Lula em busca de uma grande estratégia

Fiscalismo é parte do problema. Mas falta ao governo uma postura firme para alterar a correlação de forças e conter a ultradireita, sem esperar resultado do cerco judicial a Bolsonaro. E um projeto claro de Brasil, a partir da indústria e expansão de serviços sociais

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A vitória de Lula contra o ultraliberalismo de Bolsonaro colocou uma nova perspectiva na condução do Brasil. Na economia, a natureza do projeto de governo ainda mostra que não existe uma estratégia unívoca, tendo diversos elementos diferentes, contraditórios entre si. Em 2023, em conjunto com a manutenção do tripé econômico neoliberal, se retomaram as antigas estratégias para estimular a economia via política de aumento real no salário mínimo, aumento das transferências sociais e expansão do crédito, o crescimento baseado no consumo de massa, destacando-se medidas como a capitalização dos bancos públicos, reforma do IVA, o desenrola, programa nova indústria, reforma tributária, reativação de programas sociais e maior gasto social e a busca por reduzir os juros. Com isso se melhorou o consumo e rompeu-se o ciclo de destruição do aparelho estatal. Mesmo assim, em 2023, o crescimento foi menor que em 2022, a economia passou a desacelerar no segundo semestre e continua assim até agora, com investimentos públicos rebaixados, juros ainda altos, privatizações em diversos estados, preço alto de alimentos e energia além do aumento na sensação de insegurança. E a elevação dos gastos públicos, a supersafra e queda no preço dos alimentos não devem se repetir neste ano, colocando obstáculos à política econômica de crescimento delineada.

Neste ritmo, dificilmente a atividade econômica alcançará até 2026 um desempenho próximo ao verificado nos governos Lula I (2003-2006), com crescimento médio de 3,5% ao ano, e Lula II (2007-2010), de 4,6% ao ano. Sem romper com o fiscalismo do primeiro ano de seu governo, e sem promover uma agenda desenvolvimentista, corre-se alto risco de Lula registrar o seu pior desempenho frente à Presidência do país. Será uma decepção que pode custar a sucessão de seu mandato.

Porém, o que mais chama atenção não é a frente econômica, mas a condução política. O governo não tem um núcleo político claro. Nos primeiros governos Lula, existiram diversos atores que compunham um pensamento coletivo mais ou menos maduro sobre as condições reais do país, o acúmulo histórico em propostas, alianças e negociação. No governo atual, existe uma manifesta descoordenação no governo, sem um núcleo político com um projeto claro para o país, capaz de executar e acompanhar as grandes e pequenas ações estratégicas. O governo opera hoje sem construir uma força dirigente, que sustente uma prática norteadora. Se destaca também a falta de ideias e proposições, se abstendo de uma disputa política ideológica em torno das grandes questões – economia, soberania, combate à criminalidade, desenvolvimento, industrialização, etc. Isso é, não se tem um rumo claro para o país.

Aparentemente se aposta na política de dourar a pílula, na expectativa que o cerco judicial à Bolsonaro será capaz de desmobilizar a extrema direita, abrindo espaço para a disputa eleitoral com uma direita liberal que sairia derrotada da eleição em 2026. E aí, num segundo governo, se poderá avançar para um programa nacional mais consistente. O problema é que, hoje no Brasil, cerca de 30% está vinculado à extrema-direita e à esquerda, outros 40% variam de acordo com a conjuntura. Isso cria não apenas uma polarização, mas um emparedamento do sistema, pois os 30% da extrema-direita mantêm parte de sua hegemonia, está mobilizada e organizada, diferentemente do polo à esquerda. Muita frustração sobre a capacidade do governo pode ser fatal. Assim como Lula ganhou por pouco em 2022, pode perder por pouco em 2026. Se o governo não tiver um choque de realidade e organizar um Estado Maior, pode gerar uma decepção que pode custar a sucessão do mandato, que não está garantida em 2026. E, sem a continuidade do governo Lula, o fracasso será ainda mais completo, com o retorno de um liberalismo sem limites, porém com um verniz menos estrambólico do que Bolsonaro.

A chegada de Lula à presidência não garante a manutenção de uma hegemonia. Conservação e ampliação da hegemonia é um longo processo de disputa, avanços e retrocessos. Envolve a direção para o país, no campo econômico, político e cultural. Se o governo manter uma linha excessivamente liberal – na economia, política e costumes – deve se enfraquecer e ser emparedado. Nenhuma política será eficaz se for frontalmente contra os interesses fundamentais e os costumes do povo.

Se o governo pretende constituir-se como força dirigente, terá que reformular suas prioridades práticas. Definir claramente o que se pretende para o futuro do país. Ajudar a elaborar uma grande estratégia que norteie as decisões políticas. Quanto mais se posterga a formulação e execução de uma grande estratégia, mais se fica longe de um entendimento claro, direto e objetivo sobre como estão as coisas e para onde se está indo.

Inicialmente, uma grande estratégia envolve a coordenação de variáveis sociais, econômicas e políticas com os cálculos de poder militar e diplomático, na sua relação com o mundo exterior. Discutir e definir uma nova agenda interna, levando em conta as mudanças globais, para restabelecer o equilíbrio da economia e volta do crescimento e do emprego, o aumento da competitividade e investimentos.

O centro de uma grande estratégia deve partir do momento pós-globalista no mundo. Seu objetivo fundamental é reestabelecer a soberania nacional, voltar para si e buscar a autossuficiência em setores estratégicos. Nesse contexto, o poder ganha legitimidade se for eficiente para organizar uma estrutura política, econômica e ideológica que permita defender os interesses dessa sociedade diante dos outros. Os Estados que melhor consigam se fechar serão os que prevalecerão no mundo pós-globalista. Isso significa que deve ser autossuficiente e independente de fornecimentos externos relativas à alimentação, produtos industriais, energia, sistema monetário e financeiro e poderio militar. E superar o descompasso que se verifica, no Brasil, entre as políticas externa e de defesa.

A reconstrução do Brasil exige uma estratégia que combine medidas emergenciais e medidas estruturantes. Por meio de medidas emergenciais alterar significativamente a correlação de forças, colocando a soberania nacional como centro de uma nova agenda política. Para destravar o crescimento e chegar a 4 ou 5% por ano, o governo precisará realizar um crescimento ampliado da produção industrial e agrícola, romper com os monopólios e oligopólios que dominam a economia brasileira e criar um novo tipo de regulação dos investimentos estrangeiros, de modo que se voltem para o setor produtivo. Adotar políticas macroeconômicas coerentes, que mantenham a inflação baixa, utilizem os juros para incentivar os investimentos e tratem do câmbio como instrumento de política de desenvolvimento industrial. 

É crucial elevar o adensamento das cadeias produtivas com maior participação das empresas nacionais nos setores monopolizados por empresas estrangeiras. Alavancar altos índices de desenvolvimento da indústria nacional, suficientes para uma concorrência efetiva com outros Estados, mas sem excluir a cooperação. A política de reindustrialização deve estar voltada aos setores sociais interessados na industrialização, especialmente a média burguesia, que atualmente é fornecedora peças e componentes para as grandes indústrias nacionais e estrangeiras, as empresas estatais e os trabalhadores. Esta é a base social da industrialização. Também são estes os setores interessados na ampliação do mercado de consumo de massa.

Outro ponto é a concentração dos investimentos estatais em áreas estratégicas levando em conta a instalação de plantas de fabricação de produtos de cadeias produtivas do mais alto valor agregado como na aeronáutica, setor naval, automobilística, robótica, carros elétricos, defesa, ferrovias, softwares, tablets, além do desenvolvimento de investimentos em áreas relacionadas a biogenética; biotecnologia; nanotecnologia; biomassa; energias renováveis; aerogeradores; indústria aeroespacial; impressão 3D, o setor de base química, envolvendo a indústria farmacêutica, de vacinas, hemoderivados e reagentes; o setor de base mecânica e eletrônica, envolvendo as indústrias de equipamentos médico-hospitalares e de materiais médicos; novos materiais; o setor de serviços, envolvendo de hospitalar, laboratorial e serviços de diagnóstico e tratamento; serviços de telecomunicações e infraestrutura digital a partir do desenvolvimento da banda larga (comunicações, ópticas, wireless e comunicações por rádio e satélite). Neste impulso industrializante deve-se levar em conta a formação de novas estatais, para o aceleramento de setores de ponta e a transformação de todas as estatais em indutoras de industrialização.

A população brasileira é, em sua maioria, cerca de 85% urbana o que facilita a construção de serviços públicos eficientes. Faz parte de uma grande estratégia, portanto, uma nova urbanização do país. Para o desenvolvimento social e econômico, é necessário investir massivamente em infraestrutura urbana, onde hoje habitam a maioria da população brasileira, carentes de transportes decentes e baratos, saneamento básico, água potável, infraestrutura de educação e saúde e moradias.

O governo Lula deve avançar para um projeto pós-globalista. Só que o Brasil foi um dos países onde a globalização e o liberalismo eram e ainda são considerados dogmas indestrutíveis e irrefutáveis. O Brasil está integrado à estrutura globalista na dimensão econômica, política, militar, ideológica e tecnológica. A classe política parece incapaz de fazer a transição para um novo Estado, seja em termos operativos, ou aspectos de visão de mundo, cultura política e administrativa. Ela se encontra atônita diante do desafio de preparar o Estado e a sociedade para se unirem em torno da nova ordem pós-globalista. Esta situação deixa vulnerável o país para o mundo pós-globalista que se anuncia.

Ao estudar o quadro político e econômico do país, se vê a necessidade de uma ação desenvolvimentista coerente e profunda. Atacar todas frentes que impedem o crescimento e a distribuição de renda. Essa política só pode ser implementada por iniciativa do Estado. Para poder eficazmente realizá-la, depende de reformas que aparelhem o Estado para este fim. Criar um novo sistema de metas econômicas e sociais, incluindo a redução da violência com maior controle territorial do Estado e maior eficácia das políticas públicas sociais que garantem a vida – saúde, educação, segurança alimentar, saneamento básico, transporte e moradia. É de um Estado forte que o Brasil precisa, que seja soberano, promotor da integração nacional, centralizado e unitário, capaz de levar adiante as transformações que impulsionem o desenvolvimento nacional. Um Estado capaz de projetar a civilização brasileira para o futuro.

Fernando Marcelino é pós-doutorando em Política Públicas pela UFPR. Publicou recentemente os livros “Para onde vai a esquerda? Crise da democracia liberal, soberania e novos governos progressistas na América Latina” e “Em defesa do projetamento: desafios do desenvolvimento brasileiro”.

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Um comentario para "Lula em busca de uma grande estratégia"

  1. Wilson R. B. Ramos disse:

    Todas as ações prescritas no artigo estão sendo promovidas pelo governo. Claro que num ritmo ainda lento. O que autor esquece é que o governo ultraliberal ainda não foi todo trocado. Somente em 2026 poderemos ter no BC um presidente e uma diretoria com um mínimo de espírito público. No legislativo, os presidente são ainda aqueles que se entenderam com o dito capitão que nunca passou de tenente expulso. O mercado financeiro vai começar a entrar nos eixos em mais um ou dois anos, com resultados na economia e no controle da dívida muito mais efetivos que suas previsões Mãe Dinah atualmente em voga, trazendo a taxa de juros abaixo do crescimento do PIB. aí então será possível traçar cenários mais longos e requisitar os recursos à sociedade, seja de impostos ou emissão de dívida nova para projetos promissores.

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