[Cartas do velho mundo]
26.06.20 – O PAPEL DA FRENTE ANTIFASCISTA

Surgiu em muitos países neste século, um fenômeno raro: blocos políticos que reúnem ultra-capitalistas e ultra-direitistas. Quando se formam, a ameaça fascista é real. Por isso, é tão importante combatê-los, inclusive reunido quem tem projetos de país opostos

I.

Deixar de combater o fascismo do século XXI, em nome de atitudes do passado ou diferenças no presente, é um erro grosseiro. Onde o ultra-capitalismo (tradicionalmente liberal) uniu-se à ultra-direita, este bloco incomum chegou rapidamente ao poder, produz imensa devastação e faz a luta política retroceder muitos passos. É o caso do Brasil, Estados Unidos, Argentina, Inglaterra, Chile, Colômbia, para ficar nos exemplos mais conhecidos e analisáveis. As razões desta força começam a ficar claras. O sistema político estava previamente corrompido e desacreditado, pelo esvaziamento da democracia (já que as decisões centrais foram transferidas aos “mercados”) e pela percepção de que as instituições produzem cada vez mais desigualdade e privilégios. As velhas formas de luta e organização dos trabalhadores (sindicatos, partidos), esvaziaram-se, sem que tenham ainda amadurecido outras, que as substituam. A coalizão (neo-)fascista cria um amálgama perigosíssimo, porque combina o ressentimento de massas empobrecidas com imensa força econômica. Esta é capaz de influir nos Parlamentos, no Judiciário, na mídia, mas consegue em muitos casos fazê-lo de modo encoberto, porque usa, como biombo, o ódio das multidões à “velha política”.

Uma vez instalado, este bloco torna-se difícil de remover, porque conta com a divisão dos adversários e aprendeu a explorá-la com habilidade. A degradação do ambiente político e o retrocesso das agendas nacionais, após sua vitória, é abrupta. Basta comparar a situação brasileira, ou norte-americana, como a de Portugal, Espanha, Alemanha, França ou Itália, por exemplo, onde a coalizão (neo-) fascista não se conformou. Basta lembrar que, no mesmo momento em que a Espanha cria uma Renda Básica permanente, de até 1015 euros mensais, o Brasil debate-se para desmontar células ultradireitistas que pregam a eliminação física dos adversários. Vencer o bloco exige criar soluções surpreendentes e abandonar o egocentrismo tão típico da política institucional. Foi o que fez Cristina Kirchner na Argentina em 2019.

II.

Nas últimas semanas, o amálgama (neo-)fascista que levou Bolsonaro ao poder e o sustenta começou a trincar. Esta rachadura é ainda inicial: a oligarquia financeira segue, em peso, com Paulo Guedes e seu capitão Mas duas dissidẽncias, em especial, enfraquecem a avalanche bolsonarista: a da Rede Globo, que carrega consigo a maior parte da velha mídia; e a de vastos setores do Judiciário, em especial após a queda de Sérgio Moro. Foram perdas graves, para o governo. O fato de a Globo voltar a fazer jornalismo (ainda que limitado a certos assuntos…), e deixar de acobertar os crimes do presidente e sua família, corrói lenta mas persistentemente o apoio popular a Bolsonaro. Inquéritos no STF, TSE e na Justiça do Rio estão expondo as entranhas das milícias digitais e os grupos extremistas armados. Surgiu a hipótese clara – embora não imediata – de que se apurem, em qualquer destes inquéritos, fatos que amarrem ainda mais as mãos do governo ou, ainda melhor, o tornem insustentável.

O desgaste do governo abriu frestas para ações variadas. Nas ruas, mesmo em meio à pandemia, entraram em ação as torcidas antifascistas do futebol. Seus protestos, bem maiores que o das legiões ultra-direitistas, tiraram um trunfo importantíssimo do governo, ao inviabilizar a narrativa do presidente, que dizia ser o único político com coragem de se encontrar com as multidões. Já entre setores da intelectualidade, dos artistas, dos influenciadores digitais, da classe média e de partidos políticos antes ligados ao bolsonarismo, surgiram primeiro manifestos, e agora atos públicos virtuais em defesa da democracia, dos direitos humanos – e portanto contra o governo.

O fato de Lula ter se voltado contra estas iniciativas não revela apenas incoerência – justamente de quem, em oito anos de governo, firmou alianças com todo o espectro político (inclusive os aliados da ditadura de 1964). O gesto expõe, mais do que isso, um ex-presidente que nada compreendeu sobre os riscos do novo cenário político; que se recusa a atuar nas circunstâncias do presente, porque sonha com a volta de um passado em que era o centro inconteste dos debates e articulações; e que, mais do que isso, age para inviabilizar ações capazes de despertar novos protagonismos. Estes desejos mórbidos precisam ser atropelados, até para que o personagem tenha chances de voltar à antiga forma política e psíquica – que muito contribuiu para o país..

III.

Mas é possível – pergunta-se – lutar contra o neo-fascismo ao lado de quem há pouco promovia a Operação Lava Jato; ou de quem, ainda ontem, aprovou a lei que facilita a privatização das águas brasileiras?

Sim, é possível! Porque não se trata, ao contrário do que pensam alguns, de formar uma Frente Ampla como as que existem no Uruguai ou no Chile; de tentar costurar um programa único entre quem tem visões opostas sobre os rumos do Brasil. Trata-se de afastar a ameaça comum do neofascismo. Em torno deste objetivo, é possível unir uma vasta maioria da população –e setores políticos com propostas de longo prazo opostas.

É um casamento provisório e de conveniências – mas pode ser construído com algum amor sincero. Aos milhões de brasileiros que vislumbram um futuro pós-capitalista, pós-patriarcado e pós-colonial, é essencial frear a ameaça bolsonarista. É a chance que temos de evitar a ditadura, a criminalização da dissidência e seus horrores. Mas os políticos de centro, e mesmo de direita não-fascista, também precisam livrar-se do capitão. Que espaço haverá para um Dória, um Rodrigo Maia – ou mesmo um Sérgio Moro, um Alexandre Frota e uma Joyce Hasselman, enquanto a máquina de massacrar divergência do atual regime perdurar?

IV.

Ninguém sai de um acordo político (ou de um casamento) como entrou. Será instrutivo assistir às falas do ato por direitos já marcado para hoje (26/6). Que papel poderão fazer figuras como Boulos, Manuela, Ciro, Flávio Dino ou Haddad – na companhia de políticos como Sarney e FHC? Não estarão em pauta as divergências programáticas: o debate sobre o futuro dos mananciais hídricos ou as reservas do Pré-Sal, por exemplo. Todos os presentes saberão o que os separa. Frisar estas diferenças, neste ato, seria um gesto pueril.

Mas em torno da luta pela democracia e os direitos, estará criado um campo comum – como na hora em que começam as danças, numa festa de bodas. Quem irá adiante, nesse território? Quem será capaz de propor, antes de mais nada, a deposição do presidente? E, muito além disso, uma espécie de faxina democrática – que livre o país das indústrias de fake news, da promiscuidade entre grandes corporações e mandatos, da submissão da vida política às ditadura dos mercados?

Começa, esta noite, mais um jogo, num cenário político complexo e perigoso. O Brasil fica bem mais respirável pelo fato de ele estar em curso.

Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OutrosQuinhentos

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *