Um vírus que revela nosso dissídio com a Natureza

Modernidade erigiu um paradigma de guerra: a ciência usada para domar e pacificar as forças naturais. Arrogante, humanidade julgou-se superior, esquecendo-se que é parte no mundo. Pandemia mostra que “inimigo” está vivo…

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Quando Kant respondeu à pergunta “O que é o Esclarecimento?” – ou “o que são as Luzes?” – em 1784, talvez não se desse conta que a partir daquele momento a Filosofia abraçaria a facticidade do cotidiano sem falsos pudores. Não foi mera coincidência que esta célebre indagação e sua resposta se deram nas páginas de um jornal, não nas salas de aula da Universidade. Saia-se do âmbito particular de certas ideias filosóficas, entrando na esfera pública. Já não eram elucubrações de poucas cabeças, mas o sentimento vivo de muitos. De fato, não foi a própria Modernidade que forjou a existência de uma opinião pública?

Se a resposta kantiana se tornou um clássico do ideário Iluminista foi porque teve a força de ser síntese de um momento histórico singular: signo de que a Modernidade não era um simples ideal, porém um modo de ação que desdobra um modo de ser fundante de uma nova relação entre homem-natureza e dos homens entre si. Tal se dava no modo como aqueles e aquelas do tempo de Kant pensavam a si mesmos. Construindo bem mais que uma concepção de tempo linear, abrindo, porém, uma duplicidade do tempo histórico: o presente e seu desdobramento ininterrupto no futuro.

De fato, a resposta kantiana é uma aposta otimista: sendo a um só tempo realista e utópica. De acordo com o pouco viajado pensador alemão – que se vivo fosse, não teria o que colocar no Instagram –, ainda não se vivia uma época esclarecida, mas sim em processo de esclarecimento. Ou seja, o trabalho da Modernidade é um labutar continuum, paradoxalmente assentado sobre uma cisão, um fosso temporal. O presente, aquele vivido por Kant e seus contemporâneos, quando comparado ao passado é melhor, porém quando medido com o futuro seria inferior, posto que àquilo que o porvir trará, será indubitavelmente melhor. Contudo, como é possível crer que o futuro nos trará melhores condições, se ele é um tempo inexistente, é apenas um vácuo de sentido preenchido pelas aspirações de um hoje transitório.

Ora, para toda consciência moderna – como a nossa – o presente é o melhor fiador do futuro. A partir do presente podemos não apenas compreender o que foi, mas espelhar e esperar o que será. O presente é uma bússola sempre apontada para o norte seguro do futuro. Ocorre que esta ideia de futuro retroage sobre o presente; e, passamos a tentar enxergar no aqui e agora, aquilo que só se realizará depois.

Se consolidou, assim, a crença secular no progresso histórico, na marcha das ações humanas no tempo na direção do melhor. A fé no poder da razão teórica se espelhava no avanço da ciência-técnica e nas realizações da razão prática por meio das revoluções políticas: eram os signos mais palpáveis, as garantias que o presente como bom fiador poderia oferecer. Nos hipotecávamos, ainda que usufruíssemos apenas de ideais e, talvez, não mais que boas esperanças.

Até aqui, nossos bons leitores, já expostos às intempéries de uma breve reflexão filosófica, devem estar se perguntando: para onde nos levará este sucinto, porém reducionista e, talvez, tedioso quadro da Modernidade? Ora, não nos levará para lugar algum, posto que nele já estamos: este nosso caótico e pandêmico momento que experimentamos, de muitas formas, ainda dentro daquele registro que também era o de Kant. Todavia, com um agravante: somos, ironicamente, aquele futuro melhor, hipotecado pelo presente dos homens do século XVIII.

Ou seja, a pandemia põe em questão a Modernidade, não apenas mostrando seus limites e desgastes, porém, paradoxalmente, reafirmando-a, pois como demonstraremos em uma série de reflexões em textos pandêmicos: pensamos, agimos e sentimos ainda como se estivéssemos no começo da Modernidade. A pergunta que nos servirá de orientação é: quantas modernidades se fazem e desfazem com uma pandemia? Já não é mais apenas a ideia de futuro que retroage sobre o presente, mas também, a ideia de passado. Nos considerávamos mais avançados que os homens e mulheres dos séculos XVIII justamente porque pensávamos e pensamos como eles! Ocorre que o futuro de lá é o presente de cá.

Somos os herdeiros, diletos ou bastados, da Modernidade; e, todos as vezes que nos perguntamos sobre o nosso próprio tempo, repetindo o mesmo ato de Kant, pensamos, agimos e sentimos como um moderno, ainda que não queiramos, que nos denominemos de pós-modernos ou digamos que jamais fomos modernos. Tal se dá, em um primeiro momento, no modo como tentamos dar contornos discursivos racionais àquilo que nos apareceu como uma grande surpresa, um inaudito. Nos paradoxos desse momento, chegamos ao hoje, se nos voltarmos ao ontem. Para entendermos o modo como lidamos com o novo vírus e seus efeitos, é necessário pensar a mais primordial das relações: o vínculo entre homem e natureza. Assim, se dá o registro da nossa primeira reflexão pandêmica.

  1. Natureza e homem: o paradigma da guerra

É necessário, desse modo, voltarmos, mais precisamente, à Inglaterra do lorde Francis Bacon. Logo na primeira página do seu Novum Organum encontraremos o modo como lidamos com a natureza de lá até aqui. Bacon nos mostra, sem maiores salamaleques, que: Saber é Poder. De tal forma que o conhecimento da Natureza não é uma terna contemplação, porém uma relação de domínio, exercido à medida que se conhece cada vez mais e melhor aquilo que se pretende dominar. Em se conhecendo, se domina; por conseguinte, aquele que ainda não domina é porque não conhece o suficiente. O Homem é o sujeito ativo, a Natureza é o objeto que vai se tornando passivo à medida que se deixa conhecer, ou seja, na medida que vai sendo dominado.

O conhecimento da natureza não nos é, pois, figurado como uma relação harmoniosa, debruçada nas mesas de leitura. De fato, Bacon fará duras críticas aos saberes meramente contemplativos e que nada produzem. Se saber é poder, o objeto que não se deixa conhecer facilmente nos conduz a um estado de tensão permanente, e o paradigma de tal estado de tensão é Guerra.

Trata-se, dessa maneira, de uma árdua batalha na qual estando o homem sempre de guarda, deve adotar uma tática matreira: “pois a natureza não se vence, se não quando lhe obedece”. É preciso obedecer primeiro, aponta Bacon, para dominar depois. Este obedecer, contudo, não é uma resignação, o acenar da bandeira branca de quem se deu por vencido, mas apenas um não atacar, até que se tenha feito a completa observação do inimigo. Observando o inimigo, é possível imitá-lo, construindo desse lado da trincheira, aquilo que se faz do lado de lá. O campo de batalha é o conhecimento, a trincheira do homem a ciência, de onde ele espreita seu inimigo. Não há armas a serem tomados do inimigo, o homem só pode contar com aquilo que ele mesmo faz. Isto é, aqueles objetos úteis que ele produz, deixa entrever Bacon, na feliz conjunção de ciência e técnica.

Ocorre, desse modo, no seio da revolução científica moderna, ao contrário daquilo que se apregoa, não uma desantropomorfização da natureza, mas sim uma reposição da antropomorfização, pois se pensa a Natureza tendo como paradigma algo extremamente humano: a Guerra. Contudo, é uma reposição feita em termos diferentes da antropomorfização que havia antes, uma vez que há uma mudança da concepção do que seja o Homem perpetrada pelos renascentistas.

Não é, por isso, mera coincidência que este paradigma esteja também na elaboração das novas visões do que sejam as relações do homem em sociedade. Não é por meio da guerra que Hobbes explicita a origem da vida social e das instituições políticas (?); também não será com base no princípio da guerra justa que será pensado o direito das ditas novas gentes, após a chegada dos Europeus por esses lados (?). E quando a Modernidade esteve em crise e foi atacada por Carl Schmitt, sua elaboração política do par amigo/inimigo não recorreu também ao paradigma da guerra(?).

Assim, como o conhecimento do homem sobre a natureza se estabelece nesses termos, criamos então um dissídio, literalmente frontal, entre Homem e Natureza, que na medida em que desnaturaliza o homem, artificializa a natureza. A natureza passa a ser vista como um autômato, ela não é senão um mecanismo, que sendo perfeitamente conhecido pelo homem, poderá ser replicado de modo melhor. Bacon não viu brotarem as mudas de sementes geneticamente modificadas, mas já estava sobre elas quando trabalhava em sua estufa.

Dá-se um paradigma tão potente, que é capaz de “desarmar” a Natureza desnaturalizando-a. Por isso, não surpreende que muitos ainda sustentem, até agora, a ideia, já demonstradamente infundada, de que seja impossível a origem natural do vírus. Sua origem, segundo estes, só poderia ser o Laboratório, sendo, portanto, fabricado pelo homem. É como se dissessem: “a pobre Natureza já tão completamente vencida, em sua flagrante derrota, seria incapaz de gerar tal pandemia”.

Este caso é, talvez, o mais significativo e paradoxal no paradigma da guerra. Em primeiro lugar, o laboratório aumenta a ideia de dissídio entre Homem e Natureza. Pois é um espaço no qual a Natureza nos aparece completamente vencida, tanto que se tornou controlável. É como se um ganhador de uma guerra levasse para seu território o inimigo vencido, mantendo-o completamente cativo ao seu bel controle. Não é este o objetivo final de um laboratório, fazer com que o número máximo de variáveis esteja sobre controle absoluto?

Tão completamente vencedor, com o avanço da ciência-técnica, o homem já não faz mais guerra de trincheira, ele tem a pretensa ilusão que já não está mais em um campo de batalha, uma vez que o “inimigo” está completamente denominado. É, por isso, que nos acostumamos a nos surpreender, diante de certos desastres naturais. Aparecendo nesses momentos a ideia de “revolta” e “ira” dos elementos naturais. Antropomorfizando, uma vez mais, a natureza. É do paradigma moderno da guerra que sai a ideia de que a natureza uma vez vencida, está pacificada; e, é deste mesmo paradigma que saí o outro lado da moeda, de que o homem, uma vez pacificado, isto é, conscientizado, não quer guerra com a natureza, ao contrário será seu protetor. Mantém-se, ainda, assim o dissídio fundado pelo paradigma da guerra, porém, neste caso, substituído pela diferença entre protetor e protegido.

A Natureza é algo que deve ser tutelado pelo homem. Ora, só é passível de tutela aquilo que está em condição de inferioridade. Assim, se reafirma a postura do paradigma da guerra, ainda que se queira negá-lo. Pois, se o homem pode tutelar a natureza é porque está na condição de superioridade de o fazer, uma vez que ele já a dominou de tal modo que é capaz de alterá-la. Nesse sentido, para reforçar ainda mais sua superioridade que não é apenas técnica, mas moral, o Homem será aquele capaz de manter a ordem da natureza, posto que essa já perdeu sua plena autonomia. Por conseguinte, considerá-la protegida não retira o dissídio, mas o repõe através de mais um elemento ligado à guerra: a pacificação.

Este paradoxo, por exemplo, se encontra latente nos subterrâneos da já aclamada encíclica Laudato Si’ do papa Francisco, que a despeito de suas boas intenções, como bom cristão que deve ser todo papa, não pode operar fora do eixo opositivo natureza/espírito. Não por outro motivo, se usar a expressão “cuidado da casa comum”: se corpo é templo e morada do espírito, o planeta é nossa casa comum. Se mantém o dissídio na afirmação da diferença entre a casa e seu morador. A encíclica, reavivada nesses tempos pandêmicos, não demorará a se chocar com os limites seculares ao qual se prende, ainda que faça um apelo sincero por uma nova relação entre homem e natureza.

Desse modo, agora, com a pandemia, esta retórica – que não é um simples jogo de palavras – do dissídio fundando no paradigma da guerra retorna mais forte. Não sendo produzido em laboratório, o vírus é “a vingança da natureza” contra um inimigo que já se imaginava vencedor absoluto. O interessante de tudo isso, é que vemos esta concepção nascida e embalada na Modernidade ser usada por aqueles que se colocam contra o paradigma moderno. É do interior do paradigma moderno da guerra que os memes e certos discursos verdes reforçam a ideia de que a natureza está “dando o troco”. Ao que parece, não se dão conta que só sabem atacar a Modernidade, modernamente: além de paradoxal, é irônico.

A ironia e o paradoxo continuam, se pensarmos que aqueles que acreditam piamente que o vírus foi criado pelo homem em laboratório – ainda que a maior parte destes seja de adeptos do anticientificismo e do terraplanismo – se posicionam como modernos, pois identificam plenamente no homem a capacidade de realizar algo que antes só a natureza poderia produzir. Ou seja, o completo cumprimento da promessa moderna. Ao fim da observação entrincheirada, o homem foi capaz de repetir perfeitamente aquilo que só poderia ser feito pelo seu pretenso inimigo.

A reafirmação perfeita do paradigma bélico se completa na expressão que mais caracteriza a pandemia: “guerra contra o inimigo invisível”. Embalados no berço esplêndido da ilusão moderna da nossa completa autonomia em relação à natureza, pensávamos já não ser mais possível sermos “atacados” dessa forma: pestes são coisas do passado. Só assim pensávamos, e continuamos pensado, porque completamente imersos no paradigma da guerra que se afirma na diferença odienta, não na identidade recíproca.

Por isso, a pandemia e a retórica dos seus efeitos só aumentam nosso dissídio com a Natureza, que nesse momento além de ilusório, é trágico. Fomos acostumados a não nos vermos como Natureza, tanto que muitos de vocês que chegaram até essa parte do texto, todas as vezes que leram o termo Natureza, pensaram em: florestas, animais, oceanos e até no greenpeace, mas nem por uma vez pensaram em si mesmos, em seus próprios corpos. Como podemos estar em guerra com algo do qual fazemos parte? Ver no vírus um inimigo é não nos enxergamos como natureza, repondo a vaidade antropocêntrica, apresentando a natureza nos moldes de uma caricatura antropomórfica. Não há, nem nunca houve uma natureza lá e nós aqui: posto que somos natureza e nunca deixamos de ser, mesmo que a Modernidade tenha nos prometido e garantido o contrário.

Continuar pensando nossa relação com a natureza nos termos do paradigma de guerra, ainda que camuflado, tende a reforçar os piores efeitos da Modernidade. Curiosamente, a oportunidade de reposicionar a Modernidade, posto que este momento histórico nos legou o contrário do que fora prometido, pode se tornar o momento de sua reposição triunfal: a depender, particularmente, do sucesso da ciência no encontro de uma vacina e de em quanto tempo isso acontecerá. Mais um paradoxo de tudo isso é que mesmo desconfiando que haverá uma triunfal reafirmação do paradigma da guerra, se a vacina for descoberta em curto tempo, não deixamos de torcer para que isso ocorra, de fato, o mais breve possível. Isto diz respeito ao lugar e a imagem da ciência concebida modernamente, mas tal reflexão caberá ao próximo texto pandêmico.

Até lá, façamos como Kant, nos perguntemos sobre o nosso tempo histórico, agora desconfiando de toda explicação que se baseia no paradigma bélico. Melhor que ele, temos a vantagem do conhecimento do tempo histórico que o filósofo apenas vislumbrou, mas se nos mantivermos exatamente nos mesmos paradigmas, estaremos aquém do célebre professor de Konigsberg.

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6 comentários para "Um vírus que revela nosso dissídio com a Natureza"

  1. Luiz Emmanuel Abrantes Pequeno disse:

    Sensação maravilhosa quando se encontra algo ou melhor ainda, quando se é encontrado.

  2. José Osvaldo disse:

    Será mesmo que existe a utopia do pós capitalismo,que nada seria além de up grade no socialismo, menos corrupto?Eu não acredito em sistema algum melhor que o atual,pode se ter o que quiser,se estiver disposto,e na Europa ou América é mais fácil, mas mesmo assim dá pra aprender a viver em qualquer lugar, é a busca da qualidade de vida,que começa com a consciência que casa um tem que fazer o seu,com sustentabilidade.

  3. O site é baseado no conteúda da sua divulgação, vejá lá, achei interessante.

    Sds.

  4. josé mário ferraz disse:

    O historiador Henry Thomas em História da Raça Humana dia que a humanidade é constituída de seres tão estúpidos que vivem a destruir o que construíram. A esta magnífica observação podemos acrescentar: e o que não construíram também.

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