[Cartas do velho mundo]
03.06.20 – PRIMAVERAS DOS POVOS

O proletariado deixou de ser massa e tornou-se sujeito social quando, em 1848, foi às barricadas e construiu uma visão de mundo. Este passo mudou a História. Algo assim estará para ocorrer com o precariado?

Imagem: Gontran Guanaes Neto

O que parece agora tão longínquo aconteceu há apenas oito meses. Nos primeiros dias de outubro de 2019, os indígenas do Equador rechaçaram uma alta no preço da gasolina, imposta pelo FMI e derrotaram nas ruas o governo de Lenin Moreno e seu exército. Duas semanas depois, os secundaristas chilenos encararam um aumento nas passagens do transporte público, pularam catracas e abriram as portas para uma revolta que duraria dois meses e só terminaria com a convocação de um processo Constituinte (agora adiado pela pandemia). Em meados do mês seguinte, levantes populares com gatilhos distintos, mas sempre opostos à desigualdade e ao autoritarismo, haviam se espalhado pelo mundo: Líbano, Argélia, Bolívia, Haiti, Sudão, França, Catalunha, Índia. Alguns compararam a série de rebeliões às de 1848 – a Primavera dos Povos em que o jovem proletariado europeu desafiou pela primeira vez o capitalismo e as monarquias absolutistas que então lhe davam amparo.

Tudo durou até dezembro. Então, abriu-se o longo túnel da pandemia.

Ontem, quando os Estados Unidos entraram no oitavo dia seguido de protestos, pareceu claro que é uma retomada. Os gatilhos agora foram outros: o assassinato, em Minneapolis, do negro George Floyd e o persistente racismo da polícia. Mas tudo transbordou. No Justice, no Peace, dizem agora as ruas. Nelas estão negros e brancos e ao menos tantas mulheres quanto homens. Há velhos ativistas e – em enorme maioria – os muito jovens, que, no centro do sistema e pátria do self made man, afirmam ter mais simpatia pela ideia de socialismo que pelo sistema atual. A onda derrubou o apoio popular a Trump. Ecoou Paris. Pode chegar ao Brasil, pelas mãos das periferias e das torcidas de futebol unidas, no fim de semana.

Todos os manifestantes usam máscaras – mas sabem que seu gesto os coloca pessoalmente em risco. Parecem acreditar que não há outro caminho para viver, num mundo respirável. I can’t breath, repetem. Como George Floyd.

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No Brasil, um deus obtuso exige sacrifícios vãos. Ontem, os números oficiais admitiram o recorde de mortes por covid-19: 1262 óbitos confirmados, num só dia. Chocam menos, mas são tão ou mais funestos os dados sobre novas contaminações: quase 30 mil, o dobro de há duas semanas. Como a morbidade mantém-se em 6%, serão em breve mais de 2 mil mortos ao dia. Não há sinal de que a curva esteja a ponto de se inverter, porque nada se fez para isso. Os cientistas alertam: reabrir as cidades será trágico.

Ainda assim o poder econômico exige e os governos curvam-se. Estão presos a um mundo que termina. Aprenderam a calcular receitas, lucros, PIB. Quando as variáveis da equação mudaram, perderam-se. Não enxergam sequer que oferecer testes da doença à população pouparia montanhas de dinheiro, à Saúde Pública; ou que sem redistribuir riqueza, não haverá consumo. Por enquanto, conduzem-nos.

* * *

O estopim das revoltas de 1848 foi uma grande fome, provocada pela quebra de colheitas, que se generalizou pela Europa dois anos antes. Nos centros urbanos, os operários não podia enfrentar a alta do custo de vida. E as fábricas paravam, porque os camponeses, que formavam a vasta maior das populações, já não consumiam.

A Primavera dos Povos terminou sufocada, mas o mundo nunca foi o mesmo. É em suas barricadas que o proletariado, nascente, deixa de ser apenas massa explorada e surge como sujeito político. Nesse mesmo ano, Karl Marx e Friedrich Engels escrevem o Manifesto Comunista, em que propõem um programa para mudar a sociedade.

Do Chile ao Líbano, e agora aos Estados Unidos, há um precariado em formação. Nas ruas de Nova York estão os negros humilhados todos os dias pela polícia; os estudantes que terminam os cursos com dívidas impagáveis e empregos medíocres; os imigrantes que correram o mundo para tentar inutilmente a sorte no centro do sistema.

Bilhões de vidas desaproveitadas e desejosas, à espera de uma nova primavera.

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