[Cartas do velho mundo]
04.06.20 – LUÍS EDUARDO E TICO SANTA CRUZ

Duas vozes respeitáveis sugerem cancelar as manifestações de domingo, para evitar uma cilada de Bolsonaro. É provável que estejam errados. É preciso ouvi-los e abrir um debate sincero – e rápido

Imagem: Marc Chagall, A Revolução (1937)

Quando muitos já se preparavam (e pensavam em como proteger-se) para as manifestações contra Bolsonaro no domingo; quando a logomarca dos Antifascistas havia viralizado e se prestava – como deve ser – a infinitas releituras; quando até os portais da velha mídia publicavam textos sobre o antifascismo, eis que duas figuras notáveis – o sociólogo Luís Eduardo Soares e o músico Tico Santa Cruz lançaram um alerta amedrontador. É uma arapuca, creem. Pensam que não haverá como evitar provocações, possivelmente muito graves, e estas jogarão a maioria contra os manifestantes, nos braços de Bolsonaro. Este então caminhará, com apoio dos militares, para o estado de sítio. Encontrará, no momento em que está enfraquecido, um atalho para se reaprumar e recrudescer.

Á primeira vista, faz sentido. A mentira e a falsificação, são, para o governo, a forma principal de agir: seu método. A ultradireita têm, no aparato policial clandestino, meios e conhecimento para plantar falsas evidências e promover infiltrações. Os grupos que organizam as manifestações – alas antifas das torcidas de futebol – têm ainda pouca experiência política.

Mas a maior parte destas condições sempre existiu, e todas elas continuarão presentes enquanto houver governo Bolsonaro. Iremos, então, nos recolher, à espera de que o pesadelo simplesmente passe, ao mágico despertar? A lógica do patife é o combate permanente. Ele jamais recua, diante de gestos de boa vontade. Interpreta-os como sinais de fraqueza e estímulos para avançar. O engano trágico, frente a tal ameça, não seria desperdiçar o momento em que está mais frágil, e permitir-lhe a recuperação?

As indicações de fragilidade, aliás acumulam-se. Bolsonaro já não tem a cumplicidade da Globo e do restante de mídia tradicional. O Judiciário (começando pelo STF) deixou de protegê-lo. No Congresso, sua base dissolveu-se: sujeita-se agora aos caprichos e trejeitos do Centrão. A queda de sua popularidade é nítida. Trump, o principal pivô da articulação global que o gerou, está em apuros.

Não seria o caso de engrossar e ampliar o sentido das manifestações – ao invés de desconvocá-las?

De organizar, virtualmente, grandes plenárias de orientação? De convocar a imprensa (onde muitas portas se abriram) e anunciar que a manifestação será pacífica e qualquer ato em sentido contrário partirá de seus adversários? De garantir normas mínimas de distanciamento social? De articular a presença visível de influenciadores sociais (os antigos e os novos…), capazes tanto de atrair mais gente quanto de impedir, com seu peso, derrapagens? De propor a movimentos de militância mais estruturada – o MST, o MTST, as centrais sindicais – que exerçam a segurança?

Aqui, salta aos olhos a ausência de oposição. Os partidos de esquerda têm dezenas de parlamentares e seus assessores; fundações; recursos. Influenciam milhares de sindicatos e organizações sociais. Formaram, em torno de si, duas “frentes” (embora estas não ajam como tal). Mas quando mais se necessita dela, esta estrutura permanece inerte. Quem se dispõe a agir, em nome dos 70% que rejeitam Bolsonaro, são os garotos das torcidas de futebol.

Ainda assim, o alerta de Luís Eduardo e Tico Santa Cruz deve ser levado em conta. Os três dias que faltam permitem um debate real. É preciso que se expressem os que têm peso. Que opinam os partidos, as frentes, suas lideranças? Omitir-se ou falar por procuração, agora, será desastroso.

* * *

Reforma ou Revolução? Disputa institucional ou luta armada? Conquistas do lulismo ou 2013? Estas disjuntivas falsamente inconciliáveis marcam em especial a esquerda brasileira. Em Rasga Coração, o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha, atribuiu-as ao caráter oligárquico de nossa sociedade, mimetizado inclusive pelos que tentavam transformá-la. Como dois barões antagônicos, dois líderes de esquerda antagonizados precisam um do outro para manter o controle de seus respectivos territórios. Enquanto pelejarem, terão plateia – e a potência gigantesca e diversa da multidão permanecerá inibida.

* * *

Nos Estados Unidos, as manifestações antirracistas chegam hoje ao décimo dia seguido – sempre enormes e difundidas por dezenas de cidades. Desde terça, os saques e depredações são mínimos. Em inteligência coletiva, a multidão deu-se conta de que eram cilada – e encarregou-se de evitá-los. Os protagonismos estão revertidos. John Biden, o candidato do Partido Democrata às eleições de novembro, falou (bem) apenas terça-feira. Barack Obama, o presidente negro, ontem. Isolado até mesmo dos chefes do Pentágono (o atual e o anterior), Trump emudeceu.

Os Estados Unidos são ainda, de longe, o país mais castigado pela pandemia. O que leva milhões de muito jovens a desafiar o afastamento social e, em certo sentido, a morte? Por que motivos terá ressurgido, na sociedade mais consumista do planeta, o mesmo sentimento de desprezo à banalidade da vida que levava os Miseráveis de Victor Hugo a encarar as barricadas? Talvez a pergunta já contenha sua resposta.


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Um comentario para "[Cartas do velho mundo]
04.06.20 – LUÍS EDUARDO E TICO SANTA CRUZ
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  1. Helda Oliveira Abumanssur disse:

    Oi Antônio, estamos em sintonia. Postei hoje nos comentários do texto veiculado pelo professor Luiz Eduardo Soares no Facebook ontem. Tomo a liberdade de compartilhar aqui também.
    “Professor Luiz Eduardo Soares compartilho de suas preocupações, mas penso também que nossa estratégia hoje não pode ser a mesma que tivemos em outros momentos de ameaças a democracia ou durante a ditadura, quando tantas ameaças se concretizaram de maneira tão cruel. Penso que talvez nossa resistência neste momento deva ser realizada e apoiada nas diversas formas que os diversos movimentos estão achando de implementá-la. Penso inclusive que isso é uma força, pois dificulta os contra ataques. Quero dizer, alguns movimentos organizados entendem que é hora de ir para rua, outros criam manifestos (Juntos, Pacto pela Democracia, Cientistas, Artistas, Universidades, Juristas), outros ainda batem panelas, outros fazem campanhas de atendimento aos mais vulneráveis na pandemia ao mesmo tempo que denunciam o genocídio em curso, e assim vai. Somos muitos e diferentes, podemos nos apoiar e divulgar nossas iniciativas e, quem sabe, integrar as mesmas em alguns momentos. Sabe por que penso assim? Porque estamos buscando a mesma coisa, alguns de nossos valores mais caros e comuns estão ameaçados e queremos defende-los.
    Nossa mobilidade, fluidez, dinâmica criatividade na diversidade podem ser uma diferença crucial neste momento. Sem querer ninguém ter razão total, sem julgamentos, sem centralizações porque neste momento a gente não sabe mesmo o que pode funcionar, o que não pode. Eu pelo menos não sei e estou aberta a ouvir, dialogar e consentir no risco de experimentar.
    Nesse sentido, fico pensando se junto com a iniciativa de colocar para outros movimentos questões para pensar, não seria o caso, por exemplo, de também dizer que estas questões não nos impedem de fazer muitos e pequenos atos pelas cidades na hora da manifestação marcada para domingo, ou alguns que quiserem podem bater panelas nesta hora, outros podem nesta hora tuitar (nem sei se é assim que escreve), os grupos dos manifestos Juntos, Pacto e outros podem sair com notas apoiando o direito de se manifestar sem ser ameaçado, etc. Fica a sugestão com a esperança de iniciar um diálogo também neste sentido. Bora?”

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