Uma introdução ao pensamento de Lukács

A editora Boitempo relança no Brasil um livreto que visa auxiliar aqueles que desejam adentrar o complexo universo do filósofo – uma bússola para nortear o leitor iniciante. Leia, com exclusividade, um trecho do escrito. Sortearemos um exemplar

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Ao longo de seis décadas vívidas, conturbadas, marcadas por revoluções e exílio, o filósofo hungáro György Lukács traçou sua obra. Por conta disso, o escritor nos deixou de herança um legado monumental que pode ser um grande quebra cabeças para os que desejam se aventurar em sua leitura.

Para quem busca dar início à leitura dos textos do filósofo mas ainda não sabe por onde começar, a Boitempo Editorial relançou recentemente o livreto Lukács: uma introdução. Escrito pelo pesquisador da obra lukacsiana, coordenador da Biblioteca Lukács, e respeitado teórico marxista brasileiro José Paulo Netto.

Outras Palavras e Boitempo Editorial irão sortear um exemplar de Lukács: uma introdução, de José Paulo Netto, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a terça-feira do dia 29/1, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!

A partir de um olhar da vida e obra do escritor, José Paulo Netto nos conduz em um mergulho pelos caminhos e descaminhos que construíram (e desconstruíram) a teoria de Lukács, “da perplexidade humana a seu cruzamento com a história, a cultura e as artes, a estrutura da vida cotidiana, a transição socialista e a filosofia clássica”.

Ressoando as palavras de Netto, adentrar na obra de Lukács não deixara o leitor refém do “‘Decifra-me ou te devoro; o desafio proposto pela obra lukacsiana é diverso – resume-se num ‘Decifra-me e compreenderás melhor o teu mundo’”.

Leia, com exclusividade, um trecho do livro.


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A recusa do mundo burguês

“Síntese da problemática da minha infância e da minha juventude: uma vida significativa no capitalismo, impossível; o combate para alcançá-la, tragédia […]” – esse fragmento de um texto, que Lukács escreveu pouco antes de morrer, caracteriza adequadamente sua aventura intelectual juvenil, que se estende de sua estreia como crítico teatral, em 1902, aos finais da Primeira Guerra Mundial.

Filho de uma abastada família de judeus enobrecidos que habitava o Lipótváros, bairro histórico de Budapeste, Lukács muito precocemente desenvolveu uma firme atitude de recusa em face do modo de viver e de pensar instaurado pelo capitalismo. O estilo burguês de vida e pensamento – não se esqueça de que Budapeste reproduzia os costumes de Viena, capital do império austro-húngaro – que se oferecia a Lukács apresentava-se como um misto de sofisticação e mundanismo; era o clima da Belle Époque penetrando os poros da sociedade húngara. Precisamente essa miséria húngara, que poderia constituir o espaço para a fácil notoriedade do jovem Lukács, repugnou-o: seu ponto de partida afetivo e intelectual foi “uma recusa apaixonada da ordem existente na Hungria”. Essa recusa do jovem Lukács, porém, não encontrou à época formas concretas pelas quais conduziria, mediante a via da intervenção política, à transformação das instituições sociais. 

A oposição à ordem húngara não tinha respaldo na grande burguesia: parceira da aristocracia rural e da burguesia financeira austríacas, ela também se fusionava com a nobreza latifundiária magiar. A intelectualidade rebelde, portanto, deveria buscar outras bases de apoio. Não as localiza, no entanto, no movimento operário húngaro (em 1910, existiam no país pouco mais de 900 mil operários, metade dos quais concentrados em grandes fábricas); o proletariado húngaro, apesar de sua tradição de lutas, ainda não articulara uma vontade política organizada e autônoma: o Partido Social-Democrata era claramente reformista. Em seu interior, apenas o grupo liderado por Erwin Szabó (agitador político, divulgador de Marx, ideólogo que confundia o socialismo marxiano com o sindicalismo revolucionário de Georges Sorel) procurava alternativas revolucionárias. Quanto aos democratas não proletários, entre os quais pontificava Oszkár Jászi, estes partilhavam largamente dos vícios da política burguesa.

Os intelectuais contestadores, nessas condições, tendiam a se isolar em pequenos círculos, sem conseguir nenhuma incidência relevante na vida política. Alguns desses cenáculos seriam viveiros de futuros revolucionários, fundadores do Partido Comunista e participantes da Revolução Húngara de 1919 – como o Círculo Galileu, marcado pelas ideias de Szabó, e ao qual Lukács pertenceu enquanto estudante. Lukács, realmente, frequentou outros cenáculos, como a Sociedade de Ciências Sociais, dirigida pelo já citado Jászi; mas em nenhum deles encontrou ressonância e respostas para suas inquietações.

A recusa de Lukács em face da sociedade húngara é radical. Por isso, uma intervenção que não possuísse idêntico caráter de radicalidade parece-lhe desprezível. Ele defende uma postura que rompa com qualquer compromisso com a ordem burguesa e não vê no quadro húngaro nenhuma força social capaz de implementar efetivamente um projeto de transformação qualitativa da vida e da cultura. A intervenção política então possível seria insuficiente e, por consequência, ele permanece um marginal diante dos movimentos políticos da Hungria na primeira década do século.

Nessa Hungria enrijecida, palco de uma “aliança desigual entre os latifundiários feudais e o capitalismo em vias de desenvolvimento para a exploração comum dos operários e camponeses”, Lukács reconhece ao mesmo tempo a necessidade e a impossibilidade da revolução. É por isso que ele se identifica plenamente com Endre Ady, o poeta que escrevera, logo após a Primeira Revolução Russa (1905): “O exemplo russo deve edificar-nos. As sociedades apodrecidas e impotentes só podem ser salvas pelo povo, pelo povo trabalhador, invencível e irresistível”. A lírica de Ady comove Lukács por sua radicalidade, causa-lhe um “verdadeiro choque” – sobretudo porque, como confessou mais tarde, “a influência determinante de Ady residia justamente no fato de que jamais, nem por um só instante, ele se reconciliou com a realidade húngara […]. Quando conheci Ady, essa irreconciliabilidade me seguiu em cada um dos meus pensamentos como uma sombra inevitável”. Contudo, Ady é uma figura dramaticamente solitária na cena húngara: ele representa e fala a homens que sabem que “há necessidade de uma revolução, mas [que] é impossível ter esperanças inclusive na longínqua possibilidade de tentá-la”.

Nos primeiros dez anos do século XX, Lukács é um desses homens dominados pelo sentimento de uma impotência desesperada. Mas porque radicais, ambos, impotência e desespero, não deságuam no conformismo. Lukács procura uma alternativa radical na análise das formas culturais.

Para tanto, inspira-se em duas matrizes intelectuais, extraídas da cultura alemã (que, sempre, constituirá a grande referência de seu universo mental) e ligadas entre si. De uma parte, a filosofia de Immanuel Kant, com seu criticismo rigoroso, avesso a qualquer impressionismo; Lukács se inspira nas exigências morais categóricas, no dualismo e no complexo de antinomias kantianas, com suas rígidas distinções. Doutra, a tradição sociológica inaugurada por Ferdinand Tönnies, o primeiro a formular a contraposição

entre comunidade (a ordem social tradicional, controlada pelo costume e assentada nos vínculos pessoais) e sociedade (a ordem social embasada na economia capitalista, regida pela racionalidade do cálculo e funcionando impessoalmente). Essa tradição, que se fundava na epistemologia kantiana, forjará ainda a dicotomia entre cultura (valores éticos e estéticos) e civilização (progresso técnico-material). Sincronizado a essa tradição sociológica está um curioso, e muito influente até hoje, padrão de crítica ao capitalismo: condenam-se apaixonadamente seus aspectos mais deletérios, em especial na cultura e nos costumes, mas ele é aceito como uma realidade inexorável; suas facetas horríveis são assumidas com dolorosa resignação e só resta compará-lo às formas pré-capitalistas, nostalgicamente idealizadas como contraponto consolador. Trata-se, como se depreende, da crítica romântica à industrialização, à urbanização, à burocratização – ou seja, do anticapitalismo romântico, que marcará em profundidade a obra de Georg Simmel e, emcerta medida, a de Max Weber.

Outras Palavras e Boitempo Editorial irão sortear um exemplar de Lukács: uma introdução, de José Paulo Netto, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a terça-feira do dia 29/1, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!

Essas determinações enquadram a primeira grande obra de Lukács, a História da evolução do drama moderno – trabalho que revela a assombrosa capacidade intelectual desse jovem de 23 anos. O volumoso original, concluído em 1908, seria publicado em 1911: são centenas de páginas dedicadas à produção dramática, do século XIX ao dealbar do século XX, cobrindo o drama alemão clássico (Gotthold Ephraim Lessing, Friedrich Schiller, Johann Wolfgang von Goethe), Christian Hebbel, Henrik Ibsen, August Strindberg, Gerhart Hauptmann, Anton Tchékhov, Maurice Maeterlinck, Bernard Shaw, Oscar Wilde, Gabriele d’Annunzio e Hugo von Hofmannsthal.

Lukács quer, de fato, elaborar uma teoria do drama moderno. Quer responder às perguntas: existe um drama moderno? Se existe, qual é seu estilo? No entanto, afirma que essas interrogações, “como toda questão estética”, são, “antes de tudo, uma questão sociológica”. Mas já então Lukács se nega ao cômodo recurso do sociologismo, da redução da obra de arte às realidades exteriores a ela. Ressalta que “a ação das circunstâncias econômicas sobre a obra de arte é apenas indireta” e que é preciso ultrapassar “o defeito maior da crítica sociológica”, que reside em “procurar e analisar os conteúdos das obras artísticas querendo estabelecer uma relação direta entre eles e determinadas condições econômicas”. Sua análise não padece desse simplismo: o recurso à sociologia é apenas a necessária preliminar para a delimitação do fenômeno estético, que possui autonomia e que só é social pela forma: “o verdadeiramente social” da arte, e da literatura em particular, “é a forma”.

O modelo sociológico de Lukács, a essa altura, é Georg Simmel, o Simmel da Filosofia do dinheiro (1900), obra exemplar do anticapitalismo romântico. O cientista social alemão, de quem Lukács seria aluno em Berlim (1910), conheceu o manuscrito e escreveu ao autor: “As primeiras páginas que li me são muito simpáticas quanto ao método”. Simmel reconheceu-se bem no discípulo: as características centrais da crítica romântica ao capitalismo estavam inteiramente presentes no texto lukacsiano.

Justamente elas respondem por um aspecto da posição teórica de Lukács: ele já entrara em contato com Karl Marx e Friedrich Engels (lera O Manifesto do Partido Comunista, O 18 de brumário de Luís Bonaparte, A origem da família, da propriedade privada e do Estado e estudara o primeiro livro de O capital), mas sua recusa da ordem burguesa não se apoiava na teoria marxiana. Algumas passagens da obra revelam que o autor se defrontava com problemas tipicamente marxianos, como o da alienação: “A mútua relação entre o trabalho e o trabalhador se torna progressivamente mais lábil […]. O trabalho adquire uma vida especial e objetiva frente à individualidade do homem concreto […]. As relações entre os homens se tornam crescentemente impessoais”. Todavia, a influência marxiana é mínima, como o próprio autor anotou tempos depois: “Como é costumeiro num intelectual burguês, limitei a influência de Marx à economia e, principalmente, à sociologia”. Naquele momento, Lukács contemplava Marx através das lentes de Simmel; a crítica teórica ao capitalismo e suas contradições era subordinada à crítica romântica de suas consequências.

Com efeito, Lukács não aborda a sociedade capitalista de um ponto de vista histórico. Ao contrário, ela é vista como a constituinte do “mundo moderno” que se opõe ao “mundo antigo” – toda a fundamentação sociológica lukacsiana se apoia nessa dicotomia, que prolonga a contraposição comunidade/sociedade. E a crítica aos traços anestéticos do modo de pensar burguês também assenta no desenvolvimento da matriz cultura/civilização. Por isso, corretas percepções sobre as manifestações espirituais da vida burguesa se diluem na moldura de uma teoria abstrata e de corte a-histórico. Mas há uma tese de Lukács que resiste a qualquer reserva: ele sustenta que o drama moderno (burguês) rompe com a estrutura do drama antigo (grego), porquanto nele “já não colidem apenas as paixões, mas as ideologias, as visões de mundo”; ele é o “drama do individualismo” e na sua articulação, inversamente ao que ocorria no drama antigo, as classes sociais desempenham um papel decisivo. Aliás, o interesse de Lukács pelo drama moderno já o levara a envolver-se diretamente com o teatro – ele foi um dos principais animadores do grupo Thalia, que encenou em Budapeste peças de dramaturgos modernos.

As premissas lukacsianas, na História da evolução do drama moderno, já o vimos, são as do anticapitalismo romântico. Entretanto, Lukács não é um simples tributário de Simmel: por uma parte, seu pensamento tem muito de platonismo; por outra, sua análise é menos abstrata que a de Simmel. Mas, principalmente, a recusa radical do mundo burguês que impulsionava a reflexão de Lukács não lhe permitia a resignação passiva que era própria dos anticapitalistas românticos. Ela o compelia a transitar para um pessimismo e uma desesperança desenhando uma visão trágica do mundo que, de acordo com Lucien Goldmann, antecipa muito do moderno existencialismo.

Essa visão trágica se cristaliza nos ensaios do livro A alma e as formas, publicado em 1910. São textos que se centram na crítica literária, abordando autores que, em sua maioria, representam o anticapitalismo romântico. No entanto, o enfoque de Lukács não é sociológico-estético, como na obra anterior, mas filosófico, ético-estético. E isso porque a literatura é quase um pretexto para Lukács tratar daquilo que lhe interessa: a relação entre a Vida (autêntica, regida por valores absolutos) e a vida (ordinária, empírica, degradada por compromissos).

Essas duas realidades anímicas podiam coincidir no mundo antigo (grego), mas não no mundo moderno (capitalista): aqui, a verdadeira vida, essencial, a vida absoluta da alma jamais se realiza nas formas da vida social concreta.

Como na História da evolução do drama moderno, o substrato do pensamento lukacsiano é a crítica romântica ao capitalismo: “O estilo burguês de vida é um trabalho forçado e uma escravidão odiosa […]. A forma burguesa de vida devora a vida”. Mas aquele substrato, agora mais metafísico que antes, é conduzido a seu extremo: para Lukács, no “mundo moderno”, a vida individual – dilacerada pela incompatibilidade da alma com as formas possíveis da vida empírica – carece de significação e está condenada a jamais alcançá-la. Daí o caráter trágico da existência e o categórico imperativo para recusar os compromissos.


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