Caso Brazão: ódio e oportunismo em Brasília

Na sessão da Câmara que confirmou a prisão do deputado acusado de homicídio, brilhou a figura de Marielle. Mas tanto os bolsonaristas quanto o Centrão revelaram muito do ódio que os move e de como buscam manipulá-lo eleitoralmente

(Bruno Spada/Câmara dos Deputados)
(Bruno Spada/Câmara dos Deputados)
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“Muito me admira a comissão que mais vota pauta penal, nesse dia de hoje autorizar esse crime”, disse a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG) no debate que começou na manhã desta quarta-feira (10), na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara, onde se deu a primeira etapa da votação que manteve a prisão do deputado Chiquinho Brazão (sem partido-RJ).

Era, de fato, uma sessão incomum. Integrantes do colegiado que fazem parte da chamada Bancada da Bala, adeptos da lógica do “bandido bom é bandido morto”, defensores do endurecimento de penas como solução para a criminalidade e que costumam ironizar a presunção de inocência, estavam convertidos ao garantismo. Mesmo alguns, próximos a golpistas, descobriram um súbito amor à Constituição e à integridade do devido processo legal. Todos justificando o fato de votarem a favor da soltura de Brazão.

Até Eduardo Bolsonaro (PL-SP) gravou um vídeo em prol da liberdade do deputado. ‘Esse caso é a isca para que pessoas condenem o deputado à prisão preventiva antes do julgamento final, mesmo fora do flagrante em delito, para nós amanhã estarmos sendo encarcerados. É disso que estamos falando”, disse o parlamentar, que está fora do país.

Na verdade, não era sobre isso. Cada pedido de prisão de parlamentar continua precisando ter o crivo da Câmara, independentemente do resultado da votação sobre o Brazão O que comandou as ações daqueles que foram favoráveis à soltura foi uma conjunção de interesses. Desde aqueles que, no Rio de Janeiro, estão de olho no potencial das alianças com grupos milicianos nas próximas eleições, até os que seguem no confronto com Alexandre de Moraes/STF, agitado para mobilizar suas bases e lucrar politicamente.

Mas a votação era sobretudo sobre Marielle, alguém que os extremistas sempre buscaram desumanizar, tentando há muito apagar e desvirtuar sua história.

A violência extremista

Em uma entrevista concedida em 2021, Monica Benício falava a respeito de como o extremismo tratava a vereadora carioca assassinada em 2018 com o motorista Anderson Gomes. “Ao denunciar o caso de Marielle ao redor do mundo, automaticamente eu denunciava a política bolsonarista, porque estão relacionadas. A violência contra Marielle e contra o que ela representa é, de fato, relacionada a essa política bolsonarista, porque a imagem da Marielle é o que o bolsonarismo quer destruir.”

Evidências disso puderam ser vistas ao longo do tempo, desde as inúmeras fake news que circularam já no dia da sua morte, inclusive uma sendo divulgada em redes sociais por uma desembargadora e outras que ganharam alcance com políticos extremistas. Há pouco menos de um mês, o deputado Eder Mauro (PL-PA) citou o nome da parlamentar dizendo que “Marielle acabou, porra. Não tem porra nenhuma aqui” em uma sessão da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.

A extrema direita tem posturas e faz discursos violentos contra os inimigos que nomeia todos os dias – é o seu método de mobilizar. Em épocas recentes, seria muito difícil um parlamentar justificar o fato de votar favoravelmente a um colega preso, acusado de crimes tão graves quanto homicídio e participação em organização criminosa. Agora, o quadro é outro.

Como já dito aqui, a retórica extremista também comporta perfeitamente a dissonância cognitiva, convivendo bem com a contradição. O punitivismo é seletivo, sendo exacerbado para aqueles que são considerados “inimigos” e relativizado para os ditos “cidadãos de bem”.

O caso de Brazão, como a prisão foi determinada por Alexandre de Moraes, ainda que tenha sido ratificada por unanimidade na Primeira Turna do STF, entra no rol das medidas que este segmento qualifica como autoritárias ou inconstitucionais por parte do ministro. Serve como desculpa para amalgamar o campo. É simbólico que Daniel Silveira, o deputado federal bolsonarista condenado e preso pelos crimes de ameaça ao Estado Democrático de Direito e coação, tenha sido lembrado por alguns colegas na sessão da CCJ. Ele que se elegeu em 2018 quebrando uma placa com o nome de Marielle em um comício e se tornou símbolo da alegada perseguição judicial sofrida pelo agrupamento político, versão que valerá também no futuro para eventuais condenações que devem atingir o coração do bolsonarismo.

E o discurso contra o STF e Moraes fica bem como justificativa formal destes parlamentares em um contexto no qual o bilionário Elon Musk investe contra o magistrado. Nada é por acaso.

A “justificativa técnica” e a vontade de tumultuar

Embora cada parlamentar bolsonarista tenha seu estilo próprio, discursando para que trechos de suas falas sejam divulgados em suas redes sociais, a ordem é unida. Tentaram justificar tecnicamente a rejeição à prisão de Brazão, defendendo que a Constituição permitiria a prisão de parlamentares apenas em casos de crime inafiançável em flagrante delito.

Contudo, o próprio STF, em uma ação cautelar julgada por Teori Zavascki em 2015, modificou o entendimento estrito afirmando que, quando existem os requisitos que autorizam a prisão preventiva, o crime não pode ser afiançado, o que possibilita a prisão em flagrante. E como o delito pelo qual foi decretada a prisão, obstrução de justiça, pode ser considerado crime permanente, o Código de Processo Penal prevê que “nas infrações permanentes entende se em flagrante delito enquanto não cessar a permanência”.

Obviamente que pode haver discussão jurídica, mas não é a primeira vez que o STF adota a posição, confirmada ou não a prisão de parlamentares depois pelo Legislativo. Ou seja, não é uma novidade nem tampouco uma invenção de Moraes como tentaram fazer crer alguns parlamentares na CCJ.

Mas se a comissão não tinha como objetivo discutir o mérito das acusações contra o deputado preso, houve quem o defendesse também nesta seara, fazendo as vezes de advogado criminal. Foi o caso de Otoni de Paula (MDB-RJ), que colocou em dúvida a denúncia contra Brazão utilizando trechos de matéria da Folha de S. Paulo e coluna de Merval Pereira para afirmar que se baseava somente na delação de Ronnie Lessa, o que não é verdade. Foi além, dizendo que “havia muita gente da extrema-esquerda com interesse na morte da colega Marielle”.

Otoni pretendia tumultuar a sessão e aí reside outra estratégia parlamentar da extrema direita. Quem acompanha o trabalho das comissões legislativas sabe que quase sempre há um ou mais parlamentares dispostos à ofensa e à violência simbólica (às vezes física) para marcar sua imagem como alguém que enfrenta a esquerda (se é tido como “inimigo”, vale quase tudo contra ele, segundo a gramática do grupo).

Mas o deputado, com seu comportamento, era na sessão alguém que não escondia a principal motivação dos representantes da extrema direita: o ódio a Marielle e a tudo que ele representava.

A normalização que não deveria acontecer

Derrotados por 39 votos a 25 na CCJ e por 277 a 129 (mais 107 abstenções e ausências, que contaram a favor da soltura de Brazão), os extremistas mostraram força, mas não conseguiram vencer. A votação traz também a discussão sobre o poder de influência do segmento sobre o resto da Câmara.

“Tem muito deputado de centro que se acovarda e pega carona com o bolsonarismo porque tem medo das redes sociais”, disse na sessão da CCJ o deputado federal Fausto Pinato (PP-SP). Em parte, ele tem razão. Alguns temem o poder que da extrema direita nas plataformas e em especial quando agem em ordem unida, com uma estrutura construída há muito tempo. Mas só isso não explicaria tantos votos (nominais) em uma questão que pode trazer prejuízos a um parlamentar.

É preciso lembrar que, no quadro brasileiro, o deputado típico do chamado Centrão tem muito mais afinidade ideológica com os radicais de direita do que com o próprio centro do espectro político. Mesmo com atuação fisiológica, era difícil para alguns justificarem para sua base eleitoral, por exemplo, porque votavam com o governo Dilma. Hoje, eles se sentem muito mais confortáveis em defender pautas do populismo penal, por exemplo, agradando seus eleitores. Isso fica ainda mais evidente em um ano eleitoral como 2024, quando muitos serão candidatos a prefeito ou apoiarão pessoas do se núcleo político.

Mas é fundamental lembrar que não haveria tamanha adesão aos extremistas em uma votação como a de ontem se não fosse um aspecto fundamental. Pautas radicais de direita têm sido tratadas como se fizessem parte do jogo político tradicional, sem repúdio nem um tratamento adequado de boa parte da sociedade e da mídia tradicional. No Brasil, a extrema direita não é tratada como tal e sequer nomeada desta forma. E a normalização daquilo que não deveria ser normalizado segue.

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