Educação, alegres estatísticas e impasses reais

Em duas décadas, Brasil multiplicou acesso ao ensino e recursos para financiá-lo. De nada adiantará, se não enfrentarmos desafios da inovação e qualidade

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Por Cleomar Manhas

A política de educação no Brasil avançou significativamente, nas duas últimas décadas. O acesso à escola foi praticamente universalizado, na faixa etária compreendida entre 6 e 14  anos (ensino fundamental). Ampliou-se, também, entre 15 e 17 anos a partir da vigência do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento  da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), em 2006. E com a aprovação da Emenda Constitucional 59, de 2009, que torna obrigatória a etapa da educação infantil intitulada de pré-escola, a demanda por matrículas entre 4 e 5 anos de idade terá de ser integralmente atendidas até 2016.

Apesar de ainda termos cerca de 3% de crianças fora da escola, na faixa etária compreendida entre 6 e 14 anos e um número maior entre 4 e  6 e entre 15 e 17 anos, pode-se dizer que o direito à educação tem sido contemplado, mas também é preciso perguntar como este direito é atendido.

Precisa-se, então, qualificar o direito à educação, para atingir o que se denomina por educação de qualidade, que, de acordo com estudantes de ensino médio do Distrito Federal significa: “Aquela que fortalece a identidade e estima dos/das estudantes; que é participativa e coletiva; com pluralismo étnico-racial e combate às discriminações; que estimula a diversidade de corpos, amores, solidariedade; que ao invés de conservar, liberta”.

E disseram mais, que para se ter educação de qualidade necessita-se de “direito à cidade”; ataque aos preconceitos; “educação para além das escolas”; “ser direito e não ser comercializada”; “estímulo à cidadania”; “consciência ambiental”. E que educação de qualidade não existe hoje. Apesar de avanços educacionais, precisa-se de uma reforma ampla nas formas de ensino e aprendizagem para que se possa atingir este objetivo.

Para entender os motivos que levam cerca de 50% dos estudantes que ingressam na escola não acessarem o ensino médio ou abandonarem esta etapa antes de concluída, o Inesc — Instituto de Estudos Sócio-Econômicos — realizou, em parceria com o Unicef, oficinas em quatro escolas de Brasília com o intuito de escutar os próprios adolescentes. E o que se ouve o tempo todo é que se faz necessária uma reforma do ensino, outras metodologias, outros currículos, outras abordagens, pois a escola está ficando na estrada. Há novas maneiras de ver e fazer coisas, novas visões de mundo e a instituição escola se dá ao direito de não percebê-las.

Nas oficinas, foram utilizados materiais produzidos pela campanha realizada pelo Unicef, em parceria com a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, “Fora da Escola Não Pode e na Escola sem Aprender Também Não”. Com base em dados do IBGE, constatou que o perfil de quem está excluído ou com risco de abandonar a escola é formado majoritariamente por jovens do sexo masculino, negros, que  vivem em famílias de baixa renda e tem pais ou responsáveis com pouca escolaridade.

O mais curioso, ou corroborador desse relatório, é que as pesquisas realizadas nas quatro escolas de ensino médio do DF encontraram dados semelhantes, com base na percepção de parte da comunidade escolar das quatro diferentes regiões de Brasília: Plano Piloto, Gama, Guará (que atende em maioria alunos da Cidade Estrutural) e Paranoá.

E como se pode verificar, os achados de pesquisa dialogam com as desigualdades brasileiras, de renda, de raça/cor, de escolaridade, sem falar que quando se olha mais detidamente veem-se estampadas também as desigualdades regionais. Seja com relação às diferentes regiões do Brasil, seja nas diferentes regiões das áreas metropolitanas. Por exemplo, na pequena amostra brasiliense percebe-se as maiores dificuldades de aprendizagem entre os estudantes da Estrutural, por ser a região que abriga o lixão do Distrito Federal e sua população ser formada por maioria de catadores de materiais recicláveis, quase todos negros, com baixíssima ou nenhuma escolaridade e renda.

Portanto, sem medo das generalizações, o que ficou claro no processo de formação e pesquisa com os adolescentes, constatado no relatório gerado, é que o necessário para promover uma revolução na educação pública, além dos recursos pelos quais se mobilizou durante o processo de votação do Plano Nacional de Educação no Congresso Nacional, é leveza de alma para mudar. Propor novos currículos, repensar o que se acredita ser disciplina e a que e a quem ela serve, perceber as mudanças culturais que estão acontecendo em velocidade máxima e discuti-las no âmbito das mudanças curriculares.

Além de dialogar com a sociedade sobre as desigualdades. Ou, assumir as desigualdades para resolvê-las. Para isso, não bastam ações governamentais, mas algo no âmbito da própria educação e da cultura. Já há várias iniciativas em curso, como as cotas raciais, a proposta de criminalização da homofobia (que ainda não se conseguiu), as cotas universitárias para alunos de escolas públicas, programas como Prouni, por exemplo. No entanto, isso não basta, é preciso, acima de tudo, que governos e sociedade, como um todo, revejam princípios e saiam para além de suas cercanias. Reflitam sobre anos de violações de direitos e queiram outros modelos e outras práticas.

É preciso tirar o véu que encobre fatores promotores e reforçadores de novas e velhas formas de desigualdades, que passam pela manutenção de privilégios para poucos iluminados, que continuam resolvendo processos eleitorais por meio de financiamento de campanhas políticas, por exemplo. Ou a coleção de impostos regressivos, que faz com que aqueles que ganham até três salários mínimos comprometam 50% da renda com tributação indireta. Com opções de políticas culturais que continuam a favorecer os mesmos em detrimento das manifestações locais. Ou quando pensam em dar acesso à cultura  propõem levar cultura até a favela e não em contribuir para que a cultura da favela se mantenha viva.

Para que a educação se realize como educação de qualidade é preciso, de fato e não apenas no discurso, que parte da sociedade que perpetua preconceitos e agudiza desigualdades, se conscientize de que direitos são para todas as pessoas e não apenas para os “humanos direitos”.

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2 comentários para "Educação, alegres estatísticas e impasses reais"

  1. Caro José Carlos Abrão,
    Só agora vi seu comentário, mas gostaria de agradecer pela leitura cuidadosa do artigo e pelas indicações. Abraços Cleomar

  2. José Carlos Abrão disse:

    Prezada Professora Cleomar, em suas reflexões em torno de educar, ensinar, aprender, escola, comunidade, participação, e as respectivas relações envolvendo professores, sua formação e capacidade para ensinar, setores administrativos e as respectivas atenções com relação ao empenho, controle e manutenção do processo qualitativo de ensino, e o envolvimento do poder público no processo econômico-distributivo ao desempenho do ensino nos setores públicos em todos os três níveis (federal, estadual e municipal), entende igualmente que “não bastam ações governamentais, mas algo no âmbito da própria educação e da cultura. Já há várias iniciativas em curso, como as cotas raciais, a proposta de criminalização da homofobia (que ainda não se conseguiu), as cotas universitárias para alunos de escolas públicas, programas como Prouni, por exemplo. No entanto, isso não basta, é preciso, acima de tudo, que governos e sociedade, como um todo, revejam princípios e saiam para além de suas cercanias. Reflitam sobre anos de violações de direitos e queiram outros modelos e outras práticas”.
    Concordo com a colega Cleomar. Mas eu ousaria dizer que a “revisão de princípios” e a busca de outras saídas “para além de suas cercanias”, historicamente foram ensaiadas e propostas aqui no Brasil, mais especificamente por um Educador e ex-professor de uma das Instituições Estaduais de Educação de São Paulo, localizada no nordeste paulista, em Orlândia. Cinco anos depois que o governo Paulista fechou os 125 IEEs paulistas, em 1975, de inconteste qualidade, solapados pela reforma educacional da ditadura em 1971.
    Dez anos depois da reforma educacional da ditadura (Lei 5692/71) e cinco do fechamento dos IEEs-SP, o professor Azis Abrahão, ex-professor do antigo IEEO-SP, lançou o livro “Poemas Escolares (Datas comemorativas) [Editora Resenha Universitária, São Paulo, 1981, 372pp.]. Transcrevo aqui as chamadas iniciais de “Explicação”:
    “Professor há muitos anos, durante nosso longo magistério tivemos contato com a vivência, as dificuldades, os pequenos e grandes problemas de nossas escolas. Todos os livros que escrevemos têm em vista, de uma forma ou de outra, atender às necessidades de professores e alunos, às vezes no campo teórico, às vez\es nas atividades pragmáticas da escola de cada dia.
    A organização das festas escolares está entre os pequenos problemas, que geralmente impõem tarefas eventuais, cuja execução, nem sempre difícil, compromete entretanto um tempo precioso, roubado a outras atividades didáticas, talvez mais necessárias e fundamentais.
    Professores de Educação Moral e Cívica, de Estudos Sociais, de Comunicação, entre outros, por ocasião da comemoração da fatos ou datas cívicas, saem à procura de textos, poemas, peças teatrais, para a organização de programas, quase sempre improvisados, diante do tempo, estreito e tumultuado, de que dispõem dentro do horário escolar. Este livro vem ao encontro dessa situação.”
    Retomando algumas conclusões de Mestra Cleomar, podemos dizer que passados quase quatro décadas depois, “os achados de pesquisa dialogam com as desigualdades brasileiras, de renda, de raça/cor, de escolaridade, sem falar que quando se olha mais detidamente veem-se estampadas também as desigualdades regionais”… Parabéns, Doutora Cleomar!

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