[Cartas do velho mundo]
05.06.20 – DEMOCRACIA EM DESMANCHE

Ausência de debate sobre a extensão dos R$ 600, em meio à pandemia, mostra que interdição da política é anterior a Bolsonaro – e atende a interesses muito poderosos. Mas talvez esteja neste tema — e na Renda da Cidadania — uma brecha para furar o bloqueio

De que serve uma democracia? Ela abastece a favela com camas quentes e macias, para enfrentar as noites gélidas? Livra-nos do trabalho massacrante, para que tenhamos tempo e respiro de pensar no mundo e na vida? Permite-nos participar de uma reflexão comum sobre os rumos da sociedade – aquilo a que chamávamos de cidadania?

Em algumas semanas, será paga a terceira parcela do auxílio emergencial de R$ 600 criado pelo Congresso, após intensa articulação social, para garantir algum apoio aos mais necessitados durante a quarentena. Como o Brasil tornou-se o fulcro mundial pandemia, e a covid-19 não para de se alastrar, o debate sobre o que fazer a seguir deveria estar no centro da agenda nacional. Como gerar condições materiais efetivas de afastamento social? Com que recursos do Orçamento, ou por meio de que mecanismos de criação extra-orçamentária de moeda? Como livrar os que recebem o dinheiro das longas filas, burocracia, risco ampliado de contágio e humilhação?

Nada disso está ocorrendo, porém. A escassa informação disponível chega em fragmentos, como convém às dinâmicas totalitárias. Não há um fluxo lógico que permita a cada um inteirar-se, articular-se e agir. Tudo parece surgir do poder. Ontem, as TVs e portais noticiaram que Bolsonaro “pensa em estender” o pagamento por dois meses. Também relataram que a extensão “pode ser” por dois meses e o valor “deve variar” entre R$ 200 e R$ 300. Os termos são idênticos aos das previsões meteorológicas. Na sociedade do espetáculo, concede-se às plateias conhecer a previsão dos “especialistas” – jamais agir. E Parlamento, que seria o palco dos debates, exime-se. Entrevistado também ontem, Rodrigo Maia disse “temer” a redução do valor do auxílio.

Mas a quem “teme” o presidente de um dos poderes do Estado? O próprio Bolsonaro deu a pista, dias atrás. “Estou acertando com o Paulo Guedes”, disse, quando perguntado sobre prazo e valor da extensão do “auxílio”. O capitão tem, por oráculo, o feiticeiro, o homem que ouve “os mercados” – ou seja, o 0,1%. São estes que dirão que esmola é aceitável oferecer às maiorias. E foram estes mesmos que obtiveram do Estado, em 23/3, 1,2 trilhão. Sem o incômodo de seguidas votações no Congresso. Sem os infinitos cálculos sobre os centavos do Orçamento. Numa única penada do presidente do Banco Central, uma soma equivalente a doze vezes o montante total dos R$ 600, pagos por três meses a 72,7 milhões de brasileiros.

* * *

Visto por este ângulo, Bolsonaro é muito mais um sintoma que a causa do problema. Se a democracia voltou as costas, em todo o mundo, para as maiorias, por que estas deveriam respeitá-la? Para honrar as glórias do Iluminismo? E se as sociedades estão se transformando em pocilgas de pobreza e desesperança, cercadas por bunkers de luxo e privilégios, por que não mandar tudo pelos ares?

* * *

Aos poucos, vão surgindo, em toda parte, sinais de que há uma brecha para sair do pesadelo. No centro do sistema, os jovens estão rebelados, há dez dias. Ninguém os tira das ruas. Sua consigna, deflagrada pela luta antirracista, é: No justice, no peace. Sua ação, que repercute as rebeliões de 2019, pode espalhar-se pelo mundo.

Dai-me um ponto de apoio e uma alavanca, e moverei o mundo, teria dito Arquimedes, que viveu na Sicília colonizada pelos gregos, no século III a.C. Para tirar, de fato, a paz da oligarquia financeira – e, em especial, para restaurar a democracia reinventando-a – é preciso contar com ferramentas. É preciso sinalizar, por meio de luzes visíveis e claras, que há algum caminho. A Renda Básica Universal é uma opção provável.

Duas trilhas abrem-se, na encruzilhada que se seguirá à pandemia. A oligarquia financeira já se prepara para recomendar muito mais do mesmo. Corte do gasto social. Privatizações. Redução de direitos. Mercantilização total da vida. Cada Estado e sociedade serão exortados a “apertar os cintos”, para que “se tornem competitivos”.

Mas e se for possível mostrar, num esforço político e pedagógico, que há uma alternativa? Que a Renda da Cidadania resgata, em benefício das maiorias, os mesmos mecanismos de transferência de riquezas aplicados há quarenta anos em privilégio do 0,1%. Que, além disso, ela permite estabelecer justiça social, num mundo em que as riquezas não são mais criadas a partir da agricultura ou da indústria, mas dos saberes – e estes, afinal de contas, pertencem a todos?

Neste esforço, justiça e democracia podem encontrar-se de novo. Porque não será possível criar uma Renda da Cidadania efetiva – ou seja, suficiente para uma vida digna – sem enorme luta social. E porque, para fazê-la, será preciso que nos retiremos, todos, da condição de plateia na sociedade do espetáculo.

Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OutrosQuinhentos

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *