Envelhecer no Brasil em tempos de pandemia

Principal vítima da covid, população idosa cresce no país. Acossada por aluguéis caros e desmonte da Saúde, amarga o isolamento social involuntário; na crise, sustenta filhos e netos com sua parca aposentadoria e se vê aturdida com tarefas de cuidado

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Você certamente postou, ou viu nas redes sociais, fotos e homenagens aos avós no último dia 26 de julho quando o Brasil celebra o Dia dos Avós. Foram postagens com agradecimentos e reconhecimentos a estas pessoas que nos acarinharam e assistiram em muitos momentos das nossas vidas. As postagens são merecidas, mas infelizmente não traduzem a realidade das pessoas idosas em um país que está longe de oferecer os cuidados necessários a maioria destas pessoas.

A quantidade de anos vividos aumenta para homens e mulheres devido a múltiplos fatores como o maior acesso aos cuidados médicos e às políticas públicas voltadas para pessoas idosas, embora o número de mortes na pandemia tenha, infelizmente, diminuído a avanço da expectativa de vida em nosso país. Havia uma projeção do IBGE, em 2018, de que em 2060 cerca de 25% da população teria mais de 60 anos. Mesmo com as mudanças trazidas pela pandemia, este futuro não será drasticamente diferente em termos percentuais do que foi projetado naquele ano. O acréscimo no número de anos de vida requer um olhar cuidadoso para estas pessoas e traz novas questões que precisam de respostas e ações por parte das famílias, de grupos organizados da sociedade civil e dos governos.

A pandemia abriu as cortinas para mostrar várias desigualdades invisibilizadas e uma delas é a população idosa desassistida. Nem todos os que estão acima dos 60 anos acessam os serviços públicos essenciais a uma qualidade de vida a que são merecedores depois de tantos anos de trabalho. É essencial trazer à tona alguns problemas que revelam como o Brasil não está se preparando para o envelhecimento dos seus habitantes.

Para começar, nem todos envelhecem da mesma forma e com as mesmas oportunidades. Fatores como classe social, raça e gênero são demarcadores para acessar os serviços que promovem a saúde integral de um corpo que necessita de cuidados próprios nesta fase da vida. Tomemos inicialmente a questão racial. O número de pessoas negras que envelhecem não é o mesmo que o de pessoas brancas e isso tem relação direta com o acesso aos sistemas de educação e saúde em todas as fases da vida que antecedem a velhice. Esta realidade ficou muito clara no início da vacinação da Covid-19. Um dos primeiros grupos a serem vacinados foi o das pessoas mais velhas e o número de brancos é bem maior neste grupo populacional. Isso mostra que as pessoas negras levaram desvantagens no início da vacinação como foi apontado em artigo aqui no Outras Palavras. Este é apenas um exemplo de como a questão da raça é importante ao analisarmos qualquer problema social no Brasil.

Há também outros fatores na “envelhescência” que precisam ser levados em conta na pandemia como o número de idosos que moram sozinhos e que ficaram ainda mais isolados neste período, favorecendo o aumento da depressão e de outras doenças relacionadas à saúde mental que podem até mesmo levá-los ao suicídio. A maioria destas pessoas são mulheres e isso nos exige que o gênero seja levado em conta pelos tomadores de decisão para promover medidas que melhorem as condições de vida destas pessoas de forma concreta, pois as mulheres têm necessidades específicas que precisam ser atendidas. É necessário mencionar a população idosa LGBTQIA+, pouco visibilizada e atendida nas políticas públicas, especialmente neste momento político de perda de direitos.

O fenômeno do isolamento dos idosos vem aumentando a cada ano devido a crescente urbanização e a consequente diminuição dos espaços físicos das habitações, fazendo com que os mais velhos sejam forçados a mudarem para seus próprios espaços ou asilos. O Brasil ainda está muito atrasado com relação às políticas públicas para a moradia de pessoas idosas, pois estas demandam construções diferenciadas para a prevenção de acidentes.

Há também o fato de que houve uma grande mudança nas famílias nas últimas décadas. O cuidado com a pessoa idosa e as crianças estava delegado às mulheres e estas passaram a exercer várias funções profissionais fora de casa nas últimas décadas, criando uma nova configuração para a “tradicional família brasileira” (que somente existe na cabeça de alguns). Há, atualmente, muitos casos de avós e até bisavós nas periferias das grandes cidades que são cuidadores e cuidadoras das crianças enquanto os pais destas estão no trabalho. Esta é uma realidade cada vez mais presente no mundo urbano e até mesmo na zona rural. Quando chegou o momento de ter mais tempo para si, uma nova carga de afazeres lhes foi imposta pela desigualdade social.

No que tange à questão econômica, está cada vez mais difícil para uma pessoa idosa pobre morar em uma grande cidade. É muito comum que o que ela ganha com a aposentadoria não seja suficiente para manter os gastos com remédios e outras necessidades. Às vezes é necessário recorrer aos parentes próximos e pedir ajuda financeira. Outras vezes, a solução é a busca por alguma atividade que gere uma renda extra. Se em outras sociedades e culturas os mais velhos são valorizados e honrados, envelhecer acaba se tornando uma punição para os idosos pobres no Brasil. Além disso, a fome entre as pessoas idosas, que já era alarmante antes da pandemia, só aumentou nos últimos meses. É preciso lembrar que muitos idosos e idosas sustentam as suas famílias com os seus aposentos. Isso significa que a quantidade de dinheiro que deveria alimentar um corpo, passa a ser dividido com três ou mais pessoas. Junto com a fome podemos ainda mencionar a violência, física ou não, que tantos sofrem. Claro que o Estatuto do Idoso é um marco na garantia dos seus direitos e proteção, mas a realidade cotidiana destas pessoas ainda pede mais atenção.

Voltemos ao tema dos idosos em tempos de pandemia e imaginemos como tem sido fazer parte do grupo de risco neste período. Certamente a dor causada pela perda das pessoas queridas na mesma faixa etária, como vem acontecendo nos últimos meses, é extremamente traumático. E então nos perguntemos: quantas mortes poderiam ter sido evitadas se a vacinação tivesse fosse uma prioridade para este governo? O atraso na compra e na aplicação das vacinas parece ter sido uma política deliberada e cruel em meio ao sofrimento de quem já tinha tantos direitos negados ou não reconhecidos antes de março de 2020.

Os tópicos citados levantam questões para uma sociedade que não se preparou para o aumento do número de pessoas idosas como estamos a testemunhar no Brasil. Sem investimentos em infraestrutura adequada nos espaços públicos, para formar profissionais especializados na área e sem políticas públicas que contemplem as suas necessidades reais, o Brasil continuará desrespeitando os seus idosos. Precisamos bem mais do que postagens carinhosas nas nossas redes sociais para os avós se quisermos reverter este quadro.

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