Lula e a esquerda em seu torvelinho

Num país dependente e regredido, governo lida com correlação de forças especialmente adversa. Para superar o fascismo e iniciar mudanças reais, precisa mobilizar a sociedade. Mas é um erro atribuir apenas a ele esta enorme responsabilidade

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Por Luiz Filgueiras

MAIS:
Outras Palavras publica em seis partes o ensaio “Capitalismo dependente e terceiro governo Lula”, de Luiz Filgueiras. Esta é a quinta parte, que inclui a seções 7 do texto original. Leia também também as publicações anteriores:

Parte 1 — Lula 3: Impasse na periferia do capitalismo

Parte 2 – Viagem às mutações do capitalismo brasileiro
Parte 3 – Brasil: exame de uma regressão histórica
Parte 4 — Dependência, Desigualdade e… Ditadura

7- O terceiro Governo Lula

Em 2022, a esquerda conseguiu derrotar eleitoralmente tanto o neoliberalismo quanto, principalmente, o neofascismo. Essa vitória, expressa pela eleição de Lula, ainda que por uma pequena margem de votos (1,8 ponto percentual), foi gigante e inestimável. O conjunto da obra de quatro anos do Governo Bolsonaro foi tenebroso, sob quaisquer aspectos que se queira analisá-lo. Não é preciso especificá-los aqui de novo, pois a lista mencionada na seção 5 é o suficiente para caracterizá-lo como desastroso.

E essa vitória é ainda mais impressionante ao se considerar o conjunto das forças político-sociais derrotadas momentaneamente, que constituem (e não apenas apoiam) o bolsonarismo – a forma como se apresenta o neofascismo na sociedade brasileira -, quais sejam: o movimento neofascista e suas milícias físicas e digitais (com apoio dos algoritmos das big techs), a maioria das igrejas evangélicas, as forças de segurança (públicas e privadas), a parte mais importante do capital financeiro e do agronegócio, e segmentos significativos da classe média. Forças essas que lançaram mão de todo tipo de práticas e instrumentos ilegais para manter o fascismo no poder (Boito, 2019): aparelhamento do Estado e manipulação de políticas públicas em ano eleitoral, difusão metódica de fake news nas redes sociais, ameaças e violências de todo tipo. Portanto, não se pode ter a menor dúvida a respeito da importância dessa vitória.

No entanto, nesses meses iniciais do terceiro governo Lula, fica patente que o denominado “Presidencialismo de Coalização” (Abranches: 1988, 2018), mais uma vez, tem permitido que as forças políticas neoliberais-fisiológicas coloquem exigências cada vez maiores para garantir a governabilidade – sob pena de não pautarem ou não aprovarem as medidas e ações propostas pelo governo. E, assim mesmo, exigindo o rebaixamento do programa de governo, forçando-o a ir mais para direita1

O “Presidencialismo de Coalização” é a forma como se governa no Brasil, desde 1945, após a redemocratização: ele remete à questão da relação entre os Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e os seus conflitos. Essa forma de governo se dá no contexto de um sistema político republicano que combina o presidencialismo, o federalismo, o bicameralismo, o multipartidarismo e a representação proporcional. Cada uma dessas características pode ser encontrada individualmente em outros países, mas a coexistência de todas elas em um mesmo país é um atributo do sistema político brasileiro (Abranches: op. cit.; Bittencourt: 2012).

O Presidencialismo, portanto, é uma forma de governo institucionalizada (obrigatória), estabelecida na Constituição; não é uma escolha unilateral de cada governo. Por sua vez, uma eventual coalizão (alianças a serem estabelecidas), ao contrário, não é uma obrigação institucionalizada, depende de certas circunstâncias e condições políticas, mas quando se configura pode também não ser uma escolha do governo, mas uma necessidade política incontornável, sob pena de não se conseguir governar.

Assim, a relação entre os Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) é condicionada por duas circunstâncias: 1- as regras institucionais (estabelecidas na Constituição e nos Regimentos Internos da Câmara e do Senado), que regulam o relacionamento entre os poderes, enquadrando objetivamente as possibilidades e limites de atuação dos sujeitos políticos2; e 2- a qualidade de uma virtual coalizão (o seu viés político) e como ela é constituída, isto é, com base em negociação de programas e valores ou com base na corrupção e no clientelismo, ou, ainda, com base nas duas coisas ao mesmo tempo.

A qualidade da coalização, por sua vez, depende da composição partidária do Parlamento (no Brasil, a Câmara de Deputados e o Senado), isto é, do número de partidos e da força institucional de cada de cada um deles (medida pelo número de deputados e senadores que elege), bem como dos seus respectivos ideários e dos interesses que representam. Em última instância, portanto, o tipo de coalização formada em cada governo depende da força social e eleitoral de cada partido. Desse modo, a coalização pode ser mais à esquerda ou mais à direita do espectro político, induzindo o governo nas suas ações e políticas em uma ou outra direção. Pode-se afirmar então que, de forma geral, a natureza da coalização depende da força institucional das correntes políticas (partidos) que elegeram o Presidente da República e, após a eleição, caso seja necessário formar uma coalizão para

governar, do leque de partidos existentes e, no caso da Brasil, também da aglutinação de interesses representados em bancadas específicas acima dos Partidos (Evangélica, do agronegócio, das armas etc.) que transcendem os partidos formalmente existentes.

No Brasil, nenhum governo, desde 1945, conseguiu fazer maioria no Parlamento contando apenas com o arco político (de direita ou de esquerda) prévio que o elegeu, o que implicou sempre a necessidade, após as eleições, de se formar coalizões mais amplas para obter um mínimo de governabilidade. No entanto, no que concerne a maior ou menor dificuldade em se formar uma coalização favorável à implementação do programa do governo eleito, há uma diferença fundamental entre formar uma coalizão de esquerda ou centro-esquerda e uma de direita ou centro-direita: no primeiro caso, há uma maior dificuldade porque os partidos desse espectro político, como evidencia a experiência histórica até aqui, não têm conseguido eleger a maioria da Câmara de Deputados e do Senado; o que leva o governo eleito a incorporar os partidos de centro-direita e direita na sua base de apoio. Portanto, tem que se lidar, ao mesmo tempo, com diferenças político- ideológicas e apetites fisiológicos. Em sentido contrário, uma coalizão de direita ou centro-direita é mais fácil de ser constituída porque se fará a partir de partidos com perspectivas político-deológicas próximas, uma vez que, somados, têm conseguido eleger a maioria dos parlamentares. Nesse caso, o governo eleito lida, fundamentalmente, com o fisiologismo – interesses menores e ambições individuais.

Atualmente, deve-se destacar, mudanças mais recentes nas regras institucionais (depois do golpe e nos governos Temer-Bolsonaro), que balizam o relacionamento entre Executivo e Legislativo, têm favorecido a capacidade do Legislativo em negociar com o Executivo – em especial no que se refere à definição do Orçamento e ao controle do processo da atividade legislativa.3 Por tudo isso, no Brasil, o Presidencialismo de Coalização (programático e fisiológico ao mesmo tempo) tem se constituído, reiteradamente, em um empecilho para se implementar um programa de esquerda, mesmo que seja o de uma socialdemocracia desidratada.

Mais especificamente, apesar de, na campanha de Lula, não ter havido dessa vez uma “carta ao povo brasileiro”, nem qualquer compromisso com a agenda neoliberal, pelos menos retoricamente, a esquerda, de novo, não vem conseguindo implementar o aspecto central do seu programa econômico-social, explicitado claramente durante o processo eleitoral e motivo da vitória arrasadora de Lula entre os brasileiros que ganham até dois salários-mínimos, qual seja: o combate estrutural às desigualdades de renda e riqueza. Mais do que nos dois governos anteriores de Lula, as forças políticas do capital, agora em associação com o bolsonarismo (neofascismo) neoliberal, possuem ampla maioria de representantes no Parlamento – o que lhes possibilitam vetar (ou desidratar) qualquer iniciativa importante de mudança estrutural a favor dos trabalhadores e setores populares.

A atual conjuntura política, portanto, é bem mais complicada para a atuação das forças de esquerda, quando comparada ao período dos governos anteriores de Lula e Dilma (2003-2016). A razão disso é bem óbvia: além das recentes mudanças das regras institucionais, que regulam a relação entre os distintos poderes, terem fortalecido o poder Legislativo em detrimento do Executivo, as forças de esquerda, dentro e fora do parlamento, estão tendo de combater em duas frentes, confrontando, ao mesmo tempo, a direita neoliberal e a extrema direita neofascista – que em muitos momentos se unificam com objetivos comuns. A defesa da democracia tornou-se tão importante quanto a necessidade de romper com os limites do Padrão de Desenvolvimento Liberal-Periférico (PDLP), que constrange qualquer iniciativa que coloque em questão a superexploração do trabalho e a atual concentração de renda e da riqueza.

Até o presente momento (outubro de 2023), o combate ao fascismo e a defesa da democracia, assim como a reconstrução do Estado, avançam de fato, inclusive com o apoio de frações da direita neoliberal (em alguns casos de forma vacilante), em que pese a ação das forças armadas no sentido de desresponsabilizarem-se da tentativa de golpe de 8 de janeiro e também das inúmeras barbaridades cometidas ao longo do Governo Bolsonaro: o modus operandi é o de individualizar a responsabilidade de alguns de seus integrantes, livrando a Instituição, a corporação militar. No entanto, os temas econômicosociais relevantes e referentes ao protagonismo do Estado são monitorados permanentemente pelo grande capital e seus prepostos na mídia corporativa, no parlamento e no judiciário.

No parlamento, a reiterada incapacidade da esquerda de eleger uma maioria de parlamentares comprometidos com a sua agenda4, está permitindo ao chamado “Centrão” (agrupamento político constituído desde o processo constituinte de 1988), formado por uma maioria de deputados fisiológicos de direita e centro-direita, chantagear o governo em cada votação de seu interesse, empurrando-o para uma composição mais à direita – através da cessão de ministérios e cargos no primeiro, segundo e terceiro escalões. Esse é o resultado principal do chamado “Presidencialismo de Coalizão” brasileiro, que tem levado todos os governos, que se sucederam desde o início da redemocratização, a fazerem, sempre em nome da “governabilidade”, negociações “antirrepublicanas” – tendo em vista também a ameaça permanente de instauração de um processo de impeachment. E o pior, essa “pequena política” (segundo alguns, realista), só permite avanços marginais no combate à desigualdade de renda e, mesmo assim, apenas no plano conjuntural, que podem ser facilmente desfeitos em governos posteriores neoliberais – como constatado recentemente5.

Na mídia, a defesa e promoção de um identitarismo-diversidade meia-sola, subsumido à perspectiva neoliberal, que o separa e o desvincula da luta pela superação estrutural das desigualdades de classe (Fraser: op. cit.), é acompanhado pela defesa e apoio aberto e incondicional à agenda neoliberal: em especial o ajuste fiscal permanente e a “independência” do Banco Central e de sua política monetária ortodoxa, pró capital financeiro. Os seus comentaristas, apesar de retoricamente criticarem as negociações do governo com o “Centrão”, condenando-as moralmente, sabem que o Presidencialismo de Coalização é uma poderosa arma contra os governos de esquerda, que se proponham a combater, de fato, a desigualdade.

Após os primeiros nove meses de existência, o terceiro governo de Lula apresentava, de um lado, resultados positivos importantes, destacadamente, entre outros: uma nova política de reajuste do salário-mínimo acima da inflação, um Programa Bolsa-Família mais robusto, mudança na tabela do imposto de renda (elevação da faixa de isenção), a retomada do protagonismo do país no plano internacional (com destaque para a reativação dos BRICS), o combate à mineração mafiosa na Amazônia, a redução do desmatamento da floresta e a interrupção do genocídio dos Ianomanis, a volta da política habitacional para as menores faixas de renda, o anúncio do “Novo PAC”6 com a perspectiva de novas obras e de retomada de obras paradas, a crítica permanente à política monetária do Banco Central – que impacta negativamente não apenas o ritmo de crescimento da economia, mas também a velocidade de crescimento da dívida pública -, o retorno das políticas culturais, de educação, cotas e de saúde pública (reativação do Programa “Mais Médicos”) etc.7 Todos esses resultados, contudo, derivam de medidas, em sua maioria, de natureza conjuntural, que reproduzem uma trajetória semelhante àquela dos seus dois governos anteriores.

De outro lado, no que se refere à questão fundamental, isto é, o combate estrutural à desigualdade de classe, à concentração de renda e da riqueza, as primeiras ações, mais uma vez, foram tuteladas pelo grande capital, em especial o capital financeiro. Isso está claro nos limites impostos à política fiscal, instrumento fundamental para alterar e ampliar a destinação dos gastos públicos para as políticas e iniciativas sociais, assim como para obter, dos mais ricos, os recursos necessários para estes gastos – em especial a urgente alavancagem financeira do SUS, da educação pública e do programa de reforma agrária.

No que concerne aos gastos, a precedência no pagamento-rolagem da dívida pública, em relação às demais ações econômicosociais do governo, ficou clara com a elaboração de um novo “Teto de Gastos” (o anterior foi desmoralizado pelo Governo Bolsonaro), apenas um pouco mais flexível, denominado “Novo Arcabouço Fiscal” (Kliass: 2023; Bastos 2023, Souza, 2023)8. E o que é pior: ao constitucionalizá-lo, aceitou-se, sem nenhuma discussão, continuar engessando a política fiscal, uma das políticas macroeconômicas fundamentais do Estado na administração de uma economia capitalista. Coisa semelhante feita com a política cambial na Argentina, no início dos anos 1990, no contexto do “Plano Cavallo”.

A hegemonia do capital financeiro na estruturação e dinâmica do PDLP foi reafirmada mais uma vez. Assim como havia sido na “independência” do Banco Central, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Governo Bolsonaro em 2021. Das três políticas macroeconômicas, duas circunscrevem estreitos limites para qualquer governo de esquerda. Em suma, o capital financeiro vem conseguindo restringir as políticas monetária e fiscal enquanto instrumentos de políticas anticíclicas, bem como o de alavanca das políticas

sociais.

Do lado das receitas, a “Reforma Tributária” proposta se ateve, fundamentalmente, à questão operacional de simplificação da tributação, tornando-a, espera-se, mais eficiente. A questão essencial de redefinir o sistema tributário absurdamente injusto não foi tratada, sinalizando-se, contudo, a intenção de enfrentá-la posteriormente, numa segunda etapa (Uol Notícias: 2023). Esta futura etapa é a crucial para se definir se haverá, ou não, o início de alguma alteração estrutural na concentração de renda e da riqueza. Nela estarão em foco os impostos diretos que afetam a ambas, quais sejam: a regressividade histórica do Imposto de Renda de Pessoas Físicas, a tributação de lucros e dividendos atualmente isentos, a tributação sobre as grandes fortunas e a elevação das alíquotas, hoje quase que simbólicas, sobre a propriedade fundiária e outras formas de propriedades.

Em resumo: a continuação do permanente “ajuste fiscal”, agora disfarçadamente intitulado “Arcabouço Fiscal”, juntamente com o Banco Central “independente”, além dos lobbies que atuam nas áreas da saúde e da educação, estão limitando as ações e políticas do governo Lula, em geral e especialmente no enfrentamento da desigualdade de renda e riqueza. As negociações políticas com o parlamento isoladamente, não resolverão isso; o “Novo Arcabouço Fiscal” é produto delas.

A condição dependente do país e todas as suas implicações, tais como tratadas nas seções anteriores deste ensaio, vêm se constituindo historicamente em uma camisa de força objetiva que enquadra e encapsula a luta de classes em seu interior. É verdade que a ação política dos sujeitos, coletivas e individuais, sempre tem algum grau de autonomia em relação às condições objetivas e, por isso mesmo, se a esquerda tiver força e capacidade para alterar a correlação de forças, pode transformá-las a seu favor. Mas, inicialmente, as condições objetivas, que estão dadas em cada momento, delimitam o espaço no qual a luta de classes e as ações políticas acontecem, como também o alcance de seus objetivos e as suas consequências. De forma clara, e sintética: não se pode contrapor ao “economicismo”/determinismo, que aceita e justifica a correlação de forças desfavorável, um “politicismo” no qual a capacidade política é ilimitada, com o seu completo descolamento das bases materiais da sociedade que lhe dão sustentação e na qual ela se realiza.

Repondo a primeira tese defendida neste Ensaio, que mesmo formulada há 50 anos se mostra ainda mais robusta, o dilema fundamental, incontornável, que a perspectiva da

Teoria Marxista da Dependência (TMD) coloca para o Brasil é o seguinte: a implementação de reformas estruturais e a adoção de políticas, que alterem significativamente a histórica concentração de renda e da riqueza existente, podem ser viabilizadas sem confrontar as características fundamentais do capitalismo dependente, em especial a superexploração do trabalho e a existência de uma burguesia subordinada ao imperialismo e sem um projeto nacional de caráter capitalista soberano? Ou alternativamente, isso exigiria a superação da natureza dependente do capitalismo periférico, confrontando consequentemente, de forma incontornável, o imperialismo? Ou seja: os países periféricos podem superar a sua condição de dependência sem superar ao mesmo tempo o próprio capitalismo?

Qualquer que seja a resposta para esse dilema, ela não poderá contar com nenhuma fração da burguesia ou das classes dominantes. Mesmo a grande burguesia interna, fração não vinculada organicamente ao imperialismo, evidenciou os seus limites político-econômicos durante os governos de Lula e Dilma e o processo de impeachment. Na perspectiva da TMD, não há qualquer possibilidade de construção política de um projeto nacional, de caráter capitalista, vir a ser concebido e dirigido por qualquer fração da burguesia brasileira; em virtude de sua absoluta incapacidade de expressar e incorporar, econômica e politicamente, os interesses diferenciados do conjunto da sociedade brasileira, em especial os das classes trabalhadoras. Ela não consegue e nem aceita conviver com uma melhor distribuição de renda; a necessidade de superexploração do trabalho está entranhada, historicamente, em seu ethos de classe e na subjetividade de seus integrantes. O consenso entre as classes dominantes, com relação às recentes Reformas Trabalhista (Governo Temer) e da Previdência (Governo Bolsonaro) reafirmou, mais uma vez, a natureza do capitalismo dependente.

Portanto, qualquer que seja a resposta, ela exigirá um elevadíssimo grau (inédito) de organização, politização e mobilização dos setores populares e de suas expressões/representações (partidos, movimentos sociais, associações, sindicatos etc.), com o objetivo de modificar radicalmente a correlação de forças políticas. Caso contrário, restará ao terceiro governo Lula, e às forças de esquerda que o elegeram, se resignarem com mudanças muito limitadas, superficiais e aceitáveis no interior do capitalismo dependente – tal como evidenciada pela experiência dos dois governos anteriores de Lula; ou seja, mudanças de natureza essencialmente conjuntural, que não afetam a essência do PDLP (nem muito menos da dependência) e que podem ser anuladas por futuros eventuais governos de (estrema) direita.

Para muitos, o recente surgimento, a partir das manifestações de junho de 2013, de uma “nova direita” (na verdade, extrema direita) no Brasil pareceu algo surpreendente e inesperado, uma espécie de um “raio em céu azul”. Um fenômeno quase que inexplicável, que deixou a maioria da esquerda perplexa, principalmente considerando a capacidade de mobilização de massa dessa “nova direita”.

No entanto, pesquisadores desse fenômeno evidenciam que esse campo político, para além da capacidade de atuação nas redes sociais (de fato, um instrumento fundamental de organização e estruturação do movimento neofascista no país), vinha se aglutinando e estruturando desde 2005, quando aconteceu o chamado “Mensalão” – que jogou o PT e Lula na defensiva e empurrou boa parte da classe média para a direita (Singer: op. cit.). Esse processo, de estruturação da “nova direita”, se fez através da criação de organizações na sociedade civil, ou da reativação das que haviam sido criadas pela “velha direita” ainda nos anos 1980 (os ditos think tanks)9; de grupos de estudos, seminários, publicações de livros e fórum de debates (Fórum da Liberdade, o mais importante); além da criação de sites, blogs e comunidades na internet (Vem Pra Rua, Revoltados Online, MBL) e da atuação nas redes sociais. Tudo isso com o apoio e o financiamento de organizações e grupos econômicos nacionais e internacionais, ou seja, um trabalho profissional de “formiguinha”, de difusão ideológica e formação de lideranças (Casimiro: 2018; Rochaa: 2021).

Essa constatação, à primeira vista surpreendente, na verdade evidencia que essa “nova (extrema) direita”, de caráter ultraneoliberal e mobilizadora, e que se assume abertamente enquanto direita, se apropriou de uma prática política que, nos anos 1970 e 1980, foi típica da esquerda, que com base nela forjou suas lideranças, difundiu o seu ideário e construiu a sua capacidade de mobilização nas lutas travadas naquele período. Isso significa que a capacidade de mobilização e interferência política da extrema direita, importante no golpe que destituiu Dilma Rousseff e fundamental na eleição de Jair Bolsonaro, não pode ser explicada unicamente ou, principalmente, pelo seu domínio da internet (das redes sociais), com o uso abundante de fake news. Ela vinha se preparando há, pelo menos, quase duas décadas.

Bolsonaro não é o seu criador, mas sim a sua criatura circunstancial: o neofascismo está entranhado na sociedade brasileira, a sua existência não depende de Bolsonaro10. E isso torna-o um fenômeno ainda mais perigoso, pois vai além da conjuntura recente que o levou ao centro da disputa política no Brasil. Após a perplexidade da derrota eleitoral não esperada, e o isolamento político decorrente da tentativa de golpe fracassada, o neofascismo continua presente e atuante, tanto no parlamento quanto na sociedade civil. As transformações recentes do capitalismo contemporâneo, com a “uberização” e generalização da precarização do trabalho, assim como o domínio e governo das periferias dos grandes centros urbanos pelas Igrejas Evangélicas, os narcotraficantes e as milicias paramilitares (muitas vez em associação), vêm construindo há pelo menos três décadas um ambiente favorável para a difusão do neoliberalismo e do fascismo.

Tomando consciência dessa realidade, a esquerda em geral, o Partido dos Trabalhadores, e o próprio Lula estarão dispostos e terão capacidade de retomar o trabalho político de organização e conscientização nas periferias urbanas do país, hoje ocupadas pelas igrejas evangélicas, o tráfico de drogas e as milícias (Cunha: 2015), em uma simbiose que prospera pela ausência (ou insuficiência) de atuação das organizações e militância de esquerda e do Estado social e democrático?

Trabalho político que foi relativamente abandonado pelo PT ao longo do mesmo processo que o levou à ocupação de espaços institucionais cada vez mais importantes, e a privilegiar, quase que absolutamente, a disputa institucional (Singer: op. cit.). Mas, a fragilidade desse trabalho político de conscientização e organização, e a pouca inserção social nos setores populares, parece ser um atributo de todas as correntes políticas de esquerda, apesar de cobrarem do PT e do governo Lula uma tática que tenha como eixo fundamental a mobilização dos setores populares11. Na verdade, na atual conjuntura, a crítica às limitações do governo Lula deve ser também a crítica à limitada capacidade de mobilização da esquerda em geral e, em particular, do PT: este governo será tanto mais à esquerda, nos seus objetivos e no poder de alcançá-los, quanto maior for a capacidade de mobilização política das forças de esquerda. Não se pode esperar de Lula e de seu governo a implementação, de forma voluntarista (independentemente da correlação de forças e da ação e do apoio efetivo que lhe possa ser dado pelos setores populares), de reformas estruturais que confrontem radicalmente as desigualdades sociais do país.

E mais, o campo da esquerda, em reconhecendo essa fragilidade, terá vontade e capacidade de colocar, de fato, a predominância desse trabalho político, difícil e com frutos a médio e longo prazos, em sua estratégia de transformação social, aglutinando e estimulando as inciativas populares que, apesar de tudo, podem ser encontradas, e já estão em andamento nessas periferias – que se tornaram o lugar central da disputa político-ideológica travada cotidianamente?12

A resposta afirmativa a essas questões é a condição para se constituir um verdadeiro e amplo movimento de massas, que confronte os limites do capitalismo dependente e os interesses da burguesia associada ao imperialismo. Caso contrário, a aposta limitada a um suposto “neodesenvolvimentismo”, fora de tempo e lugar, significará, momentaneamente e na melhor das hipóteses, maior crescimento econômico (criação de mais emprego/ocupação) com melhora marginal na distribuição dos rendimentos do trabalho – com impacto positivo na capacidade de consumo dos segmentos da população de menor renda, possibilitando-lhes a aquisição de bens de consumo duráveis -, acompanhados pela redução conjuntural da pobreza absoluta e a criação de maiores oportunidades econômicosociais através de um acesso mais amplo à saúde, cultura, lazer e educação formal.

Do ponto vista da vida imediata e da enorme carência material (mas não só) da maioria do povo brasileiro, esses resultados não podem, de forma alguma, ser menosprezados. Dizem respeito às suas necessidades básicas. Portanto, não se trata de minimizar ou, muito menos, negar esses ganhos, mas sim da necessidade de potencializá-los e garanti-los ao longo do tempo e, sobretudo, de obter novas conquistas mais profundas e duradouras, com a efetivação de reformas estruturais a elas vinculadas – reformas estruturais, diga-se de passagem, é o que a direita sempre faz tendo por referência seus interesses: nos períodos dos Governos Collor, FHC, Temer e Bolsonaro, isto é, quando no comando do Estado, sempre deu mais uma volta no “parafuso do neoliberalismo”.

Além do mais, a experiência anterior também evidencia que o limite “superior”, aceito momentaneamente pelo capitalismo dependente brasileiro, na forma atual do PDLP, só se viabilizou em uma conjuntura econômica favorável, na qual todos os segmentos sociais, ainda que diferenciadamente, ganharam. No entanto, bastou um período de desaceleração da economia, com o acirramento da disputa pela renda, para que as classes dominantes, e seus prepostos e agentes, planejassem e executassem o golpe de 2016 – que, na sequência, com os governos de Temer e Bolsonaro, anulou rapidamente quase todas as conquistas importantes, mas superficiais (não-estruturais), que haviam sido conseguidas anteriormente.

Ao fim e ao cabo, uma coisa é certa: a grande capacidade de negociação política de Lula, importante e amplamente reconhecida, assim como a sua reiterada, e despolitizante, afirmação de que “voltei para cuidar do povo brasileiro”, são obviamente insuficientes para promover as mudanças estruturais necessárias e não apontam para colocar esse povo como protagonista de seu próprio destino. A atual relativa passividade das forças de esquerda, até aqui observada, numa posição mais de expectadora do que de sujeito, também não ajuda a mudar a correlação de forças. A impressão é de que elas estão esperando Lula resolver o problema, paralisadas pela admiração e confiança, até certo ponto compreensíveis, devotads ao líder. Mas essa passividade, talvez influenciada também pela militância “preguiçosa” nas redes sociais, precisa ser superada urgentemente. A luta social e política não pode ser “terceirizada” para o governo Lula.

Por fim, é necessário reafirmar: a eleição de Lula, com a derrota momentânea do neofascismo, foi sem dúvida crucial para a defesa da democracia e o retorno de um ambiente político mais favorável para a organização e ação dos movimentos sociais dos setores dominados. O primeiro passo para a derrotá-lo de forma duradoura; mas isso dependerá da esquerda e dos movimentos sociais do seu campo conseguirem que o governo Lula avance nas ações de redução radical das desigualdades. Caso contrário, o neofascismo neoliberal continuará assombrando a sociedade brasileira

1No mesmo sentido, alguns defendem que, na prática ou informalmente, está em curso no país um semipresidencialismo (ou semiparlamentarismo): “Com uma deformação: Câmara e Senado não respondem pelo resultado com o mesmo peso que recai sobre os ombros do ocupante do Palácio do Planalto. É preciso formalizar a mudança de regime, que já aconteceu.” (Azevedo: 2023). Em linha semelhante, Roberto Amaral (2023) fala em um “novo presidencialismo”, no qual há um empoderamento dos Poderes Legislativo e o Judiciário, em detrimento do Executivo.

2 Entre outras, “… as prerrogativas de iniciar projetos de lei (com exclusividade ou não), as condições para aceitação de aprovação de emendas, a prerrogativa de vetar legislação (e as condições para uma eventual derrubada), o leque de matérias que o Executivo pode tratar por decreto, as prerrogativas de convocação de plebiscitos e referendos e de convocação de sessões legislativas extraordinárias, os poderes para determinar a ordem do dia das votações, os prazos e o itinerário da tramitação das proposições (se vão para comissões, ou direto aos plenários, a ordem em que são votadas), as regras de quórum”. (Bittencourt: op. cit.) Pode-se acrescentar, a regulação das Medidas Provisórias, emendas parlamentares etc.

3 Com destaque para a criação de um novo tipo de Emenda Parlamentar (a do Relator), que deu origem ao chamado “Orçamento Secreto”, sob o controle do Presidente da Câmara e do parlamentar indicado para relatar a proposta orçamentária enviada pelo Executivo ao Parlamento.

4Isso evidencia a enorme dificuldade de a esquerda constituir a sua hegemonia na sociedade, combatendo e descontruindo o senso comum impregnado na vida cotidiana dos setores populares-subalternos, que vai muito além da dimensão política estrito senso. O que significa constatar a sua incapacidade de confrontar crenças, práticas e valores conservadores e reacionários, reproduzidos e difundidos por inúmeros aparelhos ideológicos privados e de Estado – atualmente com forte influência das Igrejas Evangélicas e das redes sociais. Especificamente, a esquerda não tem conseguido alterar a cultura política predominante, em especial o tipo de relação estabelecida entre os parlamentares e seus representantes.

5 Nesse momento (outubro de 2023), está-se assistindo a uma furiosa negociação na qual o Ministério dos Esportes e o Ministério dos Portos e Aeroportos foram entregues ao “Centrão”; e para isso, criou-se o Ministério das Micro e Pequenas Empresas para não reduzir a participação do PSB no governo. Além disso, aventa-se, na continuação das negociações, a possibilidade de a Caixa Econômica Federal vir a ser entregue a esse mesmo grupo político. No plano programático (da grande política), pode-se citar, por exemplo, a possibilidade de congelamento salarial para os servidores públicos, além da proposição de se desconsiderar um dos pilares da Constituição, qual seja: os pisos dos setores de saúde e educação – ambos relacionados à questão fiscal e orçamentária (Martins: 2023).

6 O novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), tal como apresentado, tem sido objeto de muitas críticas, em particular com relação às prioridades elencadas e aos valores destinados. Ele prevê um total 1,7 trilhões de reais em investimentos em quatro anos, com recursos da União, empresas estatais e setor privado – com a Petrobrás na posição de o principal investidor. Em particular, os recursos do Programa em Saúde e Educação deverão ser provenientes do Orçamento da União e, portanto, estará limitado pelo novo arcabouço fiscal. Essa é uma questão complexa e que deve ser analisada com maior cuidado – o que não pode ser feito neste ensaio.

7Adicionalmente, houve duas iniciativas na área tributária, que ainda devem passar pelo crivo do Congresso Nacional: uma Medida Provisória taxando os fundos exclusivos, denominados fundos dos “superricos” (entre 15% e 20% sobre o lucro) e um projeto de lei que taxa os rendimentos das empresas offshore (administradas por brasileiros que vivem no país, mas que operam em outros países, geralmente paraísos fiscais).

8 A nova regra fiscal combina um limite de despesa, mais flexível que o Teto de Gastos, com uma meta de resultado primário (resultado das contas públicas sem os juros da dívida pública). O crescimento da despesa deverá ser de, no máximo, 70% da variação da receita dos 12 meses anteriores, mas com um limite superior e um piso para a oscilação da despesa de, respetivamente, 2,5% e 0,6% acima da inflação. Não há qualquer regra ou restrição acerca das despesas financeiras associadas dívida pública.

9 Algumas delas, com suas respectivas datas de fundação: Instituto Liberal (1983), Instituto de Estudos Empresariais (1984), Instituto Atlântico (1992), Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista (2002), Instituto Plínio Corrêa de Oliveira (2006), Movimento Endireita Brasil (2006), Instituto Mises Brasil (2007), Instituto Millenium (2009), Instituto Ordem Livre (2009), Estudantes pela Liberdade (2009).

10Jair Bolsonaro, militar reformado e parlamentar de extrema direita do “baixo clero” por trinta anos, praticamente expulso das forças armadas, nunca conseguiu aprovar qualquer projeto de sua iniciativa. Considerado por seus pares uma figura folclórica e irrelevante, sempre se destacou na mídia, chamando atenção, por seu discurso raivoso e violento a favor do Golpe de 1964 e da Ditadura Militar. Até então, tinha como base eleitoral a chamada “família militar”, cujos interesses defendia de forma corporativa e alicerçado em uma moral conservadora. A “nova (extrema) direita” encontrou nele, em um determinado momento, o representante certo para a sua estratégia belicosa e histriônica (política de choque) (Rochaa: op. cit.), que tem como centro um ideário econômico ultraneoliberal, o combate permanente à esquerda em geral, o ataque à democracia liberal e a promoção da chamada “Guerra Cultural” (Rochab: 2021), com a propagação de valores conservadores e reacionários. Bolsonaro, por sua vez, facilitou esse encontro transitando rapidamente de sua tradicional posição “estatista e intervencionista” em direção ao neoliberalismo sem restrições.

11 Uma matéria na Folha de São Paulo, intitulada “Lula se queixa de dormência dos movimentos sociais durante o seu governo”, informa que o presidente faz o seguinte diagnóstico sobre o atual momento: “… parte da esquerda teria perdido contato com os lugares onde moram as pessoas das classes mais desfavorecidas, nos bairros periféricos e favelas, e isso estaria na origem das dificuldades de mobilização atuais. As dificuldades em identificar as demandas e preocupações dos grupos dos quais historicamente são mais próximos estariam, então, tirando a força de mobilização da esquerda.” (FSP, 26/08/2023)

12Talvez se possa até conjecturar que a luta de classes no Brasil, no terceiro milênio, transferiu o seu palco principal das fábricas para as periferias dos grandes centros urbanos – território no qual se confrontam distintas visões de mundo, que abrangem as diversas dimensões das relações sociais (política, cultural, religiosa, do trabalho etc.) e o cotidiano de suas populações.

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