Chéri à Paris: Procura-se creche no Brasil
“Brincar? Esse tipo de coisa, a gente não estimula. Imagina se ela cai e se machuca. É muito arriscado, querido”
Publicado 30/01/2012 às 07:05
“Brincar? Esse tipo de atividade, a gente não estimula. Imagina se ela cai e se machuca. É muito arriscado, querido”
Por Daniel Cariello*
– Bom dia.
– Bom dia.
– Sabioquié? Tô procurando uma creche para a minha filha e me falaram muito bem de vocês.
– Pois o senhor veio ao lugar certo. Sua filha vai adorar a gente. Qual a idade da pituba?
– De quê?
– Da tchutchuquinha, da guria, da piá, da…
– Da criança?
– Isso.
– 1 ano e 9 meses.
– Que coisa mais fofa, 21 meses de pura traquinagem, de noites mal dormidas, de cocô mole, de…
– Escuta, será que a gente podia visitar o estabelecimento?
– Mas só se for agora, campeão.
– É agora mesmo, porque se você quiser me mostrar quando eu não estiver aqui não vai adiantar de muita coisa.
– Pois bem. Esta é a maravilhosa sala de estímulos. Tem atividades pra desenvolver a criatividade, pra exercitar a lógica e pra aprender a calcular a raiz quadrada de cabeça e em menos de 5 segundos.
– E ali?
– Ali é o incrível laboratório de línguas. Sua filha já fala?
– Um pouco. Diz umas coisas em português e em francês.
– Francês?
– Isso, ela é pariense.
– Meu querido, francês já era, babau, ficou démodé, se é que você me entende. Paris está decadente, só interessava às pessoas nascidas no século XIX, que adoravam fazer bico, dizer “uh la la” e levantar o dedo mindinho enquanto bebiam uma taça de vinho. Hoje em dia, c’est fini. Aqui sua filha vai ter aula de inglês e espanhol de manhã, de chinês e árabe depois do almoço e noções de russo e de hindi à tarde.
– Russo e hindi?
– É claro. É papel dos educadores preparar a criança para o mundo globalizado. Nunca ouviu falar nos BRICs? Mas depois voltamos ao assunto, pois virando à esquerda chegamos à fabulosa horta orgânica.
– Vocês plantam o que servem na cantina?
– Quase isso, capitão. Quem planta são as crianças. Elas capinam, preparam a terra, jogam as sementes, regam, espantam as pragas, colhem e lavam tudo. E depois ainda picam as cebolas pro almoço, pois eu sempre choro quando tento fazer isso.
– Elas não choram?
– Claro que sim, mas elas já choram o tempo inteiro, então ao menos agora têm um motivo real.
– E aquela enorme caixa preta? Que treco é esse?
– Mais respeito. Ali é o must. O top. The best thing in the whole damn world. Trata-se da Fantastic Black Box, única na América Latina. Há apenas cinco em todo o mundo e é claro que em Paris não tem uma dessas.
– E do que se trata?
– Trata-se de uma caixa sensorial. Cinco minutos ali dentro e sua filha nunca mais será a mesma. A gente liga 435 eletrodos no corpo da criança e ela vai entender na hora de onde veio e qual o seu papel na terra. Vai, inclusive, saber se passará ou não no concurso para o Senado em 2032. Assim poderá dirigir seus esforços para coisas que darão realmente certo em sua vida, sem perder tempo com bobagens que não a levarão a lugar algum.
– !?
– Impressionante, não?
– E depois de todas essas atividades ela vai pro parquinho brincar?
– Brincar?
– Isso. Escorrega, trepa-trepa, gangorra.
– Olha, esse tipo de coisa a gente não estimula aqui não. Imagina se ela cai e se machuca? Ou se fica presa em cima de uma árvore? A gente não saberia o que fazer. É muito arriscado, meu querido, muito arriscado.
(*) Daniel Cariello, editor da revista Brazuca, é colaborador regular do Outras Palavras. Escreve a coluna Chéri à Paris, uma crônica semanal que vê a cidade com olhar brasileiro. Os textos publicados entre março de 2008 e março de 2009 podem ser acessados aqui
Ô, espetáculo!