantém o evento.

A pandemia ainda não acabou

Infelizmente, a pandemia de covid-19 continua afetando gravemente várias regiões ao redor do globo. Em muitos países, as taxas de vacinação são baixas, enquanto os níveis de infecção são altos. Mesmo em regiões como a Europa – onde a Eurocopa deu a impressão de que a vida estava se normalizando, a covid-19 é duradoura, com milhares de adeptos de futebol recentemente ligados a infecções advindas dos estádios de futebol

A Austrália, onde a pandemia parecia estar sob controle, viu nas últimas semanas as suas principais capitais e outras cidades regionais voltarem ao lockdown. Além disso, países como Alemanha e Israel estão enfrentando problemas com a variante Delta do vírus

No entanto, mesmo com todas as enormes e evidentes ameaças à saúde do Japão e da comunidade internacional, os Jogos parecem seguir o seu rumo. Parece que as Olimpíadas inspiram o mundo a entrar em um estado de espírito completamente negacionista, acompanhando aquilo a que o cientista brasileiro, Miguel Nicolelis, tem chamado de “nova onda de negacionismo no mundo, amparada por um vírus informacional com alto potencial de penetração, capaz de atingir inclusive setores progressistas e intelectuais da sociedade”. Um negacionismo de dimensões ‘Olímpicas”.

Apesar de seu potencial para ser um evento super spreader, disseminando novas cepas durante a competição, e depois pelo mundo, quando os atletas, treinadores e jornalistas estiverem de volta aos seus países, parece que nada pode impedir os #JogosPandemicos.

Olimpismo

O Comitê Olímpico Internacional é o guardião do Movimento Olímpico, que visa promover a filosofia olímpica muito além dos Jogos. Conhecida como Olimpismo, os objetivos desta filosofia de vida são criar um estilo de vida equilibrado, combinando corpo, espírito e mente. Além disso, o Olimpismo visa promover “o valor educacional do bom exemplo e o respeito pelos princípios éticos universais”.

Muitas pesquisas foram realizadas sobre o legado questionável dos megaeventos esportivos, como os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos ou a Copa do Mundo da FIFA. Os pesquisadores demonstraram como esses eventos podem perturbar as comunidades e seus direitos à moradia ou ao acesso à educação pública

Apesar de tais alegações, o COI segue promovendo os valores e legados positivos de seus eventos, do ponto de vista econômico, mas também educacional e social. Esses valores, mais às claras determinações econômicas e implicações financeiras dos Jogos, mantêm a comunidade japonesa e o mundo em cativeiro

Nessa lógica, os Jogos de Tóquio devem ir em frente, custe o que custar. Independentemente da pandemia e do fato de ser difícil e provavelmente impossível criar uma bolha esportiva gigante e perfeita para controlar o vírus; the show must go on, custe o que custar. Este é o mantra do COI ao longo da história.

Os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de Tóquio parecem ser mais importantes do que os bilhões de vidas humanas em todo o planeta.

Último apelo para interromper os jogos

Nós desafiamos essa lógica. Aqui, juntamos nossa voz às centenas de milhares que já solicitaram o fim dos jogos para salvar suas vidas. Parece bastante simples que uma instituição que visa promover e respeitar os princípios éticos universais tente, antes de mais nada, proteger vidas.

Pode parecer ingênuo, mas aqui vamos lançar o último apelo para impedir os “Jogos Pandêmicos  do COI”. Apesar dos determinantes econômicos, cancelar ainda parece ser a melhor opção. Do ponto de vista político, este gesto sinalizaria o apreço há muito perdido do COI pela soberania popular, as recomendações da comunidade científica, a democracia e os valores anteriormente defendidos por seu fundador.

O Japão, por sua vez, entraria para a história como o primeiro país que exemplarmente “disse não” aos princípios econômicos que norteiam o Movimento Olímpico contemporâneo.

O mundo não precisa de outro “legado” como o dos Jogos nazistas – destruição e morte. No momento, a única maneira de manter a fidelidade à Carta Olímpica para celebrar a vida é dizer “não” aos Jogos de Tóquio em 2020.

O cancelamento de Tóquio será então seu verdadeiro legado.

#stopthePandemicGames

* Uma versao reduzida deste texto foi publicada no The Globe Post

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