Ciência e consumo: dois tempos, uma encruzilhada

Notável avanço técnico-científico da modernidade não democratizou o conhecimento. Ao ocultar seus meandros, e se render aos lucros, prática científica alienou-se da vida comum, gerando negacionismos e mitificações, como a de “vacinas milagrosas”

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Talvez, nem no auge da propaganda Iluminista, se tenha falado tanto em Ciência, quanto neste momento de nossa história recente. Seja porque nunca se precisou tão desesperadamente de um triunfo científico em tão curto tempo, seja porque se observa uma reconfiguração do caráter político do fazer científico, particularmente no lugar em que a ciência consegue penetrar com maior dificuldade: o senso comum.

De fato, os desafios, que hoje a ciência enfrenta, não são constituídos apenas por elementos de nosso dramático momento, porém têm seu ponto de germinação em uma questão que a Modernidade fingiu não ver, ou vendo, não quis enfrentar frontalmente, pois já desconfiava de seus limites e contradições. Conforme vimos em nossa primeira reflexão pandêmica, a articulação ciência-técnica foi a principal garantia do discurso moderno do progresso.

Já não se tratava apenas de ciência como modo de saber– isto é, saber rigoroso capaz de alcançar conhecimento verdadeiro – mas também da técnica como modo de fazer saber dirigido para a produção – uma vez que os conhecimentos deveriam ser úteis, ou seja, deveriam não apenas se satisfazer na obtenção da verdade, porém produzir bens e objetos capazes de satisfazer as necessidades humanas e melhorar nossa existência. Como no paradigma da Guerra, a Natureza tornar-se nosso inimigo, quanto mais objetos artificiais forem criados, melhor nosso sucesso nesta luta, uma vez que essas criações ingenuamente nos afastariam da natureza, nos dando a falsa impressão que não dependeríamos mais dela.

Desse modo, os limites seriam apenas momentâneos, o tempo só demonstraria nosso avanço até a chegada de nossa autonomia final. É, por isso, que desde então não conseguimos mais pensar o futuro sem a presença da Ciência, é como se só houvesse futuro, se garantíssemos ininterrupto progresso técnico-científico. Mesmo onde o futuro enseja a emancipação humana, ou onde resulte em plena perda e negatividade. Por isso, se tirarmos a ciência das distopias, elas deixam de ser distopias. Qual é, contudo, o sentido mais profundo dessa aderência entre fazer científico e futuro?

Ora, as ciências retiram seus capitais sociais justamente da capacidade de previsibilidade, que para o senso comum aparece como algo absolutamente certo, não como prognóstico ou possibilidade. Daí a ilusória expressão: “ciências exatas”. Esta exatidão, de fato, não corresponde a nenhuma realidade, pois todo ato de conhecimento é formado por uma multiplicidade de determinações que um único saber não pode esgotar completamente: saber certo não é o mesmo que saber exato. Mistificação, paradoxalmente criada no seio da razão moderna, como se a ciência não se assentasse quase que completamente na indução e no modelo tentativa-erro; e, que seus ganhos seguem um ritmo mais lento do que a imagem da aceleração que o mundo globalizado nos oferece.

Esta aceleração que é das coisas, mas não do conhecimento, confundindo-se com a previsibilidade, que muitas vezes nada mais é que uma faceta do domínio, mostra-se agora por meio dos inúmeros prognósticos que nos são oferecidos sobre um almejado pós-pandemia: a pandemia nem está perto do fim, nem sequer somos capazes de compreendê-la em sua inteireza, sequer abarcamos bem as suas causas e a enxurrada dos seus efeitos sociais, mas já nos dispomos a pensar sobre o “pós”. É como se magicamente, com a varinha de condão do tempo, este pós-pandemia fosse tirado da cartola e nos fosse ofertado com prêmio de nossa resiliência, por isso, deveríamos estar prontos para o receber.

Newton não intuiu as leis da física depois que a maçã lhe caiu na cabeça, como que por afortunado destino, conforme supõe a lendária narrativa que na escola nos é ensinada no esforço de valorização da ciência. Não é estranho que nos ensinem a valorizar um dos meios de obtenção da verdade, através de lendas? Com efeito, as coisas não são tão simples como parecem. Ao contrário, as proposições do físico inglês demandaram tempo, trabalho e a vida não apenas dele, mas de outros cientistas que o antecederam. Se oculta, desse modo, que o fazer científico não depende apenas do esforço individual do cientista, mas que é, como toda realização social, um fazer coletivo perpassado por múltiplos elementos. Todo fazer científico, mesmo quando feito em lugares ou fins privados, é um bem público, pois nunca pode se dá sem contribuição coletiva. Se o conhecimento que nos trouxe até aqui deve pertencer a todos, como traço do avanço civilizatório, por que seus frutos também não?

Nos esquecemos disso, pois o fazer científico se deu sob o signo da ocultação, sustentando numa crença pífia e medíocre: pensar que a exposição dos erros rebaixaria a ciência. Dessa forma, para poder garantir e aumentar o capital social do conhecimento científico deve-se construir uma imagem triunfante, plena de acertos.

O melhor exemplo disso, ou o mais caricato deles, é a presença diária do homem/mulher do tempo e dos economistas nos telejornais. Assim como a meteorologia é capaz de prever se faz chuva ou sol no dia seguinte, o economista é capaz de predizer como irá se comportar a bolsa e qual o melhor investimento a ser feito. No caso destes saberes, temos a retórica do acerto científico dada em seu caráter mais bruto: a previsibilidade meteorológica nos dá a falsa impressão que o sistema clima é um sistema fechado cujas variantes estão sobre completo controle de quem as analisa; já os vaticínios econômicos naturalizam como fato absoluto e indiscutível algo que, sendo fruto do arbítrio humano, está sempre fadado à imprevisibilidade.

Mirando apenas no resultado, se ocultam não só os erros e o que dispensável foi ficando no decorrer do processo, mas também os meios pelos quais se chegou a um resultado confiável. O homem comum não domina e sabe cada vez menos sobre os meios que levam à obtenção de objetos técnicos-científicos, pois todo o foco está na produção de coisas novas. Desse modo, ainda que próxima, pois os efeitos do conhecimento científico estão não apenas em nossas casas ou objetos que dispomos, mas em nossos próprios corpos, a ciência se torna algo distante; e, por isso, contradizendo-se o discurso moderno. Mitificada, como se tivesse poderes mágicos, a ciência perde a vitalidade de seu fazer que não está apenas nos fins, mas na boa conjunção com os meios. Não é por suas finalidades intrínsecas, ou só por aquilo que produz, que as ciências podem desfazer a superstição e a ignorância, porém pelo bom uso dos meios.

Por isso, o que acontece se alguém sai sem guarda-chuva e volta molhado, depois de ouvir a previsão do tempo; ou perde dinheiro, apesar dos conselhos do economista? Uma óbvia perda de confiança. Imaginem, então, que no auge do avanço técnico-científico, quando já se pensava no pós-orgânico e a realidade parecia ter sido suplantada pelo virtual, surgisse algo que apontasse os limites de tudo isso? Que nos convencesse que apesar dos avanços, nossa condição natural é irremediável, não podendo ser ocultada, nem apagada? Está então formado o quadro da pandemia e suas consequências para o fazer científico.

A perda de confiança na ciência, como já sabemos, tem seu aspecto mais brutal no anticientificismo, como se o fazer científico fosse somente mais uma mera opinião entre outras. Parte disso ocorre justamente pela ocultação dos meios, a falta de boa publicização das práticas e por achar que se adequar aos simplismos da comunicação midiática é o suficiente. A retórica do acerto é boa nos tempos de calmaria, não nos períodos de crise. Ora, é pelos meios utilizados que a ciência deixa de ser mera opinião, mas quando se apresenta triunfante e absoluta, não dando o que havia prometido, ela se torna vazia. Além de vazia, pode se tornar um discurso mudo aos ouvidos de muitos, pois como ocultou os meios, fechando-se em sua própria linguagem, mostrar-se ineficiente para convencer quando não tem nenhum produto para oferecer.

Lembro, por exemplo, das falas públicas de muitos cientistas se esmerando em afirmar que as pessoas comuns não entenderiam o que seria o tal “platô” da curva. Mas não ocorria de ninguém se perguntar sobre as causas dessa incompreensão. Tal se dá justamente pela ocultação dos meios e pela distância entre o fazer científico e as práticas da vida comum. Simplesmente usar cotidianamente os produtos desta prática, ao invés de se esclarecer, aliena. E isso também para os cientistas, que cada vez mais atolados nos pântanos da hiperespecialização vão se tornando incapazes de compreender os paradoxos de suas práticas. Incapaz de falar ao homem comum, justamente porque se alienou dele, o cientista resultante do malogrado projeto moderno deixar-se embalar pelo canto da sereia que confunde a autonomia do fazer científico com seu pretenso isolamento do mundo. A realidade é bem mais complexa que a paz dos laboratórios parece supor.

Ocorre que neste momento, na encruzilhada histórica em que estamos, a ciência é cada vez mais instada a oferecer um produto: queremos a vacina a todo custo, ainda que nos sejam ocultados os meios para este fim. As notícias que todos os dias nos chegam sobre as diversas vacinas que estão sendo testadas, em vez de esclarecerem os meandros da prática científica, os ocultam, pois não conseguimos mais diferenciarmos o tempo da ciência e o tempo do consumo, expressão mais loquaz de que o saber científica perdeu seu caráter formativo.

Se a posição da ciência depender mais uma vez somente do produto final que ela possa oferecer, se exacerbarão os paradoxos que a Modernidade nos legou, caindo sobre nosso colo uma visão ainda mais reduzida e pobre de ciência. Uma prática científica refém das limitações do presente, e não iluminadora do futuro, como queriam os modernos. Esta redução pode ser aferida por você, bom leitor: acaso, todas as vezes que você leu a palavra “ciência” nesse texto não pensou em alguém trajando jaleco branco e fazendo uso de algum instrumento laboratorial, de olhos no telescópio ou com o tubo de ensaio em mãos? É desta redução e das encruzilhadas que criam a falsa oposição entre ciências e humanidades que trataremos na próxima reflexão pandêmica.

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Um comentario para "Ciência e consumo: dois tempos, uma encruzilhada"

  1. José Mário Ferraz disse:

    Prá que vacina, se o feijão do pastor acaba com a doença?

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