A teoria queer de Mario Mieli

Editora Boitempo publica pela primeira vez no Brasil obra de filósofo italiano. Em diálogo com a psicanálise, escrito debate a íntima ligação do capitalismo com a repressão à homossexualidade e desejo erótico. Leia, com exclusividade, um trecho. Sorteamos dois exemplares

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Em meados de 1977, na Itália, Mario Mieli, italiano gay e prodígio intelectual, publicava sua tese de conclusão do curso de filosofia chamada: Element di critica omosessuale (Elementos de crítica homossexual).

Tal tese viria a influenciar de maneira elementar os estudos de gênero que conhecemos hoje, sendo considerada uma das precursoras da teoria queer.

Ano passado, a Boitempo Editorial publicou o título pela primeira vez no Brasil. 

Outras Palavras e Boitempo Editorial irão sortear dois exemplares de Por um comunismo transexual, de Mario Mieli, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 19/2, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!

Em resumo, a teoria queer afirma que o gênero e seus papéis não passam de uma construção social que nasce de uma demanda ligada a um sistema que precisa da oposição homem vs mulher, sendo que tais papéis sociais precisam cumprir determinadas funções, para garantir, dessa maneira, a reprodução da força de trabalho. Essa reprodução se dá através do sexo heterossexual, visando a concepção de mais trabalhadores, e dos trabalhos de cuidado – ou seja, a criação desses trabalhadores – delegados historicamente aos seres que supostamente deveriam cumprir o “papel de mulher”.

A obra de Mieli é um profundo questionamento que navega pela história da repressão aos desejos eróticos, expondo sua ligação íntima à formação do capitalismo, usando além de uma abordagem marxista, também a psicanálise para fundamentar seus argumentos  – ao mesmo tempo em que refuta teorias psicanalíticas de sua época sobre a homossexualidade.

O tom político e engajado da obra a faz ser considerada também um manifesto pela libertação individual e coletiva de um sistema que aprisiona, corrompe ou utiliza corpos e desejos.


“Para Mieli, o desejo homoerótico é universal e enquanto a sexualidade for reprimida, a homofobia será um problema para todos. Para o autor, a desconstrução do que chama de “Norma” heterossexual precisa ser uma luta dos comunistas.”


Traduzido diretamente do italiano por Rita Coitinho, o volume leva também prefácio e notas de Marília Moschkovich, orelha de Rita von Hunty e quarta capa de Amara Moira.

Quem acompanha o Outras Palavras poderá ler, com exclusividade, um trecho do livro.

Boa leitura!


I. O desejo homossexual é universal

1. O movimento gay em face da repressão

Os movimentos gays contemporâneos surgiram em países onde o capital atingiu o seu estágio de domínio real [1]. No entanto, já sob o domínio formal do capital, e pela primeira vez na história, os homossexuais se organizaram em movimento: isso aconteceu na segunda metade do século XIX, na Alemanha, graças à difusão das obras de Ulrichs [2] e à fundação do Comitê Científico Humanitário (1897), assim como, de outra forma, na Inglaterra e, depois, nas primeiras décadas do século XX, na Holanda, na Áustria, nos Estados Unidos da América, na União Soviética e em outros países. Nem sempre e nem em todos os lugares o movimento homossexual assumiu o caráter associativo que distinguiu o Comitê Científico Humanitário e sua emanação internacional (a Liga Mundial para a Reforma Sexual), mas em muitos países, mesmo sem produzir organizações formais específicas, o movimento homossexual efetivo deu lugar a um amplo debate sobre a homossexualidade que, pela primeira vez, envolveu um número considerável de “personalidades” culturais e políticas e trouxe à tona problemas e argumentos até então silenciados em decorrência dos mais severos tabus.

A violenta perseguição nazista, stalinista e fascista, perpetrada contra os homossexuais nos anos 1930 e durante a guerra, encerrou o movimento e, com ele, a memória dessa primeira importante afirmação homossexual internacional, restabelecendo de forma absoluta a ideologia da Norma. Por causa disso, e muito graças às pesquisas do novo movimento gay, nascido como Gay Liberation Front nos Estados Unidos em 1969, e posteriormente em diversos outros países, que muitos de nós homossexuais, em particular os que nasceram nas últimas décadas, ficamos sabendo da existência de um movimento gay anterior e nos demos conta de que integramos – contrariamente ao que acreditávamos – uma segunda onda do movimento de liberação, e não a primeira. Algumas das questões que nos colocamos hoje, por exemplo, são temáticas já enfrentadas no passado pelo primeiro movimento gay. Uma, principalmente, interessa aos homossexuais de hoje tanto quanto aos do passado: por qual razão a sociedade nos marginaliza e nos reprime tão duramente?

A essa e a outras interrogações tentamos responder com uma pesquisa que partisse da nossa experiência pessoal: seja falando, no decorrer de uma reunião geral dos grupos, da nossa condição existencial e social de homossexuais, comparando as diversas visões; seja nos dedicando de forma mais aprofundada à análise das experiências individuais por meio do “trabalho” de tomada de consciência realizado no âmbito dos pequenos coletivos (grupos de autoconsciência). Em suma, começamos a compreender melhor quem somos e por que somos reprimidos, comunicando-nos uns com os outros, conhecendo-nos e encontrando-nos com base no nosso desejo comum, na perspectiva da libertação.

Além disso, o novo movimento gay retomou a investigação histórica e antropológica iniciada pelo primeiro, ajudando a lançar luz sobre a perseguição aos homossexuais ao longo dos séculos e sobre a origem histórica da condenação antigay, uma condenação quase sempre apresentada como natural pela ideologia do primado heterossexual. E, embora o antigo movimento tenha se dedicado em grande parte à investigação médico-psicológica, o novo movimento formou grupos que também lidam com a psiquiatria, uma vez que lutam contra a perseguição anti-homossexual perpetrada sob a forma de tratamento médico-psiquiátrico. Em geral, o movimento gay refuta os (pré)julgamentos psiquiátricos reacionários sobre a homossexualidade, e os homossexuais revolucionários também se opõem à nova moda progressista e totalmente heterossexual da “homossexualidade” atualmente popular entre os antipsiquiatras*.

Por outro lado, o trabalho de conscientização levou-nos a um confronto imediato com os elementos da teoria psicanalítica relacionados à homossexualidade. Assim, descobrimos na psicanálise algumas noções importantes, tais como a de inconsciente, por exemplo, ou a de recalque [rimozione], que, pelo menos por enquanto, podem ser integradas à ciência gay [gaia scienza]. Entretanto, nós gays chegamos a uma primeira conclusão certa: esclarecemos que o ódio que a sociedade heterossexual sente por nós é causado pelo recalcamento ou “quase recalcamento” da componente homoerótica do desejo em indivíduos heterossexuais manifestos, que – como sabemos… – ainda constituem a maioria dos seres humanos. O recalcamento geral da homossexualidade, em suma, determina a rejeição pela sociedade de expressões manifestas de desejo gay. Trata-se agora de descobrir o que causou tal recalcamento: e, presumivelmente, as razões subjacentes são descobertas combatendo-se o próprio recalque, ou melhor, batendo [3]**, ou seja, espalhando os prazeres e o desejo da homossexualidade. E, ao nos libertarmos, podemos e conseguiremos entender por que fomos escravos até hoje – e isso vale para todos, homossexuais e heterossexuais. Porém, se o recalque é um conceito psicanalítico, também é verdade que, no contexto da cultura contemporânea, é a psicanálise que afirma a universalidade do desejo homossexual. Queremos citar Freud? Tomemos um de seus trabalhos sobre o tema. Aqui: “A libido de todos nós”, lê-se, “oscila normalmente, ao longo da vida, entre o objeto masculino e o feminino” [4]. Por que então, perguntamo-nos, se todas as pessoas são também homossexuais, tão poucas admitem que são e desfrutam de sua homossexualidade?

NOTAS

[1] Ver Karl Marx, Capítulo VI (inédito): Manuscritos de 1863-1867, O capital, Livro I (trad. Ronaldo Vielmi Fortes, São Paulo, Boitempo, 2022). E ainda Jacques Camatte, Il capitale totale (Bari, Dedalo Libri, 1976). No Capítulo VI, Marx descreve as duas fases do desenvolvimento social do capitalismo: submissão formal do trabalho ao capital (domínio formal) e submissão real do trabalho ao capital (domínio real).

Quanto ao domínio formal, escreve: “O processo de trabalho se torna o meio do processo de valorização, o processo de autovalorização do capital – da fabricação de mais-valor. O processo de trabalho é subsumido (subsumiert) ao capital (é seu próprio processo) e o capitalista entra nele como dirigente (Dirigent), líder (Leiter); é, ao mesmo tempo, para ele, um processo direto de exploração do trabalho alheio. É o que chamo de subsunção formal (formelle Subsumption) do trabalho ao capital. É a forma geral de todo processo de produção capitalista; mas é, ao mesmo tempo, uma forma particular ao lado do modo de produção especificamente capitalista desenvolvido, porque este envolve o primeiro, mas o primeiro não envolve (involviert) necessariamente o segundo”. Essa subsunção formal está ligada à produção de mais-valor absoluto. “O capitalista”, escreve Camatte, “não pode obter um valor maior se não prolonga a jornada laboral. Não mudou ainda a base da sociedade. Apenas mudam os exploradores. Domínio formal é, assim, caracterizado por este elemento: do começo ao fim, o capitalismo se distingue dos outros modos de produção pelo fato de que não se detém na apropriação de mais-valia, mas na sua criação”. 

Quanto ao domínio real (subsunção real do trabalho ao capital), Marx escreve: “Aqui permanece válida a característica geral da subsunção formal, ou seja, a subordinação (Unterordhung) direta do processo de trabalho, seja qual for o modo tecnologicamente operado, ao capital. Mas nessa base surge um modo de produção tecnologicamente e diversamente específico que transforma a natureza real do processo de trabalho e suas condições reais – o modo de produção capitalista. Tão logo isso ocorre, ocorre a subsunção real (real Subsumption) do trabalho ao capital. É com o fim da Segunda Guerra Mundial que a passagem do domínio formal ao domínio real do capital na área euro-norte-americana pode ser considerada definitivamente concluída. O domínio real pressupõe, para Marx, “uma revolução completa (que se aprofunda e renova constantemente) no próprio modo de produção, na produtividade do trabalho e na relação entre capitalista e trabalhador”.

Baseia-se na produção de mais-valor que não é mais absoluto, mas relativo. “A ‘produção pela produção’ – a produção como um fim em si mesma –”, acrescenta Marx, “já ocorre com a subsunção formal do trabalho ao capital, tão logo a finalidade imediata da produção passa a ser produzir a maior quantidade possível de mais-valor, tão logo o valor de troca do produto se torna a finalidade decisiva. No entanto, essa tendência imanente à relação de capital só se realiza da maneira adequada – e ela mesma se torna uma condição necessária (notwendige Bedidung), também tecnologicamente – assim que o modo de produção especificamente capitalista se desenvolve e com ele a subsunção real do trabalho ao capital”. Com o domínio real, afirma Camatte, o capital manifesta “a tendência de dominar a lei do valor, explorando-a em seu benefício”. Em um período de domínio formal, ainda para ele, “o capital domina o proletariado e seu domínio é o do capital variável. O capital tinha interesse em usar o máximo de operários para atingir o máximo de mais-valor. […]. Quando passamos para o período de domínio real, o elemento essencial passa a ser o capital fixo”.

Tem lugar uma socialização não só da produção, mas do próprio homem (ambos em relação à desvalorização): “A grande indústria produz o trabalhador total (Gesamtarbeiter) que é a mesma base do homem social do futuro”, diz Camatte. Depois de ter submetido toda a produção, o capital também submete a si mesmo os meios de circulação. Além disso, a dominação real envolve, como traços característicos: a autonomia do capital (ver Il Capitale totale, cit., p. 113 e seguintes); a expropriação dos capitalistas (p. 126); o pleno desenvolvimento dos juros e do crédito e a produção de capital fictício (p. 128 e seguintes); a absolutização do capital (sua aspiração à eternidade, à imortalidade: p. 133 e seguintes); a autonomização das formas derivadas do valor (p. 141 e seguintes.). A lei do valor torna-se a lei dos preços de produção.

O domínio real do capital se manifesta como “fascismo generalizado a todas as nações nas quais se desenvolveram as relações capitalistas de produção”, escreve Jacques Camatte. “O Estado do Capital apresenta-se como o garante de uma distribuição equitativa entre todos os homens. As reivindicações não são mais feitas em nome de um ideal político, mas de um ideal social; não se coloca mais a questão do poder, mas a das estruturas e, mais uma vez, nos seguintes termos: as estruturas devem ser reformadas para que todos possam usufruir dos benefícios do crescimento econômico. É na democracia social que o fascismo se resolve. […] As diversas justificativas da sociedade capitalista […] derivam da autonomização das relações sociais e de sua reificação. ‘São as crises que põem fim a essa aparência de autonomia dos diferentes elementos, em que o processo de produção se decompõe e se reproduz constantemente’ (História das teorias econômicas, v. III, p. 525)”.

[2] Karl Heinrich Ulrichs, Vindex e Inclusa. Ver John Lauritsen e David Thorstad, “Il primo movimento per i diritti degli omosessuali (1864-1935)”, em Gay gay: storia e coscienza omosessuale (Milão, La Salamandra, 1976).

* A antipsiquiatria, ou psiquiatria alternativa, é uma orientação que contraria a função repressiva da psiquiatria tradicional e propõe uma nova forma de tratamento das doenças mentais, já não baseada no uso da violência e da segregação como “terapia”, tampouco organizada em torno da centralidade do conceito de normalidade social. Desenvolveu-se em nível internacional entre o final dos anos 1960 e o início dos anos 1970. Seu representante mais relevante na Itália foi Franco Basaglia (1924-1980), a cujo trabalho deve-se a abolição dos manicômios pela Lei n. 80 de 1978. (N. I.)

[3] Neste livro, usarei sempre o termo battere no sentido gay de sair para procurar (ou desviar-se do caminho para encontrar, ou exibir-se à espera de) alguém para fazer amor. Se, na linguagem das prostitutas e prostitutos, battere significa procurar clientes, para nós homossexuais, por outro lado, battere não significa prostituir-se, mas simplesmente procurar outras pessoas “que estão no seu nível” (pode sempre acontecer, no entanto, de encontrar o americano ou o comasco [habitante da rica cidade de Como] que te oferece um jantar no Hilton e uma corbeille de rosas baccarat). No sentido gay, o battere italiano corresponde ao draguer francês; ao inglês to cruise, ao alemão… Não sei (tenho aqui comigo uma bicha vienense tão inocente que não conhece a expressão equivalente na sua língua materna).

** Battere, quando possível, será traduzido por “sair à caça”, “pegar” ou outros termos utilizados no léxico gay brasileiro. Aqui, manteve-se o termo em italiano em respeito ao trocadilho desejado pelo autor, que não é possível em língua portuguesa: combattere + battere. (N. T.)

[4] Sigmund Freud, “Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina (1920)”, em Obras incompletas, v. 5: Neurose, psicose, perversão (trad. Maria Rita Salzano Moraes, Belo Horizonte, Autêntica, 2022), p. 171.


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