[Cartas do velho mundo]
02.06.20 – TRANSE

Agora, as multidões parecem voltar. Mas o núcleo de poder dos Trump e dos Bolsonaro não está nas legiões minguantes da classe média ressentida, nem nas milícias, nem no flerte com uma “intervenção militar”. Está nos mercados financeiros, que, falidos, precisam de um condottiere

Viveremos quatro décadas de enormes sobressaltos, avanços e recuos dramáticos e nenhuma certeza, escreveu várias vezes Immanuel Wallerstein nos anos anteriores a sua morte. Agora, a montanha russa parece invadir cada semana. Há pouco, nos deprimíamos com a ausência de revolta e com os incríveis vinte e poucos por cento que, a despeito de tudo, ainda apoiam Bolsonaro. Mas ontem, depois da revolta persistente nos Estados Unidos e do anúncio, pelas torcidas de futebol, de que voltarão às ruas, todos fazem planos. E a agitação é maior, é claro, entre aqueles que defendemos o isolamento pessoal mais rígido, diante da covid-19. Ao contrário do presidente, queríamos que as pessoas esquecessem os empregos e permanecessem em casa para defender sua vida. Exigíamos que o Estado lhes desse condições materiais para fazê-lo. Tudo isso permanece, é claro. Mas diante de algum aumento inevitável dos contágios, que haverá se milhares forem as ruas, é como se pensássemos, coletivamente: vale viver se for para sair do Labirinto.

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São sempre as periferias, agora. Nos EUA, a imensa onda de raiva foi desencadeada pelo assassinato de George Floyd, um negro grandalhão e sempre sorridente que, empobrecido, trabalhava como segurança em clubes noturnos. No Brasil, Danilo Pássaro, um dos garotos que lidera os protestos das torcidas, vive na Vila Brasilândia, o bairro de São Paulo mais castigado pela covid-19. Estuda História na USP e é evangélico. Escreveu um poema amoroso e singelo, no Dia das Maẽs, e horas depois foi à avenida Paulista, tentar mudar o rumo do sistema-mundo. George Floyd foi morto porque, bêbado, queria fumar cigarros de mentol e usou uma nota falsa e rude de 20 dólares, que soltou tinta nas mãos de quem a recebeu. Dezenas de trilhões de dólares estão sendo impressos agora, em todo o mundo, para salvar o cassino financeiro. Mas a polícia chegou chegando contra Floyd, para impedir que o monopólio da emissão de dinheiro fosse quebrado .

Memórias do Fogo, a trilogia de Eduardo Galeano que conta a história das Américas num mosaico de micro-crônicas é, seguramente, sua grande obra – embora lida por muito poucos. Tem, como epígrafe, um Marx fascinado por Darwin: “Na política, como na natureza, a vida nasce nas pocilgas”.

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Mas a morte mora nos arranha-céus suntuosos. Agora, ficará cada vez mais claro que o núcleo de poder dos Trump e dos Bolsonaro não está nas legiões minguantes da classe média ressentida, nem nas milícias, nem no flerte com uma “intervenção militar”. Está nos mercados financeiros, que, falidos, precisam de alguém que os conduza a um porto seguro – onde chegarão, esperam, ainda mais enriquecidos. Foi o que ocorreu em 2008.

As bolsas de valores do mundo todo não param de subir, em meio à morte, ao desemprego e à quebradeira das pequenas empresas. É uma riqueza oca, fictícia, que precisará, em algum momento não distante, ser legitimada por decisões políticas. E a ultradireita é, para a oligarquia financeira, o único porto seguro. Mesmo a centro-direita (os Biden, os Rodrigo Maia, os Dória, os Gilmar Mendes) deixaram de ser confiáveis – porque até mesmo seu compromisso com alguma democracia, alguma liberdade para a ação das maiorias – tornou-se intolerável para o 0,1%.

Alguma classe social, em algum momento histórico, conseguiu apoiar-se apenas na força bruta? “Pode-se fazer tudo com uma baioneta, menos sentar-se sobre ela”, teria dito Napoleão. Terão a automação, a inteligência artificial e o controle de dados permitido ao 0,1% superar este limite?

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