José Luís Fiori analisa: “Um acordo e seis verdades”

“Mensagem foi clara: Brasil quer ser uma potencia global e usará sua influencia para ajudar a moldar o mundo”

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Por José Luís Fiori | Imagem: “Bandeirinhas”, de Alfredo Volpi

A mediação bem sucedida de Lula como Irã

alçaria Brasil no cenário mundial.”

O Globo, 16/5/2010

Na terça feira, 18 de maio de 2010, foi assinado o acordo nuclear entre o Brasil, a Turquia e o Irã, que dispensa maiores apresentações. E como é sabido, 48 horas depois da assinatura, os Estados Unidos propuseram ao Conselho de Segurança da ONU uma nova rodada de sanções ao Irã, junto com a Inglaterra, França e Alemanha, e com o apoio discreto da China e da Rússia. Apesar da rapidez dos acontecimentos, já é possível decantar algumas verdades no meio da confusão:

1. A iniciativa diplomática do Brasil e da Turquia não foi uma “rebelião da periferia”, nem foi um desafio aberto ao poder americano. Neste momento, os dois países são membros não-permanentes do Conselho de Segurança da ONU, e desde o início contaram com o apoio e o estímulo de todos dos seus cinco membros permanentes. Além disto, a diplomacia brasileira e turca manteve contato constante com os governos destes países durante todo o processo das negociações. A Turquia pertence à OTAN, e abriga em seu território armas atômicas norte-americanas. O presidente Lula recebeu carta de estímulo do presidente Barack Obama, duas semanas antes da assinatura da visita de Lula, e a secretária de Estado norte-americana declarou – na véspera do acordo – que se tratava da “última esperança” de solucionar de forma diplomática a “questão nuclear iraniana”.

2. O que provocou surpresa e irritação em alguns setores, portanto, não foram as negociações, nem os termos do acordo final, que já eram conhecidos. Foi o sucesso do presidente brasileiro que todos consideravam impossível ou muito improvável. Sua mediação viabilizou o acordo, e ao mesmo tempo descalçou a proposta de sanções articulada pela secretaria de Estado norte-americana depois de sucessivas concessões à Rússia e à China. Além disto, criou uma nova realidade – que agora já escapou ao controle dos Estados Unidos e seus aliados, e também do Brasil e da Turquia.

3. A reação americana contra o acordo foi rápida e ágil, mas o preço que os Estados Unidos pagarão pela sua posição contra esta iniciativa pacifista será muito alto. Perdem autoridade moral dentro das Nações Unidas e perdem credibilidade entre seus aliados do Oriente Médio, com a exceção de Israel, por razões óbvias. E agora, passe o que passe, o Brasil e a Turquia serão uma referência ética e pacifista, em todos os desdobramentos futuros deste contencioso.

4. Existe consenso de que a estrutura de governança mundial, estabelecida depois da II Guerra Mundial e reformulada depois do fim da Guerra Fria, já não corresponde à configuração do poder mundial. Está em curso uma mudança na distribuição dos recursos do poder global, mas não se trata de um processo automático, e dependerá muito da capacidade estratégica e da ousadia dos governos envolvidos neste processo de transformação. O Oriente Médio faz parte da zona de segurança e interesse imediato da Turquia, mas no caso do Brasil, foi a primeira vez que interveio numa negociação longe de sua zona imediata de interesse regional, envolvendo uma agenda nuclear, e todas as grandes potências do mundo. A mensagem foi clara: o Brasil quer ser uma potencia global e usará sua influencia para ajudar a moldar o mundo, além de suas fronteiras. E o sucesso do acordo já consagrou uma nova posição de autonomia do Brasil, com relação aos Estados Unidos, Inglaterra e França, e também, com relação aos países do BRIC.

5. O acordo seguirá sendo a melhor chance para prevenir um conflito militar em todo o Oriente Médio. As sanções em discussão são fracas, já foram diluídas, não são totalmente obrigatórias e não atingirão a capacidade de resistência iraniana. Pelo contrário, se foram aprovadas e aplicadas, liberarão automaticamente o governo do Irã de qualquer controle ou restrição, diminuirão o controle norte-americana e da AIEA, acelerarão o programa nuclear iraniano e aumentarão a probabilidade de um ataque israelense. Porque os Estados Unidos já estão envolvidos em duas guerras, e não é provável que a OTAN assuma diretamente esta nova frente de batalha, a despeito do anti-islamismo militante, dos atuais governos de direita, da Alemanha, França e Itália.

6. Por fim, o jornal O Globo foi quem acertou em cheio, ao prever com perfeita lucidez, na véspera do Acordo, que o sucesso da mediação do presidente Lula com o Irã projetaria o Brasil, definitivamente, no cenário mundial. O que de fato aconteceu, estabelecendo uma descontinuidade definitiva com relação à política externa do governo FHC – que foi, ao mesmo tempo, provinciana e deslumbrada, e submissa aos juízos e decisões estratégicas das grandes potências.

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6 comentários para "José Luís Fiori analisa: “Um acordo e seis verdades”"

  1. Fátima Regina disse:

    O governo americano afirmou que o chanceler Celso Amorim “sabia perfeitamente” que o acordo de troca de combustível com o Irã, fechado no dia 17, não levaria os EUA a desistirem das sanções contra Teerã. Os EUA rejeitaram o acordo sob o argumento de que ele não resolvia o problema de o Irã continuar enriquecendo urânio. Amorim e o governo brasileiro esperavam que, com o acordo, os EUA deixassem de buscar as sanções. na ONU contra o Irã.
    Washington convocou uma entrevista para “esclarecer” pontos sobre o acordo e desmentiu Amorim. “O ministro das Relações Exteriores do Brasil sabia perfeitamente da importância dessa questão (do enriquecimento)”, disse um dos três altos funcionários do governo que participaram da entrevista. “Em fevereiro, o subsecretário Bill Burns reuniu-se com Amorim e discutiu esse assunto longamente, e a secretária Hillary Clinton também falou disso com Amorim e com Lula”, disse outro funcionário.
    Os americanos disseram também que “nunca pediram aos brasileiros que saíssem negociando em nome dos americanos”. A carta de Obama a Lula, segundo eles, era apenas uma reação à ideia proposta pelos brasileiros e turcos. “Não sentimos a necessidade de sermos abrangentes em relação a tudo o que seria necessário para um acordo aceitável com o Irã. A carta não continha instruções para negociação.”
    E isto aí: acreditem em Celso Amorim! Ele não só se desmoraliza como arrasta outros com ele.

  2. Vitor Madureira disse:

    Marcos W. Lima, é essa pergunta que me venho fazendo desde o acordo: por que ninguém questiona a rebeldia dos EUA em relação ao acordo assinado por eles mesmo de não prolliferação de armamentos nucleares?

  3. Marcos W. Lima disse:

    No meio desta discussão toda a respeito de O Irã poder ou não fabricar armas atômicas gostaria de perguntar: Por que quase ninguém questiona os Estados Unidos de possuir um tremendo arsenal atômico espalhado pelo mundo? Por que eles podem e os outros não?

  4. Marcio Henrique Monteiro de Castro disse:

    A dúplice posição dos USA com relação a atuação brasileira – a da carta e as declarações da madame Clinton – não é fruto de esquisofrenia. è manifestação de política de falcão, de enfrentamento, explicitando que saída negociada só com completa rendição. De passagem, além de queimar as caravelas da paz, atinge a pretensão brasileira de protagonista mundial. O recibo passado por nosso presidente ao caracterizar a madame como tucana foi, no mínimo, desnecessário.
    A posição brasileira de buscar o protagonismo é absolutamente correta, não por ser expressão de nossa recente força e/ou importância no cenário internacional, como nossos lulistas acreditam, mas por ser vital na defesa dos interesses nacionais nesse mundo belicoso, belicista e imperialista, onde não estamos preparados para nenhum contencioso fora das mesas de negociação. Para nós, nossa amazônia, nosso pré-sal só nos resta lutar pela paz e negociação. Ainda bem que o Obama ganhou um prêmio nobel da paz, não é verdade!

  5. Renato Gianuca disse:

    Potência emergente.
    De fato, o surgimento da presença brasileira no cenário global vem se acentuando, ao longo do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
    Até chegarmos ao nível de potência global ainda falta um pouco. Isto em termos de redução ainda mais vigorosa de nossas terríveis desigualdades sociais. Mas estas metas, certamente, serão alcançadas em pouco período
    de tempo.
    Agora, o que espanta são as assombrosas reações dos setores
    “colonizados” internos, aqui de dentro, que não conseguem encarar a posição firme de uma política externa independente – como por sinal já tivemos durante o breve período do presidente deposto João Goulart.
    Esta atual política externa reflete, portanto, o atual peso econômico do Brasil, suas potencialidades e virtudes – sem, porém, ocultar o peso das inúmeras barreiras que ainda enfrentaremos até alcançar o “status” de potência
    global.
    Renato Gianuca, Jornalista, Porto Alegre (RS).

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