“Culpado, por isso merece sofrer”

Percebo que o sistema de punição-e-recompensa é cruel, primitivo e ineficaz. Quero que a gente se liberte disso. Mas como?

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Por Carolina Lemos Coimbra, editora de AtoVivo | Imagem: Culpa, de Maya Kulenovic (site)

Ele foi considerado culpado. Por isso estava lá. Era culpado, claro. Tinha cometido o que chamamos de estupro. “Estuprou a namorada”, disseram. Estava com 16 anos. Lá, ninguém falava com ele. Era a lei. Ninguém nem olhava para ele. Quer dizer, alguéns olhavam. Alguéns falavam. Educadores, psicólogos e seguranças falavam e olhavam. Os adolescentes evangélicos também. “Eles levam a palavra de Deus, podem falar com todo mundo”, essa era a explicação. Os outros não. “O pior crime de todos”. “E se fosse sua mãe, sua irmã?”. “Ele merece sofrer”.

Um dia, festa de primavera na Febem (atual Fundação CASA). Aquele dia em que se pode brincar, comer comida diferente e ficar na quadra o dia todo. Dia de alegria. Chego e vou direto para a quadra. Na entrada, o vejo sentado do lado de fora da porta, cabeça entre os joelhos. Ouvia-se música e risadas vindo de dentro da quadra.

Entro na quadra, converso com amigos. Passa uma hora e ele continua lá. Vou falar com ele, chamo pelo nome, nem levanta a cabeça. Me abaixo, tento de novo. Uma das psicólogas me chama e diz “não…deixa ele aí” e me conduz para o outro lado da entrada, distante o suficiente para que ele não ouça nossa conversa. Então, segue-se o diálogo:

– O que aconteceu com ele?, pergunto.

– Ele tentou se matar anteontem. Tomou quase um litro de cândida que estava no banheiro. Por isso não vai participar da festa. Decidimos que vai ficar aí do lado de fora. Assim ele ouve toda a diversão e percebe o que está perdendo.

– Ah…assim ele aprende que não vale a pena se matar, né?

– Isso mesmo.

Essa história real, vivida por mim há uns seis anos, ainda não havia sido escrita. Decidi partilhá-la agora num momento em que tenho questionado o nosso sistema de justiça. E questiono especialmente o sistema de justiça que temos dentro de nós. Porque é com esse, em especial, que convivo diariamente e que tenho mais acesso e possibilidade de mudança.

Quando vivi esta situação, não soube o que fazer no dia. Não soube como lidar com a situação. A única coisa que consegui fazer foi ficar lá um pouco e, então, ir embora. Não trabalhei lá por um tempo depois da festa da primavera e não o vi mais. Mas ele continua aqui comigo – ele e esse sistema que me diz que quando a gente é culpado, merece sofrer.

Esse sistema de justiça que diz que existe culpa e que a melhor forma de melhorar o mundo é fazendo a gente odiar a gente mesmo pelo que a gente fez. Continuo não conseguindo entender como isso pode melhorar o mundo. Especialmente porque não consigo ver a minha vida e a minha relação comigo mesma e com as outras pessoas melhorando com este sistema de justiça.

Quando faço algo em minha vida que considero errado, já começa uma fala/pensamento que diz: “que absurdo! Sua idiota! Que coisa mais feia, que coisa horrível! Como você fez isso? Você é horrível mesmo…” e por aí vai…O sistema de justiça que vive dentro de mim começa a me julgar e me avaliar de diversas formas, começando a me definir com palavras como essas. Quando eu já me disse tudo isso, aí ele parte para mais algumas formas de me deixar infeliz. Quanto mais eu sofrer com o que eu fiz, melhor. Então eu posso me privar de rir, de sair à rua, de me divertir com meus amigos…enfim, cabe aí qualquer coisa que eu gosto de fazer e que, como sou culpada, como errei, eu não mereço fazer. Quanto mais miserável eu for, quanto mais infeliz eu me sentir, melhor. Essa é a minha punição. E, dependendo do que eu fiz, posso me punir por toda a vida.

É um sistema simples, que se baseia no mérito, na recompensa e na punição. Quando faço algo considerado bom, bonito, certo, recebo uma recompensa. Quando faço algo mau, feio, errado, recebo uma punição. E tanto a recompensa como a punição estão a serviço de fazer com que eu aprenda e melhore. Aprenda a ser uma pessoa melhor.

Agora, realmente observando isso em mim e nas minhas relações, não me torno uma pessoa melhor. Me torno alguém com mais raiva, tristeza, ódio para comigo e para com os outros. Não faz sentido nenhum quando olho de perto. Faz tanto sentido como o que fizeram com ele na Febem. Será que é só para mim que está na cara que colocá-lo do lado de fora da festa para ouvir e não se divertir não iria aumentar o amor dentro dele, nem a valorização da própria vida e das dos outros, mas o ódio e a raiva? Ah…com certeza ele ia passar a achar a vida maravilhosa dalí pra frente e não ia mais tentar se matar. No dia seguinte iria pensar: “olha eu fiz uma coisa muuuito feia, depois outra mais feia ainda, agora entendo que a melhor coisa a fazer é não fazer coisas feias”. Tão simples, com a punição a gente resolve tudo. Por isso que a cada dia os presídios estão mais vazios. As pessoas são punidas e pronto, melhoram. Não cometem mais o mesmo ato.

Sinto pela ironia. Foi o recurso que encontrei hoje para partilhar a tristeza que sinto por esta situação. E a tristeza que vive em mim quando percebo esse sistema operando em mim e nos outros. E quero me libertar. Quero que a gente se liberte disso, que a gente aumente o amor, a compaixão, que a gente viva em paz. Uma paz de verdade.

Bom, e aí vêm aquela pergunta: e como fazer? E seria lindo eu ter a resposta, não é? Por que afinal eu me disponho a estar aqui para escrever e não ter respostas? Bom, não tenho. Tenho encontrado alguns caminhos. A auto-responsabilização e a restauração têm me levado a lugares com mais felicidade em minha vida. E a gente pode utilizar esse espaço também para a partilha desses experimentos. E eu gostaria de ouvir os seus. E quem sabe a gente vai colecionando perguntas e quem sabe elas nos levam a algum lugar. Porque talvez a resposta nos deixe parados aqui. E eu quero continuar questionando esse sistema e pesquisando formas de criar outro que de fato cuide de algo tão valioso como a justiça. E que cuide de algo tão valioso como a vida e as pessoas. Quero mesmo.

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Carolina Lemos Coimbra  está investigando as relações entre Educação, Comunicação e Não-Violência, especialmente em si mesma. Encontra-se pelo e-mail [email protected], no blog atovivo.wordpress.com , nas ruas e nesses textos.

 Edições anteriores da coluna:

> Existe trabalho involuntário?

Parte da libertação de si mesmo—e da plenitude—talvez esteja em saber o que realmente precisamos. A escolha é nossa (25/11/2011)

> Desculpe, são ordens superiores

Quero um mundo onde cada um se responsabilize por suas ações. Como viver sem perceber nosso poder de escolha? (28/10/2011)

 > Educação, Comunicação e Não-Violência

Como nos reeducar para um viver e conviver que nos liberte dos condicionamentos e possibilite estar vivos a cada instante (30/9/2011)

 

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6 comentários para "“Culpado, por isso merece sofrer”"

  1. Carol, que bela reflexão! Concordo inteiramente com você!
    E creio que não seja necessário grandes mudanças para tratar as pessoas que cumprem pena de uma forma mais digna. Acho que agir com amor é a solução. Isso pode parecer piegas para alguns, mas hoje a sociedade evoluiu e entende que a violência e a repressão não educa. Claro que esse entendimento ainda é bastante deficitário, mas se compararmos a nossa lei de hoje com a de séculos atrás, vamos perceber uma evolução.
    À época de Cristo, por exemplo, pessoas eram apedrejadas em praça pública por terem cometido “erros”, e atos bárbaros como esse eram previstos em lei. E o próprio Cristianismo tem uma passagem bastante significativa, que vai contra a violência vigente na época, quando Jesus não condena, sabiamente, a prostituta que seria apedrejada de forma “legítima” para a época. Em países que hoje em dia mesclam fé religiosa e legislação, esse tipo de prática, infelizmente, ainda é comum.
    Eu acho realmente que as pessoas devem ter consequências para os seus atos, sejam eles bons ou prejudiciais à coletividade, mas a questão é: como será isso? Por meio da punição ou da educação, do despertar de consciência? A justiça punitiva de hoje só intensifica as fragilidades do ser humano, incapaz de se libertar do que o prejudica. Creio que a saída é, realmente, ter com as pessoas que cometem crimes uma postura mais inclusiva, caridosa, mas nem por isso menos “disciplinadora”.

  2. Carol,
    Há muito tempo este assunto vem atormentando as pessoas.
    Na faculdade, o meu professor de Direito Penal recomendou a leitura de um livro do século 18, de Cesare Beccaria – DOS DELITOS E DAS PENAS – que não concordava com a pena de morte e a tortura.
    Me lembro vagamente do livro, mas o autor tinha a mesma preocupação que vc coloca em sue artigo. Encontrei na internet um RESUMO da obra:
    A obra possui como principal objeto os delitos e a aplicação de penas. Ainovação, insistência e o teor humanitário são características marcantes e, sob o ponto de vista da época,
    Dos Delitos e Das Penas pode ser considerada uma obra revolucionista, que vai de encontro a todo o sistema jurídico-penal estabelecido até então.
    O livro é vendido no mercado especializado pelo preço que varia de R$ 20,80 aR$ 12,00. A obra também é encontrada em diversos
    sites da Internet, que a disponibiliza gratuitamente.
    Há até um capítulo intitulado “Como Prevenir os Delitos”, que segue a orientação de privilegiar a prevenção, não a punição.
    Beccaria propõe a substituição das penas privativas de liberdade pelas penas restritivas de direito quando atendidos determinados requisitos pré-estabelecidos em lei. Completa o tema da obra a co-responsabilidade da comunidade e do Estado, que reprimiria não só os delitos mas também atuaria na prevenção do crime.Condenou as práticas bárbaras utilizadas na época para punir o condenado e propôs a proporcionalidade da pena em relação à importância da ofensa. Para Beccaria, a eficácia da justiça criminal estaria na certeza da punição e não na severidade imposta. As penas severas são desnecessárias, já que seria objetivo da aplicação da pena a prevenção do crime e não o castigo do delinqüente. A brevidade seria característica da aplicação da pena, pois só assim a conduta criminosa estaria indubitavelmente associada a uma pena. O grande lapso temporal dificultaria a vinculação da idéia de que uma conduta delituosa levaria a uma pena.Nesta linha de inovações trazidas à época, Beccaria ressalta ainda que as normas devem possuir linguagem acessível ao povo que poderá, dessa forma,ter conhecimento do que constitui um delito e evitá-lo.
    A educação e os prêmios também são citados como formas de prevenção dos delitos.Sua obra impressiona pela quantidade e qualidade de fundamentos utilizados de forma antagonicamente sintética para o combate às penas impostas na época. Tais fundamentos são expostos de forma lógica e com alto teor de humanitarismo. O direito à vida e à liberdade, aliados a Princípios como o da Presunção da Inocência, o da Imparcialidade do Juiz, da Individualização da Pena são citados nesta obra datada do século XVIII, mas que certamente pode ser trazida para os dias atuais e ser aplicada, inclusive, ao ordenamento jurídico brasileiro”.
    Não tenho uma resposta concreta ao seu questionamento, que é sério e importante. A solução da DILMA é construir mais presídios…
    Vou pensar mais um pouco e voltar a visitar este espaço.

  3. marcio ramos disse:

    Carolina valeu muito por este texto.
    Eu há muito digo que parei de procurar os culpados e agora procuro entender o processo para tentar reverter as causas do sofrimento, mas sempre me pego culpabilizando alguém, por alguma coisa…
    Vida longa, e seguimos…

  4. Harumi Okamoto disse:

    Olá, Carolina.
    Sinto muita empatia pela sua percepção de justiça. Também me questiono diariamente as soluções adotadas em nossa sociedade.
    Em geral, vejo as pessoas se colocarem em um salto alto de integridade e moralidade, como se muito distantes estivessem das pessoas que destoam dos comportamentos aceitos.
    O que muitas vezes não se percebe é que a diferença fundamental entre o julgador e o julgado é o contexto de vida de cada um.
    Abraço
    Harumi

  5. Thiana disse:

    Oi Carolina,
    Gostei muito do tema escolhido para discussão, o que me lembrou desse pessoal: http://www.cnvc.org/. Não sei se você já os conhece, mas fica aqui registrado como mais uma fonte sobre o tema.
    Obrigada pelo artigo!

  6. Vanessa Myho disse:

    As mesmas questões me seguem aqui, Carolina… Crescemos e lidamos com essa vigilância interna e externa sempre, forçando-nos a uma ordem só (e que resolveram chamar de justo).
    As escolas e as prisões seguem o mesmo princípio de vigilância. As salas são dispostas num único corredor, para que a ordem seja fácil e, quem fugir dela, o constrangimento e a interiorização da culpa devem se seguir para que a justiça seja feita.
    Aprendemos a prender o que temos medo. E temos medo de algo porque esse algo já foi preso por outra pessoa. Talvez julgar seja ter preguiça de conhecer um medo..

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