Supremo x Senado: a República esgarçada

PEC que limita decisões de ministros do STF é o capítulo mais recente da longa deterioração no trato entre os Poderes, radicalizada pela extrema-direita. Casuísta e sem debate, mérito desta e outras medidas fica em segundo plano. Ganha a pauta antidemocrática

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“As instituições estão funcionando normalmente” virou uma espécie de frase-meme irônica, utilizada em redes sociais sempre que algo aparentemente absurdo ocorre no Brasil. Não é para menos. São episódios que se sucedem há anos e que experimentam uma espécie de naturalização seletiva, ao gosto do freguês, sendo logo apagados da memória e sucedidos por novos capítulos.

O da vez é o conflito entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Senado. Isso em função da aprovação na Casa de uma PEC que veda a concessão de decisão tomada por único ministro ou desembargador que suspenda a eficácia de uma lei. Com alterações em relação ao texto original, a proposta aprovada admite decisão monocrática em casos de grave urgência ou risco de dano irreparável, no recesso judiciário, contanto que haja julgamento no plenário em 30 dias. Também inclui que sejam deferidas decisões cautelares em ações que peçam declaração de inconstitucionalidade de lei, com o mérito da ação sendo julgado em até seis meses.

Há uma divisão básica sobre a constitucionalidade da PEC. Há juristas que alegam que o assunto seria tema de regimento interno do Supremo e o texto do Senado afrontaria o princípio da separação dos Poderes, cláusula pétrea do texto constitucional. Por outro lado, há quem defenda que nenhum regimento interno poderia se sobrepor à vontade do legislador expressa em uma proposta de emenda à Constituição.

Seria uma controvérsia normal em um regime democrático, mas a polêmica e o contexto desta aprovação mostra aquilo que é disfuncional na conduta dos atores envolvidos.

Casuísmo e falta de debate

Primeiro, é preciso entender o porquê desta PEC ter vindo à baila. Ela está inserida em um pacote de proposições legislativas que visam a limitar a atuação do STF. Grande parte delas ou é de autoria de bolsonaristas, ou foi resgatada por eles. Isso porque a Corte se tornou um alvo deste grupo, em especial por conta da sua atuação durante a pandemia.

Daí é necessário um parêntese. Boa parte das decisões do Supremo no período se deram em um vácuo, um esvaziamento quase completo das funções da Procuradoria-Geral da República na gestão de Augusto Aras, nomeado pelo então presidente Jair Bolsonaro. E também pelo recorrente desrespeito à Constituição e à própria legislação em vigor pelo Executivo. Embora a PGR tenha se mantido omissa, outros atores passaram a procurar o STF. E nada mais natural que desrespeitos seguidos à Carta Magna fossem parar no Judiciário.

Também neste período, é necessário destacar a inação do Congresso Nacional, que poderia ter discutido a abertura de um processo de impeachment diante de inúmeros pedidos protocolados à Câmara dos Deputados. Se politicamente não havia viabilidade, indícios de crime de responsabilidade existiam aos montes. O instituto do impeachment ficou ainda mais desmoralizado.

Voltando à ofensiva legislativa contra o STF, não é só o bolsonarismo que se incomoda com o Judiciário. O espírito corporativo das duas Casas é encarnado na figura de seus dois presidentes. É bom lembrar, aliás, que Rodrigo Pacheco só instalou a CPI da Covid, mesmo com ela preenchendo todos os requisitos para sua instalação, por decisão (monocrática) de Luís Roberto Barroso. Há um evidente desconforto dos dois parlamentares que chefiam Câmara e Senado. Ambos tiveram seu poder anabolizado com o Orçamento Secreto criado na gestão Bolsonaro e não admitem renunciar a qualquer quinhão de poder.

A aprovação da PEC evidencia ainda algo que se tornou rotina no Legislativo brasileiro. O casuísmo e a falta de discussão pública sobre propostas importantes para a sociedade. Sobre projetos votados ao sabor da conveniência do momento, a chamada, de forma pejorativa, PEC da Bengala, aprovada em 2015, talvez seja um dos exemplos mais bem acabados. O texto aumentou de 70 para 75 anos a aposentadoria compulsória de servidores públicos, tendo como alvo o STF. O objetivo era impedir que a então presidenta Dilma Rousseff tivesse o direito de escolher cinco ministros da Corte, caso completasse seu mandato.

O casuísmo foi ainda mais escancarado quando, em 2019, a deputada federal e presidenta da CCJ da Câmara, Bia Kicis, propôs e aprovou na Comissão uma PEC retomando a idade de 70 anos como limite, para dar a Bolsonaro o direito de indicar mais ministros do Supremo. Felizmente, a proposta não foi a plenário.

Um Supremo que se expôs

Não há nenhum Poder intocável, mas também é saudável que mudanças sejam discutidas amplamente e não somente em gabinetes e na surdina. Isso vale para tudo, não apenas para alterações na organização do Judiciário. Mas a reação de ministros do STF à PEC evidencia uma outra disfuncionalidade.

Declarações feitas em off para jornalistas afirmando que “a lua de mel com o governo acabou”, por exemplo, em alusão ao voto favorável do líder do governo no Senado, Jaques Wagner, supõe uma espécie de ameaça que não deveria ser normalizada. O que significa o “fim de uma lua de mel”, afinal? Ministros deveriam passar recados ao Executivo ou a quem quer que seja por meio da imprensa, de forma anônima, como fazem, aliás, os militares de alto escalão?

A relação dos ministros do STF com a mídia é um caso de estudo à parte e é interessante resgatar um diálogo que ocorreu entre Luís Roberto Barroso e Marco Aurélio Mello no julgamento dos embargos infringentes da Ação Penal 470, conhecida como “Mensalão”, em 2013:

Luís Roberto Barroso – Mas gostaria de dizer, em defesa do meu ponto de vista e sem demérito de nenhum ponto de vista, que eu, nesta vida, neste caso e em outros, como em quase tudo que faço na vida, faço o que acho certo, independentemente da repercussão, portanto, eu não sou um juiz que me considero pautado pela repercussão do que vou decidir, e muito menos pelo que vai dizer o jornal do dia seguinte, e muito menos estou almejando ser manchete favorável. Eu sou um juiz constitucional, sou pautado pelo que considero certo, correto, embora não me ache o dono da verdade. Porém, o que vai sair no jornal do dia seguinte, não faz diferença pra mim se não for o certo.

Marco Aurélio Mello – Pra mim faz. Dependendo do que sai, pra mim faz. Porque como servidor do meu semelhante, eu devo contas aos contribuintes.

Talvez Barroso tenha mudado de opinião desde então, dada sua postura durante a Operação Lava Jato, mas Mello ter dito que se importava com a opinião do jornal do dia seguinte, pontuando como se fosse por meio da mídia que ele prestaria “contas aos contribuintes”, não é algo corriqueiro. Uma Corte que é guardiã da Constituição, atenta ao princípio contramajoritário, não pode se sujeitar a pressões da opinião “publicada”.

O gosto por holofotes e a relação com a mídia, além da transmissão de sessões ao vivo que prejudicam mesmo a mudança de votos de ministros durante os julgamentos, transformaram muitos ministros em personagens mais expostos do que deveriam.

Limites do republicanismo

É preciso mais uma vez dizer que não existe Poder intocável, mas a forma como (não) foi discutida a PEC e sua motivação principal desperdiçam uma ótima oportunidade de debater, junto à sociedade, entre outros pontos, como diminuir o individualismo dentro do STF para que seja fortalecida a própria instituição. Algo que já começou a ser feito, por exemplo, com a limitação temporal, pelo próprio Supremo, dos pedidos de vista.

Não se trata de ser ingênuo e não reconhecer que boa parte das motivações de parlamentares não sejam para o “bem de todos” ou que não haja relações políticas (não partidárias, embora às vezes aconteça) de integrantes de Cortes constitucionais em qualquer lugar do mundo com outros setores. O problema é quando isso ultrapassa os limites daquilo que se convencionou chamar de republicanismo.

A partir do momento em que figuras importantes dos poderes agem de forma corporativa e em prol de si, a descrença da sociedade aumenta e o caminho para aqueles que já atentaram contra a democracia formal volta a ser pavimentado. Outra agenda é possível e necessária.

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