Por uma Pedagogia da Descoberta

Sociedade está madura para Educação que reduza papel dos currículos obrigatórios e estimule prazer do conhecimento — exercitado em bibliotecas transversais e de livre acesso

Por Derbi Casal, em Bibliotecas Sem Fronteira

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Sociedade está madura para Educação que reduza papel dos currículos obrigatórios e estimule prazer do conhecimento — exercitado em bibliotecas transversais e de livre acesso

Por Derbi Casal, em Bibliotecas Sem Fronteira

A escola mata a descoberta. Ela entrega o conhecimento pronto em um currículo, definido de acordo com aquilo que é considerado por autoridades como conhecimento válido, todo o resto é excluído.

O que há nesse “resto”?  Toda  a experimentação, o conhecimento informal, aprendido nas vivências, os saberes tradicionais, transmitidos pelos mais velhos e a descoberta.

A serendipidade (o princípio da descoberta) só existe quando há liberdade de escolha por caminhos diferentes e aleatórios. A descoberta se dá, principalmente, quando não estamos procurando exatamente aquilo. Esse processo, que não pode ser controlado, é inexistente na grade escolar. Na escola somos todos considerados incompetentes para adquirir nosso próprio conhecimento. E nunca somos estimulados à fazê-lo.

A palavra serendipidade surgiu em referência a um antigo conto persa sobre os três príncipes de Serendip. Em suas aventuras eles viviam se deparando com situações inusitadas e fazendo descobertas ao acaso, encontrando respostas para questões que eles sequer haviam feito. Tinha um pouco de sorte envolvida, mas era a sagacidade dos meninos, um toque genial de mentes abertas para a descoberta, que realmente operava a magia.

Essa qualidade da descoberta não é de forma alguma privilégio de mentes superiores. É uma habilidade e um posicionamento, uma forma de ver o mundo, disponível para qualquer pessoa.

Bibliotecas são um excelente lugar para o exercício de serendipidade e nas escolas elas ficam isoladas das pessoas, que mal as frequentam nos intervalos das aulas. Temos alguma contação de história, mas livros previamente escolhidos. Mesmo quando eles não são previamente escolhidos, raramente é o acervo todo ofertado à escolha e, mesmo que fosse, ainda assim seria apenas uma atividade controlada, algum livro teria de ser “o escolhido”, os outros permanecerão inertes nas estantes.

Em geral é proibido (ou vigiado) andar entre as estantes a procura de livros que não se sabe ainda quais são. Isso é feito em nome da “ordem” que sempre vem de cima, e está sempre acima da vivência, pairando sobre ela, limitando suas possibilidades libertadoras.

Há um tipo de acesso à biblioteca, que é transversal, não linear, baseado quase que puramente na serendipidade. Ao conduzir uma leitura, indo de um texto à outro, colecionando trechos diferentes de cada livro sobre determinado assunto, eu estou praticando a descoberta. Aliás foi essa prática que desenvolveu a ciência como hoje a conhecemos e o acesso não linear a uma coleção de livros foi o embrião do hipertexto.

Essa forma de utilizar acervos surgiu lá na antiguidade e se tornou evidente na Biblioteca de Alexandria. Foi responsável pelo desenvolvimento da filologia, da geografia, da matemática, da astronomia, da medicina, da poesia, da filosofia, da história e de muitas outras ciências e saberes.

A serendipidade foi a maior consequência de se acumular livros em uma sala. Isso desenvolveu toda uma economia e ergonomia do saber: o surgimento da paginação, da referência, da citação, da glosa, do colofão, dos sumários, dos resumos, das bibliografias, dos catálogos, das resenhas… Todas essas formas de diálogo entre livros, escritores e leitores.

Uma biblioteca nunca é a mesma para duas pessoas praticando a descoberta. As escolhas, mais ou menos aleatórias, de livros formam caminhos, percursos diagonais, transversais, paralelos, pela coleção toda. O prazer de percorrê-los é como o prazer do desconhecido, é desbravar os universos não domesticados do saber. E é possível reiniciar muitas vezes o processo, sempre com resultados inusitados.

A autonomia de percorrer estantes, pegar livros, ler um trecho, procurar outro livro, compará-lo com um terceiro, pegar uma enciclopédia e, partindo de um verbete qualquer, buscar outras fontes, é o principio do amor pela pesquisa e do autodidatismo. São qualidades fundamentais para o pensamento livre e crítico.

Não provoca nenhum espanto a pouca valorização das bibliotecas e da leitura nos dias de hoje. É um reflexo do que a educação faz com a descoberta. Em tempos em que a homogeneidade de ideias, comportamentos e atividades e a obediência a regras, controles e currículos é o que está nas bases da educação, é bastante esperado que as capacidades revolucionárias e libertadoras das bibliotecas sejam caladas.

A busca por uma forma de educação livre passa pelo resgate da descoberta como veículo da potência humana. A serendipidade em substituição à rigidez curricular. É aí que está a importância esquecida das bibliotecas!

Em uma pedagogia da serendipidade, a descoberta é o centro do aprendizado e  a biblioteca é o coração da escola.

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11 comentários para "Por uma Pedagogia da Descoberta"

  1. Djalma Moraes disse:

    A nova proposta para Educação passa pela reformulação das pessoas, principalmente, daquelas que fazem da Educação um meio de vida, mas, não vivem para ela. Educar para construir um novo presente é o caminho, redescobrir o sabor da descoberta, valorizar a experimentação, buscar caminhos mais interessantes, integrar tecnologia e livros no ambiente da sala de aula, entre outras coisas.

  2. The Derbi disse:

    Oi José Carlos Abrão, na verdade, se tu leres bem o artigo, perceberás que não tentei inventar roda nenhuma. Bem o contrario disso, pretendi demonstrar que a serendipidade acompanha a humanidade há (pelo menos) milênios e que, por algum motivo, têm sido substituída (e mesmo interditada) nos últimos 200 anos, por uma obsessão por controle dos processos de aprendizagem. Não há invenção nenhuma nas pedagogias libertadoras e libertárias, nem pretensão de novidade. O que há aí é uma busca por uma mudança radical de métodos que falharam vergonhosamente.
    Creio que na tua vasta experiência, como demonstrado no comentário, encontraste exatamente o tipo de situação que demonstra que a liberdade da descoberta, embora sendo conceito antigo, anda em desuso nas escolas, universidades e bibliotecas. Atribuo isso à própria natureza das instituições de ensinagem que temos hoje. Por isso, iniciativas como o doutorado informal são tão importantes, ainda que não sejam nenhuma novidade. Além disso, que bom que a roda está aí e não precisa ser inventada (ou descoberta) em um ambiente que favorece tão pouco a criatividade.

  3. eperrotti disse:

    Fiz descobertas por conta própria. A cada uma me sentia um dos príncipes de Serendip. Mas não esqueço daquela bibliotecária que me contou contos escolhidos por ela. Me ensinou a importância de escutar.

  4. Thaty disse:

    Muito boa reflexão. Sobre as bibliotecas, realmente é uma lástima não serem vistas e propagadas como um espaço do saber e descoberta. No meu colégio do fundamental, frequentar a biblioteca era possível somente no contra-turno, para realização de trabalhos e pesquisa com a devida autorização dos pais. E quando lá estávamos, víamos que a biblioteca era frequentada pelos alunos colocados de castigo,sendo impedidos de ficar no intervalo e tendo que resolver inúmeras atividades. No ensino médio estudei num colégio público tradicional, e existia uma forte inspeção pra ver se tinha aluno fora de sala nas bibliotecas. O que devia ser considerado ótimo, tendo em vista os vários grupinhos de fumantes juvenis espalhados pelas arquibancadas. Tudo bem, compensei meus pequenos traumas trabalhando pela segunda vez numa biblioteca.

  5. José Carlos Abrão disse:

    No espaço de quinze dias eu leio dois artigos com a pretensão de “inventar a roda pedagógica”. Este que eu acabei de ler, de Derbi Casal, e o de outro autor com o título “Doutorado informal”. Fico aqui com os meus botões: tenho a impressão de que no circuito pesquisatório dos GTs. acadêmicos sustentados pelo CNPq ou pela CAPES (ou pelo dinheiro do trabalhador que pouco vai usufruir dos respectivos resultados, a não ser seus autores que pretendem ter o título de doutor ou chegar a “Professor Titular”… e pretender usufruir de uma aposentadoria que o trabalhador nem chega a sonhar!).
    Pessoal: a pedagogia, e isso já nos ensinava o grande matemático Pitágoras, e posteriormente Platão e Aristóteles, ela é um fazer que necessita de dois elementos tensionados por uma prática de complexos movimentos. Se hoje a biblioteca é um meio auxiliar do fazer pedagógico, na antiguidade clássica essa biblioteca era o próprio “pedagogue” que conciliava o “insignare” junto ao “adprenere”.
    Séculos depois entram em cena o cristianismo e seus pensadores. Entre outros, Paulo Apóstolo que coloca sua formação filosófica a serviço da prática pedagógico-cristã, como podemos observar nas suas epístolas aos Coríntios, filósofos como ele, exortando-os (sultilmente apelando para as bases teórico-cristãs) que eles colocassem a filosofia a serviço da humanização do homem, inclusive os escravos na busca de suas libertações espirituais. De certa forma, quase vinte séculos depois, um ex-hegeliano vai colocar o substrato pedagógico inerente à dialética hegeliana a serviço da libertação histórica do trabalhador.
    Nestes últimos doze anos como avaliador Institucional e de Cursos junto ao MEC-NEP, esta tem sido uma de minhas preocupações: como ou de que forma os professores orientam seus alunos no uso da biblioteca. Inclusive busco saber como os administradores da biblioteca orientam seus usuários. Na primeira avaliação in loco de que participei, numa universidade no interior do Rio de Janeiro, fiquei horrorizado ao verificar que os alunos eram proibidos de entrarem no recinto reservado ao acervo. Sugerimos à mantenedora que acionasse mecanismos que protegessem o acervo e ao mesmo tempo liberassem o espaço para que os seus usuários, os alunos e alunas, todos eles e elas, e em especial os de cursos de licenciatura, pudessem abrir sua visão de homem e de mundo no manuseio do conteúdo exposto inicialmente no título exibido na capa. E assim, quem sabe, questionar alguns conteúdos que seus professores expunham no seu “insignare” e assim ampliarem os respectivos “ad-prenere”… Finalizando, fico com aquele escritor com o seu livro após a 1a. Guerra Mundial: “Nada de novo no mundo ocidental”…

  6. Nivha disse:

    Quem deu exemplo disso foi Monteiro Lobato, criando o Sítio, que é uma alegoria pedagógica. Lá, as aprendizagens rolam a céu aberto, e não o fez à toa: estava antenado com as questões da educação, da Nova Escola (John Dewey) , por ex., discutindo e indo a congressos nos EUA com Anísio Teixeira. Mas isso requer cuidado. É preciso criar uma ‘cultura da mudança’. Mudar tudo do dia para a noite pode resultar num grande extravio sem sentido.

  7. Marconi disse:

    Excelente texto, tudo a ver com a sagacidade de querer saber o que vier e se perder em outras vias do labirinto do saber, genial.

  8. Ao acaso (serendipity) tudo, menos matemática e idioma que são as ferramentas de busca. Cada qual buscará segundo suas preferências. Quais? As inculcadas na infância familiar. Por isso, o slogan de meu livro, NeuroEducação para o Êxito é: ANTES DE ENSINAR CIÊNCIAS, HÁ QUE ENSINAR NEUROCIÊNCIAS. Cada aprendiz descobre/aprende melhor se conhecer como funcionam seus três blocos cerebrais: esquerdo-lógico; direito-criativo; central-fazedor. Visite http://www.csproporocional.com.br
    Prof. Dr. W. De Gregori

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