Brasil: a possível Metamorfose Ecológica

Sob a lógica do agronegócio, campo tornou-se hostil a agricultores, biomas e democracia. Mas pode ser o oposto: base da diversidade alimentar, encontro entre saberes tradicionais e modernos, alternativa real às metrópoles abarrotadas

Paulo Petersen, da Articulação Nacional da Agroecologia, entrevistado por Antonio Martins

MAIS
> O texto a seguir foi construído a partir de entrevista com Paulo Petersen, que está transcrita ao seu final. Acesse também as versões em vídeo (link acima) ou podcast (abaixo).

> O projeto Resgate, por meio do qual Outras Palavras quer debater ideias-força para a reconstrução do Brasil em novas bases, pode ser conhecido aqui.

A suposta “vocação” do Brasil para o agronegócio é um mito colonial, assim como é charlatã a ideia de que o setor agrário “salva” o país em meio à crise. Estas falsidades provocam atraso, devastação, desigualdade. Comandadas pela maior concentração de terras do mundo, elas alienam, em especial, o país de sua verdadeira ligação com o campo – onde poderiam multiplicar-se a produção familiar, os alimentos livres de venenos, cooperativas periurbanas capazes de oferecer ocupação e desafogar as metrópoles, áreas públicas de lazer aprazíveis e despoluídas. Nada disso precisaria ser tirado da cartola: já há, ramificadas pelo país, experiências agroecológias bem-sucedidas e políticas públicas que as apoiam. São saudável embrião. Falta generalizá-las – e para isso, será preciso enfrentar a resistência feroz do sistema agrícola dominante e de seu poder econômico, político e ideológico. Será preciso uma Metamorfose Agroecológica, cujos primeiros passos podem ser dados desde já – em especial se o país se livrar do neoliberalismo.

Passava das 9 da noite da última sexta-feira (2/7) quando o agrônomo Paulo Petersen, que integra o Núcleo Executivo da Articulação Nacional da Agroecologia (ANA), terminou de expor suas ideias. A entrevista que mantivemos pode ser vista como uma aula de Paulo – sobre as interações econômicas entre o ser humano e a natureza, a agricultura brasileira, as relações entre sua transformação e a democracia. Está disponível no vídeo e no podcast acima. É parte do Resgate, o projeto em que Outras Palavras procura – com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo – discutir a reconstrução do Brasil em novas bases e propor um novo horizonte político, alternativo aos do fascismo e do neoliberalismo. Há sempre, nestes casos, risco de simplificação, mas penso poder sintetizar a exposição nos seis pontos a seguir:

1. Se o PIB é um indicador enganoso, muito mais o é quando tenta medir a “produção” agrícola. Porque se trata da atividade humana que mais incide sobre a natureza; e os custos e danos impostos ao ambiente e à sociedade jamais são contabilizados. A produção brasileira de grãos mais que triplicou, nas últimas duas décadas. O setor primário (agropecuária e minérios, essencialmente) é o único, há anos, em que o país registra saldos comerciais positivos com o exterior. Mas esta contabilidade supostamente positiva esconde uma tragédia social e ambiental. Por estar concentrada em muito poucas mãos, a riqueza agropecuária contrasta com um país que retornou ao Mapa da Fome. A inflação da cesta básica disparou, em boa medida porque a agricultura brasileira está cada vez mais voltada à produção de commodities para exportação e não para atender às demandas alimentares da população.

O Brasil, que possui a maior área agricultável do planeta, tem, segundo Ladislau Dowbor, uma superfície equivalente à de cinco Itálias desaproveitada no campo. Não são áreas de florestas ou cerrado, mas propriedades rurais registradas, destinadas à especulação fundiária a uso de baixíssima intensidade – pecuária extensiva, por exemplo. Mas apesar disso, os grandes proprietários e as corporações associadas a eles não param de exercer pressão. Avançam sobre territórios de povos tradicionais e áreas de proteção ambiental. Têm força no Congresso para “passar boiadas” seguidas, como o “Projeto da Grilagem” (PL 510/2021), que legaliza o roubo de áreas públicas e o “Marco Temporal” (PL 490/2007), que pretende avançar sobre as terras indígenas. Quanto mais enriquecem, mais agem para excluir. “Por basear-se na lógica de competição, e na maximização do lucro no curto prazo, o agronegócio precisa expandir-se incessantemente”, lembra Petersen.

2. Dois fatores concorrem para esta distorção. O primeiro, suficientemente conhecido, é a formação colonial brasileira — que privilegia, desde que o pais foi fundado, o latifúndio e a monocultura e, como consequência, resulta em segregação social e degradação ambiental. Mas este fenômeno ganhou novos contornos nas últimas três décadas, fortalecendo-se com a globalização neoliberal. O marco principal da mudança, lembra Petersen, foi o Acordo Agrícola da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995. Ele transformou o campo em todo o mundo. Promoveu mercantilização sem precedentes, ao inundar os mercados nacionais com bens produzidos a milhares de quilômetros de distância e quebrou as barreiras que protegiam as agriculturas locais. Graças a ele, as megacorporações agrícolas globais do agronegócio agigantaram-se através de fusões. E, já sem conhecer fronteiras, firmaram alianças em diversos países com as classes locais de grandes proprietários de terra. É esta força que dá origem e alimenta fenômenos como a “bancada ruralista” brasileira.

3. Mas a verdadeira AgriCultura expressa, como diz a palavra, uma interação muito mais profunda do ser humano com a natureza e consigo mesmo. Ela não visa apenas obter produtos. Sua atividade reprodutiva é essencial – envolve relações com o clima, a manutenção de uma cobertura vegetal protetora, a preservação dos solos, as dinâmicas ecológicas locais, as culturas alimentares. É ao tentar reduzir todos estes processos à produção em escala de mercadorias que o agronegócio rompe estes equilíbrios e introduz as dinâmicas da devastação socioambiental.

Porém, há um mundo camponês que pulsa, sob a hegemonia da aliança entre os neoliberais e os herdeiros da colonização. Há ao menos 45 milhões de brasileiros – uma Argentina – no campo (e mais, segundo novas metodologias demográficas). Estas mulheres e homens produzem, segundo o IBGE, 70% dos alimentos que os brasileiros consomem.

4. A reconstrução do Brasil em novas bases precisa debruçar-se sobre as potencialidades do campo brasileiro, hoje tão subaproveitado e reduzido. A Reforma Agrária – vista como não apenas a redistribuição das terras, mas também a promoção de um novo projeto agrícola e econômico para o mundo rural – pode mudar as relações dos brasileiros com si mesmos e com a natureza. Implica respeitar a diversidade e refinamento dos cultivos e das culturas alimentares – ao invés de produzir commodities. Significa proteger os biomas naturais e, em vários casos, recompor os que foram devastados. Envolve a proteção dos solos e dos rios – hoje contaminados por venenos químicos e drenados além de sua capacidade. Inclui realizar o papel principal da Agroecologia: respeitar os conhecimentos agrícolas tradicionais e combiná-los com ciência avançada.

Mas este possível novo campo brasileiro tem também uma potencialidade pouco debatida. Ele pode ser, em especial nos tempos da internet e do trabalho em qualquer parte, alternativa de ocupação e moradia para parte da população comprimida nas metrópoles. Viver em comunidade junto à natureza, produzindo segundo métodos que a respeitem e combinando saberes tradicionais com técnicas avançadas pode ser uma perspectiva capaz de atrair milhões de brasileiros – de distintas classes sociais e faixas etárias. Imagine um pequeno sítio próximo a um centro urbano, onde trabalhe um grupo de famílias – parte diretamente envolvida em práticas agroecológicas, parte ligada a atividades urbanas, e conectada a elas a distância. Este núcleo desafogaria o déficit habitacional urbano, o encalacramento viário, a poluição, a superpopulação das metrópoles. Precisaria de terra – via Reforma Agrária –, crédito, assistência técnica, mercados por onde escoar a produção. Um novo projeto de desenvolvimento, construído após o colapso do neoliberalismo fiscal, precisa contemplar esta possibilidade.

5. A enorme vantagem, assegura Petersen, é que esta Metamorfose Agroecológica nem parte do zero. Ela pode apoiar-se em dezenas de milhões de agricultores em carne e osso, e em centenas de iniciativas agroecológicas que se espalham pelo país. Já há, inclusive, exemplos de políticas bem-sucedidas. No plano nacional, por exemplo, o Programa de Aquisição de Alimentos, ou os dispositivos que induziam prefeitos a adquirir de agricultores locais a comida destinada à merenda escolar. Vigoraram nos governos Lula e Dilma – embora, mesmo então, os recursos destinados ao agronegócio pelo Estado fossem incomparavelmente maiores. Foram destruídos numa ação de criminalização coordenada por Sérgio Moro, que Petersen descreve na entrevista.

Mas as políticas bem-sucedidas espalham-se pelo território. Uma pesquisa da ANA, durante as eleições municipais de 2020, identificou cerca de 760 iniciativas, em todos os Estados, encapadas por prefeituras e câmaras de vereadores em todo o espectro partidário. Neste caso, há semelhança com o SUS. A defesa dos agricultores é encampada pela população é assumida pelos governantes, que não querem se indispor com o eleitorado. Com base nesta experiência, e a exemplo do que já há na Espanha e está se formando na Argentina, a ANA levanta agora em lançar uma Rede de Municípios Agroecológicos, preparada para difundir e estimular as políticas contra-hegemônicas.

6. Ao longo da entrevista, Petersen frisou várias vezes: a construção de um Brasil Agroecológico não é um passeio: a resistência do agronegócio é e será feroz. Removê-la exigirá um processo politico baseado não em alianças institucionais, mas em mobilização social.

Porém, ninguém se move sem desejos e projetos. Por isso, embalar a perspectiva de uma Metamorfose Agroecológica, com todos as suas transformações sociais e ambientais, parece um ingrediente essencial – e saborosíssimo – na grande festa popular que pode ser um projeto de reconstrução nacional em novas bases.

Eis a transcrição do diálogo:

Antonio Martins: Olá, boa noite, eu sou Antonio Martins, editor do Outras Palavras, e esse é o Resgate, o projeto no qual nós queremos discutir as saídas para o Brasil depois da pandemia e depois do pandemônio representado pela ultradireita, e no qual nós queremos debater alternativas que não sejam a volta ao chamado velho normal. E sim, nós queremos construir, em diálogo com ativistas e com pensadores, uma reflexão maior sobre a sociedade brasileira e sobre como transformá-la. É como se a gente estivesse vivendo e não é como, nós estamos vivendo e vamos viver o luto, como os lutos que veem depois das guerras, com centenas de milhares de pessoas que estão perecendo, que não precisariam ter perecido. Isso exige o luto e exige refletir sobre como fazer diferente.

O Resgate é um projeto que começa na próxima quinta-feira, dia oito de julho. Ele vai discutir, ao longo de um ano, ideias-força para transformar o Brasil. Mas nós estamos fazendo as preliminares do Resgate, nós estamos pinçando alguns temas, que achamos que são muito importantes, para mostrar um pouco a ideia e até, num certo sentido, a ambição do projeto. E é uma satisfação muito grande ter hoje, aqui conosco, Paulo Petersen.

Paulo é agrônomo, faz parte do grupo, é coordenador da articulação nacional pela agroecologia, ele atua em inúmeros projetos ligados à agroecologia. Boa noite, Paulo! Como você está?

Paulo Petersen: Boa noite, Antonio. Tudo bem? Muito obrigado pelo convite!

Antonio Martins: Obrigado a você por participar e por contribuir para isso. Nós vamos tratar aqui de um assunto que é meio tabu, principalmente nos últimos anos. Os meios de comunicação, em especial a Rede Globo, apresenta um agro como tudo, o agro seria o moderno, o agro seria a superação do atraso do Brasil, mas qualquer análise que a gente faça mostra que o agro representa a devastação da natureza, representa o deserto verde, representa um modelo que afasta o trabalhador do campo e representa, inclusive, a subaproveitação ou subaproveitamento da terra brasileira, em favor de uma pecuária extensiva, em favor da devastação, em favor de nada que seja bom para o Brasil.

O agro é tão forte que muitas vezes a gente pensa que não existe alternativas e nós queremos discutir, justamente, com o Paulo, essas alternativas que existem e que são escondidas pela mídia, que são escondidas pela vida urbana, mas que estão presentes no terreno, e como ampliá-las? Como fazer com que elas se transformem no novo modelo agrícola. Então, eu começaria te perguntando, Paulo, pedindo para você traçar um pouco, um desenho do que significa agroecologia, nos seus diversos níveis, hoje, no Brasil. E de como existem as sementes de um modelo agrícola oposto a esse que é chamado do agro.

Paulo Petersen: Ok, Antonio. Bom, mais uma vez muito obrigado pelo convite, é sempre um enorme prazer! E parabenizar a iniciativa do Resgate, que se inicia semana que vem, sempre Outras Palavras dão essa contribuição de debater, digamos, o mesmo assunto por vários ângulos, eu acho que isso é bem importante, fizeram isso ano passado, discussão sobre trabalho, e agora de novo. E debater a agroecologia, debater a agricultura e a alimentação, eu diria que é um ângulo, eu nem diria que é um ângulo, é um eixo a partir do qual você pode dialogar com quase todos os ângulos, né?

E esse é um assunto absolutamente central e, como você disse, muito pouco enfatizado porque parece que já está dado, que o caminho da agricultura e da alimentação já existe, já está preestabelecido, e com narrativas que, exatamente essa do agro que, inclusive agora optaram por esconder o seu sufixo negócio e dizer que é simplesmente o agro é tudo e, na verdade, quando a gente substitui o sufixo cultura, a agricultura, pelo sufixo negócio, você está limitando muito uma atividade que fez com que a civilização, que a nossa espécie, se tornasse o que é.

Foi a primeira atividade econômica que permitiu a nossas sociedades se complexificarem e sempre uma relação muito estreita com a natureza, com os ecossistemas. Então, a ideia de cultura, de forma de vida, de conhecimento, ela tem essa necessidade, quer dizer, a agricultura é a atividade econômica que mais nos vincula com as dinâmicas ecológicas. Todas as atividades econômicas estão vinculadas com a natureza. Mas a agricultura é aquela direta, então… alimentação é o nosso vínculo mais primordial com a natureza e, o agronegócio, ao tornar o alimento como uma mercadoria como outra qualquer, ele rompe com esse vínculo. Então, é um vínculo que não só – quer dizer, quando se transforma o alimento numa mercadoria como outra qualquer – não só afeta profundamente as relações entre capital e o trabalho, mas afeta profundamente as relações entre a nossa espécie e ao resto da biosfera.

Então, a crítica que a agroecologia faz é é uma crítica radical que, a agroecologia não pode ser entendida simplesmente como um novo modo de produção, sem a química, ela vai muito além. Na verdade, a agroecologia precisa ser entendida como uma nova perspectiva de organização social, técnica e das relações de poder nos sistemas alimentares.

Antonio Martins: Conta a isso melhor, Paulo. Nós estamos vivendo em civilização urbana, há muito tempo, a maior parte das pessoas que estão assistindo a esse vídeo nunca pensaram em atuar no campo. o alimento vem, para gente, de uma forma completamente alienada, vem pra agente como se ele caísse do céu, como se ele não fosse produzido, como se não houvessem culturas, como se não houvesse criação dos animais, e você – acho ótima essa introdução, porque ela nos coloca diante de uma perspectiva meio filosófica, sobre a nossa relação com o nosso alimento, com o que nos dá a vida, né? E como você vê isso?

Paulo Petersen: É, sem dúvida é uma abordagem ontológica, filosófica, ontológica, mas ela também tem uma conotação muito materialista, no momento em que nós existimos, ou nos relacionamos com a biosfera. No momento em que a agricultura se desconecta, quer dizer, ela não se desconecta totalmente, na verdade ela, a agricultura, é uma prática social feita na troca com a natureza. Então, historicamente, por milênios a agricultura foi uma prática de produção e reprodução, e o trabalho é dedicado tanto a produzir aquilo que vai gerar a riqueza, ou o valor de uso, o valor de troca, mas ao mesmo tempo esse trabalho precisa reproduzir as futuras condições de produção, a fertilidade do solo, as sementes, a biodiversidade, as próprias relações sociais, aquela ideia da economia enraizada nas relações sociais.

E quando o agronegócio destrói isso tudo, a lógica que organiza a economia do agronegócio, a economia do agronegócio é uma economia de custos não pagos, porque esse discurso triunfoalista do agronegócio, ele é baseado em certas métricas que nos é imposto, e a métrica é o PIB, é o PIB. Esses dias, agora, nós vimos o PIB crescendo, quer dizer, depois da hecatombe que houve no ano passado, cresce, é o agronegócio que aparece como salvador da pátria. Só que esse número esconde muito mais do que mostra.

A gente sabe, o PIB em geral, mas na agricultura é muito mais, você tem uma quantidade de externalidades de custos não pagos, custos à natureza, e muitos custos que são muito mal distribuídos, a toxificação da natureza. Quem paga por essa toxificação? Então, a ideia de você pensar que o agronegócio tem uma certa lógica de reprodução, que ela está sempre movido pelo lucro de curto prazo e isso, do ponto de vista social e ecológico, é um desastre. É um desastre porque a ideia do utilitarismo, do individualismo utilitarista gera uma disfunção ecológica, porque o lucro no curto prazo move, ele organiza a lógica de apropriação da natureza.

Então, se é assim, se eu recupero o meu capital no curto prazo, tudo bem se eu destruir pra trás, e isso é uma lógica que é legitimada institucionalmente, e é assim que o agronegócio vai se expandindo sobre florestas ou sobre terras indígenas, sobre Amazônia, sobre cerrados, porque do ponto de vista da lógica econômica ele precisa competir nos mercados, né? E são mercados cada vez mais liberalizados, eu acho que esse é um debate que a gente precisa entrar também, para tentar ver como é que o neoliberalismo acentua e joga essa lógica do agronegócio. O agronegócio, tal como ele existe hoje no mundo, e num fenômeno brasileiro, ele é resultado de um acordo da Organização Mundial do Comércio, de 1995, o acordo agrícola, que liberaliza os mercados e isso, a partir desse momento, há um processo de concentração corporativa imenso, vertiginoso, nós estamos falando 1995, ontem, né? Poucos anos atrás.

A mudança nos sistemas alimentares, de 1995 para cá, é uma coisa absurda, nós estamos falando aí de segundo Governo do Fernando Henrique Cardoso. E a gente, quando vê isso, como esse movimento mundial se aplica ao Brasil, a partir exatamente do segundo governo Fernando Henrique Cardoso é que o agronegócio ganha uma força enorme, política e econômica, porque o Brasil é reposicionado internacionalmente como o fornecedor de commodities agrícolas.

Antonio Martins: Vamos posicionar isso mais claramente para uma percepção melhor. No cerrado, que talvez seja o bioma que já está mais claramente atingido por esse processo. Nós temos um bioma riquíssimo, pouco explorado pela agricultura, a produção agrícola brasileira, a produção de grãos multiplicou por três ou quatro, se a gente considerar as últimas décadas, mas isso criou riqueza para um conjunto muito pequeno de pessoas, isso devastou um bioma brasileiro, isso não fez com que as pessoas se alimentassem melhor, no Brasil, isso não deu mais empregos, ou seja, a gente devastou a natureza, a gente expulsou o trabalhador do campo, a gente aumentou a exportação brasileira, mas a gente não garantiu condições melhores de alimentação para a população brasileira. Qual seria a alternativa a isso? E de que forma a agroecologia está surgindo e está se espalhando, mesmo sendo contra-hegemônica, mesmo sendo contra toda essa propaganda e toda essa pressão econômica do agro? De que maneira está surgindo um outro modelo?

Paulo Petersen: Eu acho que essa discussão da agroecologia, eu diria o seguinte, esse não é um modelo que esteja surgindo, ele sempre esteve aí. Quer dizer, nós estamos falando de uma outra forma de organização da produção, da distribuição e do consumo de alimentos. Não é só a produção. A gente tem que olhar o sistema alimentar como um todo e, portanto, é uma outra economia dos sistemas alimentares? Outra forma de organizar essa economia, tanto na relação com a natureza quanto na relação entre a produção e o consumo. Então é necessário esse enfoque sistêmico para entender.

O que acontece hoje com o agronegócio? Ele organiza a sua produção em grandes monoculturas extensivas, passando por cima de tudo, e essa é uma lógica econômica fundamental porque ela depende, exatamente, do aumento de uma economia de escala, ou seja, especialização produtiva faz parte. Muita gente fala que é a industrialização da agricultura, é uma agricultura que produz aqui para ser consumida do outro lado do planeta. Então a gente vê os dados dos municípios, até saiu recentemente pesquisas nesse sentido, onde mais cresce o PIB agrícola, são os municípios em que, coincidentemente, o IDH cai. Não existe correspondência entre crescimento do PIB e melhoria de vida da população, absolutamente. Esse agronegócio sabe que é temporário, então ele não vai investir em escola, não vai investir em saneamento, não vai investir em bem-estar, ele está ali de passagem, porque é circulação de capital. E a gente sabe, a história do Brasil é marcada por ciclos econômicos assim, de apogeu e queda, e fica para trás a destruição, a violência, e é assim o agronegócio. Ele continua com toda essa visão de moderno, e não existe correlação entre crescimento do PIB e melhorias nos índices de IDH. Isso em qualquer lugar onde você tem essas extensões de monocultura. Então, essa é a discussão que a gente precisa fazer, o sucesso do agronegócio, e acho que esse é um debate necessário, porque o sucesso do agronegócio é um insucesso da sociedade.

Então, as alternativas que você está perguntando, quais são as alternativas? Quando eu falo que ela já existe, é porque a agricultura familiar de base camponesa faz as coisas de outra forma, ela trabalha com diversidade produtiva, dentro dos ecossistemas agrícolas, que são muito diversificados, ele sabe que manter remanescentes florestais é fundamental para conservar a água, o manejo solo de outra forma, ele sabe que dependerá desses recursos para seguir produzindo indefinidamente, ele não está ali de passagem, é uma agricultura territorial, por isso que a é cultura, é porque a cultura é que enraíza a atividade econômica no território.

Então a gente precisa, a gente fala muito na agroecologia, que a agroecologia é a reterritorialização dos sistemas alimentares, desde a produção até o consumo. Ou seja, são circuitos curtos de comercialização, resgate da cultura alimentar, resgate das práticas alimentares, da biodiversidade, que são diferenciados de acordo com os ecossistemas, com a natureza, então as culturas elas vão se diversificando e vão se aprimorando. Só que na agroecologia, em vez de você negar, como o agronegócio faz, as tradições, os conhecimentos populares, a agroecologia se apresenta como uma ciência com uma outra base epistemológica, ela dialoga com o conhecimento popular, traz o conhecimento acadêmico para sistematizar esse conhecimento e aperfeiçoar esse conhecimento. Basta a gente ver que a ciência moderna ela não identificou, na natureza, nenhuma espécie alimentar, todas veem do conhecimento populares. Nada! Zero!

Quer dizer, quase tudo na agricultura, até a fase da industrialização, é conhecimento milenar de conhecimento tradicional. Então, esse conhecimento é uma base, junto com a biodiversidade, a gente fala do conhecimento biocultural, né? É um conhecimento básico, fundamental para a gente construir outros sistemas, sistemas que sejam geradores de riqueza, mas que distribuam e que regenerem a natureza.

Antonio Martins: Paulo, é super importante isso que você fala, porque o agro diz que o agro é aquilo que a gente encontra no supermercado, mas se a gente olhar as estatísticas, dos duzentos e dez milhões de brasileiros, tem vinte por cento, segundo algumas estatísticas novas, inclusive tem mais, morando no campo, seriam quarenta e poucos milhões de brasileiros, seria uma Argentina, morando no campo no Brasil. A grande maioria dessas pessoas está ocupada na agricultura camponesa, na agricultura familiar, o agronegócio ocupa pouquíssimas pessoas. E como essas pessoas vivem? Qual a relação delas com o alimento que a gente tem na mesa, hoje? Fala, depois a gente avança.

Paulo Petersen: Essa questão que você levanta é essencial, Antonio, porque essa é uma questão que sempre vem para a gente, também, é uma insígnia… o nosso movimento da articulação nacional de agroecologia, é uma pergunta que a gente se coloca, e coloca como desafio para nós mesmos. Por que interessa à sociedade apoiar a agroecologia? A gente tem que se desafiar a dar essa resposta. Não é uma resposta simples, porque tem questões que são de fundos plural, e uma delas é exatamente esse ponto que você coloca, é a distribuição demográfica.

Nós temos que nos perguntar se essa distribuição demográfica, essas megalópoles, ela é de interesse pro futuro da nossa sociedade. Se isso é sustentável?

Antonio Martins: Para as próprias pessoas, né? Que estão amontoadas hoje nas periferias.

Paulo Petersen: Exatamente, verdadeiros purgatórios e que não têm perspectiva. Quer dizer, e por que que é assim? Então a gente vai achar a explicação exatamente no mundo rural, onde pouco a pouco essa ideia da modernização foi gerando desemprego estrutural, ao invés da gente pensar investimentos em saúde, em lazer, em transporte, em bem-estar de forma geral… Num mundo rural, distribuindo as riquezas, pequenas agroindústrias, você desconcentrando, você desconcentraria a população e não precisaria ter essas megalópoles.

Então, o problema alimentar é um problema sério, porque a gente precisa pensar em transições, a gente não tem uma solução de curto prazo, embora nas cidades venha crescendo um fenômeno, sobretudo agora na pandemia, que é um fenômeno muito impressionante, que é o fenômeno da agricultura urbana. Sempre existiu, mas agora é exclusivo, agricultura urbana e periurbana.

Paulo Petersen: O que é isso? São as hortas urbanas, por exemplo?

Paulo Petersen: Hortas urbanas, mas não é simplesmente a questão da produção, mas também as redes de distribuição de solidariedade que estão se formando e que muitas políticas públicas poderiam apoiar, como foi em Cuba, no período especial em Cuba, o que salvou a população cubana da inanição, foram os processos de agricultura urbana, mas com fortíssimo apoio do Estado. Como foi nos Estados Unidos, na época da guerra, a agricultura urbana teve um papel fundamental. Então são fenômenos sociais que são ocultados, são ocultados, então a agroecologia, na verdade, a gente – eu diria assim – é proto-agroecologia, é gente que está praticando a agroecologia mas não nominou, não tem essa identidade de agroecologia.

Então, pegue a nossa Constituição Nacional e também na Associação Brasileira, que é a Associação Científica, a primeira do mundo foi aqui no Brasil, é de partir das experiências, é o método Paulo Freire, identificar, na prática social, os princípios, os valores que identificam uma enorme heterogeneidade. Porque você vê o que que é a agroecologia lá em Belém e vê a agroecologia lá no Rio Grande do Sul, são coisas totalmente diferentes do ponto de vista empírico, mas os princípios são os mesmos. E essa possibilidade da gente construir um movimento em torno de determinados princípios, mas cada um no seu lugar, nas suas condições, nos seus ecossistemas, nos seus valores culturais, vão ajustando e vão desenvolvendo práticas. Portanto, nós não podemos estar sendo comandados por corporações.

Hoje, os sistemas alimentares não são comandados sequer pelos estados nacionais. Eles são comandados por corporações que definem as políticas, as leis, as normas de vigilância sanitária, e isso vai inviabilizando a possibilidade de reprodução dessas experiências, né?

Então, a gente está falando aqui de agricultura familiar, é a maior categoria profissional do mundo, ela está presente, apesar de teóricos de esquerda e liberais, desde o século dezenove, estão vaticinando que a agricultura camponesa vai desaparecer e está aí. Não vou dizer que está forte, mas ela está aí, reproduzindo. Agora, por que ela está aí? É porque ela tem uma outra economia, ela tem seus mecanismos de reprodução que não são explicáveis pela lógica de custo-benefício. São outras economias que explicam. Então é fundamental que a gente incorpore um debate que vocês têm colocado muito aqui, no Outras Palavras, o debate dos comuns, porque se a gente for ver a forma de organização social na relação com a natureza, mas também na relação com a comunidade, os comuns estão presentes em todos os lados, mas eles são uma coisa meio paradoxal, porque ele é onipresente e invisível.

Antonio Martins: Paulo, vamos aplicar isso numa realidade concreta, aqui, nós vivemos numa sociedade onde tem cada vez menos trabalho nas cidades, onde milhares ou talvez milhões de pessoas jovens estão sendo formadas sem encontrar emprego, em parte porque o país está regredindo – digamos assim – para uma reprimarização que não tem a ver com agricultura e nem com, muito menos com, a agroecologia, mas tem a ver com agronegócio e em parte porque nós nunca fizemos uma reforma agrária de verdade. O Ladislau Dowbor, num texto recente que a gente publicou aqui no Outras Palavras, estava mostrando o seguinte, ao contrário do que diz o agro, nós temos, no Brasil, aproximadamente, por conta desse modelo que está imposto hoje, cento e sessenta milhões de hectares – que ele diz que são cinco Itálias, e são mesmo, são cinco territórios da Itália completos, incluindo as montanhas, onde não se pode produzir, por exemplo, os lagos, as áreas geladas – que são propriedades rurais e não estão sendo aproveitadas.

Por que não estão sendo aproveitadas? Em geral são pastagens, ou seja, são aproveitadas de maneira muito pouco produtiva, no pior sentido dessa palavra, é terra que está sendo usada para pecuária extensiva ou é terra que foi desmatada e que está esperando a queimada. E ele diz, numa situação como essa vem o Bolsonaro, por exemplo, e disse que é necessário usar a Amazônia, devastar mais a floresta, enquanto a gente tem cinco Itálias que não estão sendo aproveitadas. De que forma isso poderia servir para o novo modelo agrícola em que – inclusive parte da população, nós temos gente que não está empregada na cidade – pudesse aproveitar essa terra, aproveitar essa terra que está concentrada nas grandes corporações e nos grandes produtores associados a essas grandes corporações, por exemplo?

Paulo Petersen: Bem, Antonio, acho que aí você toca num ponto – que eu diria – crucial do debate. Nós, quando conseguimos, finalmente, que o governo federal aprovasse uma política nacional de agroecologia, depois que 70 mil mulheres foram a Brasília, na Marcha das Margaridas, e a gente conseguiu, também era perto da Rio+20 e tal, e a primeira medida que nós falamos, de uma política de agroecologia era, primeiro, Reforma Agrária, e assegurar os direitos dos povos e comunidades, os direitos territoriais de povos de comunidades tradicionais, por quê? Isso é uma questão estrutural, um país como o Brasil, se não enfrentar essa questão, a gente vai ficar com várias outras bloqueadas. Uma questão que o agronegócio impõe ao estado à sociedade, a tese da terra-mercadoria, essa é uma questão chave, porque isso não tem nenhum respaldo na constituição brasileira. A terra tem que ter função social e ambiental, mas a tese, portanto, ela cumpre uma função, ela deve ser muito mais regulada pelo direito público que pelo direito privado.

Agora, o que que o agronegócio faz? Sempre fez! É a grilagem de terras. Terras públicas e, agora, sobre terras étnicas, terras de áreas de conservação ambiental, então isso que a gente está vendo é essa excrescência desse PL 490, que está mudando a demarcação, quer dizer, isso na verdade faz parte dessa tese da terra-mercadoria, esses são cercamentos, os novos cercamentos dos comuns. Eu acho que essa é uma questão chave da gente entender, não é possível fazer agroecologia com esse tipo de concepção, ou tem regulação e é feito o cumprimento do dispositivo constitucional da função social e ambiental da terra, ou a gente não consegue mudar o sistema.

O agronegócio, na verdade todo desmonte da legislação ambiental agora, a boiada do Sales, agora com esse PL490, e tantas outras, o código florestal que foi passado, ainda no governo Dilma, há de se lembrar, sob a liderança do deputado Aldo Ribeiro, quer dizer, são facilitações que na verdade agora é a legalização da grilagem. E na verdade é uma mudança de um marco institucional de regulação, das terras que são comuns, ou que deveriam ser, que nossa Constituição assegurou, mas é uma Constituição que não foi cumprida.

Então, a reforma agrária aqui, hoje, foi a reforma agrária provocada pelos movimentos sociais que ocupavam terras chamadas improdutivas. Agora nós não podemos cair nessa esparrela, exatamente essa discussão que se levanta, acho que essa discussão de fundo improdutivo ou produtivo, é uma falsa questão.

Antonio Martins: Claro!

Paulo Petersen: É uma falsa questão, porque se a gente cair nisso, a gente vai, de certa forma, legitimar o que o agronegócio faz, porque o agronegócio, hoje, ele está avançando com outras possibilidades técnicas de ocupar esses espaços, mas – como eu falei antes – o sucesso produtivo do agronegócio na escala micro é a destruição da sociedade na escala macro. Então, não é só o índice de produtividade, segundo as métricas que eles adotam. A gente precisa ampliar esse entendimento do que é a função social e ambiental da terra. Então, uma reforma agrária, quando agora a via campesina por causa da reforma agrária popular… O que que significa uma reforma agrária popular? Não é só terra. Está falando também de território. É uma nova construção econômica. Né? Não é só o acesso à terra pra produzir nos moldes, por exemplo, do agronegócio. Porque o agronegócio penetrou também na agricultura familiar, boa parte da agricultura familiar, com políticas públicas totalmente inadequadas, que foi esvaziando exatamente essa natureza camponesa da agricultura familiar, foi induzindo a agricultura familiar a ser um elo subordinado do agronegócio produtor de commodities.

Antonio Martins: Dá um exemplo. Por exemplo, os criadores de frango, que vendem e que estão em pequenas propriedades e criam frango para vender para a Sadia e Perdigão?

Paulo Petersen: Esse é um exemplo, esses aí são os piores, os mais subordinados, os mais alienados. Mas você tem de soja, né? Você tem assentamento rural ocupado por produção de soja, quer dizer, você conquista a terra por um lado, uma luta social imensa, e depois você se subordina àquele que fez você perder a terra. E vai perder a terra na frente, porque é inevitável, você não tem como competir com esse tipo de lógica. A gente tem que mudar a perspectiva da competição no mercado internacional, e isso, o agronegócio, diga-se de passagem, só faz porque tem pesados subsídios públicos, porque o discurso de liberal é um discurso de araque, porque não fosse todas as benesses fiscais, todos os subsídios recebidos, todos os perdões de dívida, esse agronegócio não pararia de pé. Essa ideia de que o agronegócio é um pilar econômico é da economia brasileira, isso é uma lorota, é um pilar sobre o lodaçal. É um pilar sobre lodaçal porque ele não se sustenta, quer dizer, o Estado brasileiro se sustenta das mais variadas formas, desde o plano ideológico até o plano fiscal, ao plano da não reforma agrária, da não redistribuição do acesso à natureza, da privatização das sementes, e por aí em diante…

Quer dizer, você vai tirando, vai criando formas de reprodução de uma economia que é totalmente insustentável. E a gente tem, no Brasil, aconteceu agora esse ano, um fenômeno bem interessante, quer dizer, é dramático, mas a gente tem a Lei Kandir, a famigerada Lei Kandir, que faz com que não se precise pagar o imposto de exportação. Então, o agronegócio, diferente de qualquer outro setor econômico, ele exporta e não paga. Arrecadou 16 mil reais em 2019, 16 mil reais. Todo o agronegócio, né? Então, esse ano com o que estamos vivendo aí uma nova onda, um novo boom de commodities, e o dólar alto e tudo mais… então foi muito vantajoso exportar.

Exportou-se, a soja foi exemplo desse discurso triunfalista, que exportamos, estamos gerando divisa, ocorre que faltou soja para o consumo nacional e nós tivemos que importar a soja que nós exportamos. Importar essa soja! Nós mudamos a lei para tirar a taxa de importação, ou seja, nós não pagamos a taxa de exportação e depois não pagamos a taxa de importação, ou seja, que liberalismo é esse? Que competição é essa? Onde nós vamos ter uma bancada ruralista que vai moldando, vai pavimentando o caminho para que nós, sociedade, subsidiemos uma economia que é completamente – como eu falei – é uma economia de custos não pagos. Só que a fatura já chegou. E o nosso dever num governo com uma perspectiva de esquerda, é nosso dever cobrar isso!

É verdade que, nos anos em que nós tivemos os governos do PT, nós tivemos muitas margens para a agricultura familiar e para, inclusive, para a agroecologia. Mas o grande beneficiário foi o agronegócio. Então isso é o debate que é inescapável, nós temos que entrar nesse debate e a hora de entrar nesse debate é agora, não é no ano que vem, porque – como vocês dizem – a gente não pode voltar ao velho normal.

Antonio Martins: Ao velho normal. E vamos começar a pensar, Paulo, em como seria uma política, digamos assim, nós estamos vivendo em todo mundo o declínio do neoliberalismo, neoliberalismo fiscal, nós estamos mostrando que os estados têm condições, de novo, de investir e de realizar objetivos sociais emergentes, digamos assim. E, digamos que a gente queira que haja um movimento social interessado em superar a lógica do agronegócio e mudar a estrutura fundiária do Brasil, em produzir, em colocar tanto os camponeses, tanto a agricultura familiar que já existe, quanto abrir uma perspectiva para um contingente importante de brasileiros que queiram morar e produzir no campo. Que políticas poderiam favorecer essa mudança? Que seria uma mudança civilizatória. E, num país, que hoje é visto como o país do agronegócio, você criar uma agricultura ecológica e oferecer a possibilidade para uma parte da população que está nas cidades, que está comprimida nas cidades, a possibilidade de viver no campo. Você acha que isso é uma uma utopia louca?

Paulo Petersen: Não, não é, absolutamente. Até porque a gente tem muita experiência já, no Brasil inclusive, nós já vivenciamos um ciclo de políticas públicas, que apontam caminhos. O Brasil, inclusive, é uma referência internacional, nesse campo também. Sempre às margens, sempre na contra-hegemonia, até onde não fere os interesses do agronegócio, a gente conseguiu avançar, quando começou a ferir, a gente foi paralisado.

Mas antes de até entrar nessa questão dos caminhos políticos, eu acho que isso que você coloca é bem importante porque a ONU vai convocar, esse ano, a cúpula mundial da alimentação. Isso está em debate, exatamente isso que você está colocando, porque sabe-se que o problema dos sistemas alimentares é um problema crucial planetário, na crise estrutural que o planeta vive, que os sistemas alimentares são responsáveis por problemas ambientais, ecológicos, sociais, pobreza, fome, quer dizer… todos os dezessete ODS, dos objetivos de desenvolvimento do Estado, se você for pegar, todos eles dialogam diretamente com sistemas alimentares.

Então, existe já uma constatação, uma unanimidade que tem que mudar. Bom, então a cúpula, a cúpula vai ser convocada, só que a cúpula está totalmente capturada pelas corporações. Então, qual é o caminho que as corporações propõem? É mais do mesmo, mais tecnologia de intervenção na natureza – que eles chamam de agricultura 4.0, nanotecnologia, transgenia – o que eles chamam de agricultura climaticamente inteligente – e por aí vai. Ou seja, é uma nova narrativa, é um novo rótulo para uma velha garrafa.

Nós, no nosso campo da agroecologia, e é um processo mundial, a gente diz assim: “É necessário, mudar as relações de poder na regulação dos sistemas alimentares”. Então uma política pública tem que reposicionar a sociedade civil em relação ao Estado, né? Então, não é simplesmente um conjunto de instrumentos na mesma lógica, a gente precisa democratizar o Estado, fazer com que o Estado assuma a alimentação como um direito e não como a mercadoria.

Então, você tem que trabalhar nos fundamentos, a terra tem que cumprir função social e ambiental e não é mercadoria, você tem que desmercantilizar os sistemas alimentares, tem que ter outros princípios organizadores das políticas, aí a gente chega na agroecologia. Vou dar alguns exemplos, nós tivemos, no Brasil, logo no início do governo Lula, no CONSEA, programa de aquisição de alimentos da agricultura familiar, eu diria que tenha sido um dos programas que mais impulsionaram mudanças, seja na produção, seja no consumo, porque é produção direta da agricultura familiar, e colocando em populações mais vulneráveis à insegurança alimentar. Ou seja, não é alimento de boa qualidade acessível só para quem pode pagar, é você democratizar a alimentação saudável e adequada com um direito.

Então, é essa coisa, de você ligar as pontas entre a produção e o consumo exatamente a partir daqueles, você vai estimular uma economia a partir do consumo daqueles que antes não podiam consumir e estavam sendo levados para o consumo do ultraprocessado.

Antonio Martins: De que forma, Paulo, isso poderia ser multiplicado? Essa política, que foi uma política importantíssima, mas uma política que ainda não transformou o agronegócio em agroecologia. De que forma isso poderia ser semente para um feixe um pouco maior de políticas que mudassem o campo brasileiro?

Paulo Petersen: É, essa questão, acho que não é uma política só, é um conjunto de políticas, mas vamos pegar essa porque seria uma política que poderia ser generalizada e vinha sendo generalizada, porque isso depende muito também, essa que é a questão, da relação de sociedade e estado, que eu estava me referindo. Essa é uma política que fortalece as organizações sociais nos territórios. Elas precisam se organizar, se capacitar para organizar a produção, para fazer a distribuição. Então você vai criando novas capacidades locais, descentralizadas, pequenas redes de abastecimento e produção. Você vai criando o que a gente chama das redes alimentares locais. Era uma política do Estado que de certa forma vinha fazendo isso no Brasil inteiro e estava crescendo, o orçamento, ano a ano, chegamos a ter mais de um bilhão de reais nessa política, até que Seu Sérgio Moro, lá no Paraná, através da operação agro fantasma, desmantelou a política a partir de um processo de criminalização. Porque essa é uma política muito subversiva para o agronegócio. Porque ela começou a tomar lugar, um lugar que era cativo do agronegócio, né?

Assim como a alimentação escolar, né? O PNAE, e também foi nesse mesmo período que foi conquistada a ideia de que 30% da alimentação escolar do Brasil viesse da agricultura familiar, diretamente. Evidente que isso é um mercado imenso, são bilhões de reais, né? Isso afeta interesses econômicos poderosíssimos. Então, para a gente avançar na agroecologia, a gente tem que afetar interesses econômicos, e só faz isso se a gente construir maiorias sociais. Não vai ser negociando lá, uns dominguetes, lá no Congresso Nacional, porque se a gente deixa na mão da iniciativa privada e das grandes das corporações, a gente não tem força para mudar esse marco institucional.

Então, esses são dois exemplos que eu dei, que mostram que nosso limite é um limite da força política, para a gente generalizar, esse caminho da reforma agrária, da reestruturação dos mercados, porque os grandes beneficiários tem sido fornecedores de insumos, sistema financeiro, o grande varejo, que vai cada vez mais concentrando e entregando alimentação de pior qualidade. Então, na pandemia, quem ganhou bastante foram o supermercados, tá vendo, que não foram restringidos na pandemia, no entanto, as feiras livres, as feiras, onde estavam os agricultores, foram penalizados. Então você tem dois pesos, duas medidas.

Antonio Martins: Você falou de uma política que teve enorme efeito e que custou um bilhão de reais, um bilhão de reais é merreca, diante do subsídios que o estado brasileiro oferece ao agronegócio. Eu não sei quanto significou a política de aquisição de alimentos pelas escolas, da agricultura familiar, mas certamente, eu não sei se existe esse estudo, Paulo, mas se a gente colocar numa balança as políticas que favorecem o agronegócio tradicional, a agricultura do veneno, a agricultura da concentração, a agricultura da devastação, contra a agricultura do pequeno produtor, que coloca comida na mesa do brasileiro, você vai ver que, eu não sei se vocês têm esses dados, mas que há uma enorme discrepância. Então, eu fico imaginando assim, de que maneira nós poderíamos construir uma política que, num primeiro momento, dissesse, por exemplo, a cada centavo que houver para financiar o agronegócio, constituído por essa agricultura de exportação, de produção de commodities, haverá um centavo para agricultura familiar, para agroecologia, para os pequenos produtores que queiram se instalar nas periferias das metrópoles… seria uma oportunidade, inclusive, ecológica e, sei lá, de lazer, para uma parte da população, que hoje não tem onde exercer seu direito ao lazer.

Paulo Petersen: Então, eu acho que a gente tem que pensar exatamente isso, em transições, onde as políticas vão sendo, por um lado, inverter o sinal. Hoje, a penalização está na agricultura familiar camponesa. Não tem acesso aos recursos públicos, não tem acesso à natureza, não tem acesso aos mercados, não tem acesso à produção de conhecimentos, pesquisa não está orientada para eles. Não! A gente que começar a inverter o sinal, fazendo pouco a pouco… Quer dizer, é preciso começar a colocar limites ao agronegócio, se não colocar limites ao agronegócio, não é possível expandir na agroecologia, porque o agronegócio é expansivo, ele depende da apropriação do vizinho, né? Por isso que eles estão indo em cima das terras de indígenas. O PL490 não é nada mais que uma necessidade de sobrevivência do agronegócio.

Esse exemplo que eu dei tem uma outra característica, que é importante, que é o seguinte, ele pode ser encarado como um programa de aquisição de alimentos, ele pode ser encarado como um programa de desenvolvimento econômico agrícola, pode ser encarado como um programa de abastecimento alimentar e segurança alimentar, pode ser encarado como um programa de saúde… ele pode ser encarado como um programa de educação alimentar, pode ser encarado como problema cultural e um programa ambiental de conservação, da biodiversidade.

Então, cada coisa dessa é tratada por um ministério diferente, né? Então, essa segmentação, uma política de agroecologia, ela deve ser necessariamente intersetorial e ela tem uma alta eficiência fiscal. O mesmo real, você tem efeitos positivos em tudo. É o contrário do que é o agronegócio, porque o crescimento econômico do agronegócio significa destruição em todo o resto. Então nós precisamos de uma lógica de ganha-ganha, ganha no ecológico, ganha no econômico, ganha no social, ganha no cultural. Essa é uma outra perspectiva de políticas públicas, né? Então o PAA, o PNAE, e várias outras, Quer dizer, são políticas que elas geram dinamização econômica com distribuição de renda e regeneração das condições ecológicas. Não é só questão de quantidade de recurso, é a qualidade do recurso e da forma como a sociedade é chamada a conceber e executar as políticas.

Agora, tem uma outra característica interessante que é o seguinte, às vezes, são pequenos recursos que dão reposta muito rápido, isso é uma outra questão importante para a gente ver. A gente poderia, por exemplo, agora na pandemia, por pressão dos movimentos sociais, nossas e tudo, foi aprovado no Congresso um PL 735Q2020, de apoio à agricultura familiar, que era retomar o programa de aquisição de alimento, várias medidas, no momento emergencial, para enfrentar o problema da fome e, ao mesmo tempo, gerar renda dos agricultores. Então, por isso que eu digo, é o ganha-ganha.

O auxílio emergencial, que está sendo distribuído, quem está sendo beneficiado são os grandes supermercados, que as pessoas pegam o seu auxílio emergencial, vai comprar comida porcaria, que faz mal pra saúde, concentra a renda. Você poderia ter uma política que esse mesmo recurso desconcentra a renda, dinamiza a economia, promove saúde, promove novos circuitos. Então, essa PL foi aprovada no congresso e foi vetada pelo Bolsonaro. Então, esse é que é um jogo, sabe? É a gente pensar um pouco que as políticas públicas com outro tipo de concepção, e não com aquela visão setorial onde o econômico é uma coisa, o ecológico é outra, eu acho que essa que é a grande perspectiva da agroecologia. É de ver as múltiplas funções dos sistemas agroalimentares, que eles exercem para o conjunto da sociedade.

Antonio Martins: É, eu tenho a impressão que a gente está diante de dois desafios. O primeiro é um desafio de longuíssimo prazo, que é até difícil a gente dimensionar. Nós estamos num país que tem oito milhões e quinhentos mil quilômetros quadrados, que é provavelmente o país que tem mais área agricultável do mundo, em que a população não se vê como ocupante dessa terra… em que a relação de alienação agrícola é cada vez maior, onde a gente vê os nossos alimentos apenas no supermercado e é como se eles caíssem do céu, não existe, visível, nenhuma política para a produção do alimento.

Deve haver, eu acho que o Resgate precisa imaginar um conjunto de políticas, por exemplo, para dizer que nos entornos das das grandes metrópoles é preciso haver áreas para que a população possa ter um pequeno espaço de terra, por exemplo. Isso, do ponto de vista mais de longo prazo.

Mas eu fico imaginando assim, de um ponto de vista de mais curto prazo, de um ponto de vista de mais curto prazo, já há alguns anos de desenvolvimento agrícola de outro modelo que não seja o modelo do agronegócio. Você se arriscaria a apresentar um conjunto de políticas que pudesse começar a fazer essa transição, para que a gente saia dessa situação em que a gente é, talvez, o país de maior área agricultável no mundo e é o país em que a população menos se vê como participante da produção agrícola. É o país, talvez, de maior concentração agrária do mundo. Como é que a gente faz para sair desse xadrez?

Paulo Petersen: É, essa é uma questão muito interessante. Nós participaríamos de um conselho, foi constituído um conselho, para o debate, e essas ideias gerais, nossas, nós apresentaríamos em forma de instrumentos de políticas, e a partir daí nós dialogaríamos. Nós fizemos vários seminários, em todas as regiões do Brasil, para discutir com os movimentos, como é que eles vêm, como é que deveria ser uma política nacional de agroecologia e os pontos foram discutidos, até consolidar um documento que finalmente foi entregue ao Governo Federal. E aí, evidentemente, começa a negociação, quer dizer, a primeira coisa que dançou foi a própria reforma agrária, eles diziam que reforma agrária não tem nada a ver com a agroecologia, já essas coisas… quer dizer, são os entendimentos. Evidentemente que a gente dizia, a gente sabe que o nossa proposta aqui é uma proposta muito radical, mas a gente chegou numa formulação, naquela circunstância, naquele momento, de uma proposta bem amarrada envolvendo todos os ministérios.

Mas, evidentemente a gente estava dialogando com o Governo Federal, e não basta. É necessário discutir com municípios, porque na verdade esse sistemas alimentares são constituídos é localmente. Então nós fizemos, até o ano passado, foi ano de eleição municipal, nós nos colocamos a seguinte questão, normalmente, disputa de Prefeitura, esse assunto nunca vem à tona, esse assunto da alimentação, isso tudo parece que é um assunto só do Governo Federal e do agronegócio. Vamos ver pelo Brasil a fora o que que já existe?

E a gente ficou surpreendido que, em dois meses, uma coisa bem rápida, a gente levantou mais de setecentos e sessenta iniciativas extremamente interessantes, de políticas públicas implementadas por prefeituras. Produzimos um documento, está no nosso site, depois eu te passo. Isso aí é amostra de que existe muita coisa, não é que a gente precisa inventar, existe já! Essas coisas existem, a partir de lutas locais, só que elas são muito invisíveis. Eu acho que essa é a questão do que eu estava falando, do paradoxo da onipresença e da invisibilidade.

A grande questão nossa, da nossa luta política, é dar visibilidade às lutas que existem e às conquistas que existem. A gente está sempre querendo inventar coisa nova, quer fazer plano, plano de governo… Não olha para as iniciativas que já existem na sociedade e, às vezes, até com os governos locais. O PAA, por exemplo, não nasceu lá em Brasília, num debate no CONSEA, ele foi criado das experiências em município, tá? Então, nós temos muitas iniciativas e moedas locais, de mercados locais, quer dizer, que vão criando novos circuitos, novas economias e nós não vamos enfrentar esses problemas que nós estamos discutindo, se nós não desmontarmos aí o pacto de economia política do agronegócio.

Quer dizer, isso não será de golpe, não é uma revolução de uma hora para a outra, mas a gente precisa botar isso no horizonte e construir uma outra economia política dos sistemas alimentares, é a isso que vem a agroecologia. Então, é preciso um conjunto de políticas, mas é preciso, e isso eu insisto, se não tiver força política, nós não conseguiremos, porque isso não é um assunto tecnocrático, não é um assunto que se resolve com bons instrumentos de políticas públicas, porque esses instrumentos de políticas públicas, eles não têm força por si, para serem implementados. O PAA está aí como exemplo.

Antonio Martins: Pelo que você está contando, Paulo, é mais ou menos uma situação assim, existe o grande mundo do agronegócio que tem poder, que tem terra, que tem Força no Congresso Nacional, força na mídia, o agro é pop, é um punhado de grandes empresas e um punhado um pouquinho maior de grandes proprietários rurais, que hoje hegemonizam essas empresas, esses proprietários rurais, o campo brasileiro. Por baixo disso, invisível, praticamente, para a população brasileira, existe uma teia gigantesca, desde o verdureiro, que fornece o alface para a feira, até o o pequeno agricultor que fornece comida, arroz para as crianças na escola.

Existe uma teia gigantesca, da agroecologia, que pratica, de diferentes maneiras, a agroecologia e que está submersa, hoje, por essa política do agronegócio e essa teia gigantesca, precisa viver de políticas de estímulo, que são muito menos custosas do que as políticas do agronegócio, e a gente precisa fazer um grande esforço para desenvolver, para recuperar essas políticas que já estão em prática, para generalizá-las, para, a partir delas, criar políticas que – não sei como dizer – mas que as tirem da particularidade local, que as tornem políticas mais nacionais… para que a gente crie uma outra política agrária brasileira.

Paulo Petersen: Exatamente isso, mas eu adiciono outros elementos… quer dizer, ela é esse jogo de visibilidade e invisibilidade, de possibilidades, que o agronegócio se apresenta como caminho único, joga todas as luzes, inclusive, muita coisa que é da agroecologia, eles dizem que é agro. Quer dizer, tem o movimento de cooptação também, tá? Movimento de cooptação de coisas que veem da agricultura familiar e tudo, se isso é o agro, mas o que ele está dizendo que é o agro é uma constituição ideológica. Agora, essas invisibilidades, essa teia gigantesca, como você falou, eu acho que é isso mesmo, ela está bloqueada, ela existe, mas ela precisa ser desenvolvida, ela está bloqueada porque ela está contida no seu espaço de possibilidades. Ela está contida pela força do agronegócio, pela deslegitimação social, ela é sempre encarada, muitas vezes, como experienciazinha pequenininha e, muitas vezes, a gente viu isso de gestores que deveriam ser parceiros, de fortalecer, de reconhecer, que é desse pequenininho que, articulando com outro pequenininho, construindo com outro pequenininho, outras redes, com outros segmentos, você vai construir uma coisa grande.

Então, é romper um pouco essa ideia do grande projeto, da grande agroindústria, da grande, e ir reproduzindo as economias de escalas que, mais à frente, vão ser inviabilizadas, é o pequenininho, mas é o local, é o resiliente, é o diverso, é o flexível e é isso que faz com que essas experiências existam e que deem respostas para a maior parte do povo brasileiro que, nesse momento, está vivendo um momento dramático e que retira, exatamente desse pequenininho, soluções grandiosas. Então, essa teia gigantesca está bloqueada, a gente precisa desbloquear o caminho delas. Quando a gente fala, muito assim, quando você conecta um produtor com uma APAE, por exemplo, para fornecer… ou para um hospital e tudo, você está formando redes, e essas são redes virtuosas.

Você vai formando círculos virtuosos, e o agronegócio, ele gera ciclos viciosos de de concentração, empobrecimento e degeneração. O que a gente está falando é criar círculos virtuosos, que um processo vai levando ao outro e vai criando autonomias locais, dinamismo, o papel do estado não é de querer controlar esse tipo de experiência, é de abrir espaço e reconhecer que elas existam… E criar, redistribuir recursos para que elas possam se desenvolver. Daí o papel fundamental da sociedade civil, seja no município, seja a nível nacional, participar da construção e da coprodução dessas políticas.

Isso não é uma política que vem, que vai nascer nos gabinetes, elas têm que se adaptar às realidades locais. Então, acho que essa democratização do estado é um elemento fundamental para o avanço da agricultura.

Antonio Martins: Paulo, essa é uma primeira conversa, nós esperamos continuar dialogando muito na construção de alternativas. Eu queria te fazer, ler para você, e pedir que você respondesse algumas perguntas de algumas pessoas que estão ouvindo aqui o nosso diálogo. A Lilian Lima pergunta quais os perigos que a tese do marco temporal representa para a segurança alimentar. Ela está relacionando o marco temporal contra as terras indígenas com a segurança alimentar, “considerando que essa política pode afetar todos os territórios de povos tradicionais, para além dos indígenas”. O Gerson Neto diz: “a pandemia trouxe as plantas até para dentro dos apartamentos, mas também nos ensinou que não precisamos mais morar em grandes cidades para trabalhar, com um novo olhar sobre a vida fora da cidade, será que esse processo é forte o suficiente para promover alguma mudança no ritmo de vida?”

“Esse debate sobre mudança civilizatória e concentração de terra”, o Gerson está levantando de novo. “Por outro lado, para quem vive – o próprio Gerson – da produção agroecológica, o desafio da criação de novos mercado ou no mercado comum, onde a superação da competição se atenue, está sendo superado? Como você criar mercados novos para essa agroecologia?”

“Porque – é uma pergunta do Jairo – uma questão sobre o desafio geracional no campo, visto que não há estímulo para que os e as jovens permaneçam no campo, não existindo também políticas públicas que estimulem a vivência no campo e que estes façam a sucessão no trabalho.”

Tem alguém que se apresenta como “o mundo segundo uma sagitariana”: “Como que a população pode pressionar vereadores e deputados? Quais políticas de permacultura existem e podem existir?” É, Tereza Tigre: “excelente, divulguei bastante, muita gente deve ouvir esse programa!”. Leopoldo Lima: “como caminhar para o ecossocialismo?”

O mundo do segundo uma sagitariano: “tem gente do Partido Verde que tem investimento no agro, como fazer o agro menos atrativo para investimentos de renda pessoal?”, mesmo pessoa, “o agro está causando uma grave crise hídrica no país” e ela pergunta também qual o Website da ANA. São essas as perguntas que a gente tem aqui.

Paulo Petersen: São perguntas que a gente pode desenvolver bastante, né? Bom, vamos lá! Gerson, essa questão, esse momento, de fato se fala da pandemia, um momento que pode ser, poderia ser, ou pode ser uma bifurcação. Para onde nós vamos, depende da luta social, evidentemente que você tem muitas experiências, inclusive nós, ano passado, fizemos um grande levantamento nacional junto com uma série de organizações, Universidades, grupo de pesquisas, chamado ‘Comida de Verdade – aprendizados no tempo de pandemia – ação coletiva, comida de verdade’ e vendo, exatamente essas experiências de solidariedade que se formaram no Brasil inteiro, e mostra essas experiências, elas ensinam muito para onde nós poderíamos ir. Ocorre que esse reposicionamento o agronegócio também fez. O agronegócio também se reposiciona. As grandes cadeias, é o espírito prático da burguesia, quer dizer, eles não estão dormindo no ponto. Então, eles têm as possibilidades também de se ajustar. Então, quer dizer, como é que nós nos reposicionamos, nesse momento, e disputamos posições? Acho que esse é o debate, porque, caminhos e possibilidades existem, agora a disputa política, para ver como que nós conseguimos construir isso, esses caminhos, é afirmar e legitimar, diante da sociedade. Aí que é o grande desafio.

E não é com o marco temporal e com PL 490, porque de fato isso é uma excrecência civilizacional. Isso aí, eu diria que é uma destruição anti-civilizatória. Como é que você estabelece que até 1988, data da constituição, é uma referência para definir a apropriação da natureza por uma comunidade humana que, às vezes está ali há centenas, ou pelo menos há muitas gerações… quer dizer, é essa ideia de que, mais uma vez, quer dizer, você vai criando justificativas, para a sua lógica expansiva, reprodução. Então, evidente, eu acho que o marco temporal tem um impacto, não só sobre a segurança alimentar, mas acho que isso sobre o debate, debaixo das mudanças climáticas sobre biodiversidade, sobre o tema da água, que foi falado ali da crise hídrica, e a gente sabe que esses territórios, onde os ecossistemas estão mais conservados, porque estão mais conservados? Porque é outra economia, é outra modo de vida!

Então, a questão da crise hídrica, está se falando muito, não é evidente e tem a ver com quantidade de chuva, mas tem a ver, e é muito pouco falado, com a destruição do solo do cerrado e na Amazônia. A gente está favorecendo a possibilidade de se acentuar, assim como as pandemias vão aparecer cada vez mais, em função das condições ecológicas que nós estamos criando, é o que eu estou chamando de ciclo vicioso. Quanto mais a gente joga para a frente o problema, mais insustentável ficará a nossa civilização. Então, já amarrei aqui várias questões…

A questão do marco temporal, da crise hídrica, e a questão dos vereadores e deputados, eu acho que essa é uma questão chave. Esse ano, nós estamos aí num processo chamado agroecologia nos municípios, exatamente para exercitar isso que, acho que foi Leopoldo que perguntou, sobre como fazer, e esse é um aprendizado que a gente precisa fazer mesmo, então a gente precisa pressionar porque os municípios podem muito e fazem pouco. Quem sabe a gente cria aí uma espécie de… uma rede de municípios agroecológicos, como já existe na Espanha, já existe um embrião na Argentina, que hoje tem uma diretoria de agroecologia no Ministério da Agricultura. Então, caminhos existem, a gente precisa, evidentemente, desbloquear aquilo que está bloqueando o nosso caminho, e por isso a gente precisa às ruas amanhã.

Antonio Martins: Muito bem, Paulo, estaremos nas ruas amanhã e poderíamos continuar essa conversa por muito tempo, certamente esse tema voltará ao Outras Palavras e ao Resgate. Eu queria destacar duas coisas da tua fala, para encerrar, antes de te passar a palavra novamente. Primeiro a necessidade da utopia, num país que tem a maior área agricultável do mundo, num país, em que segundo o Ladislau Dowbor, tem cinco Itálias de terra ociosa, e num país em que até há três gerações, no máximo oitenta por cento da população brasileira vivia no campo. Nós temos uma alienação provocada pelo agro, segundo a qual o campo é aquilo simplesmente que nos fornece alguma coisa, não é algo que a população brasileira pode viver, pode estar, pode produzir. Me parece que há uma ruptura muito grande nisso, há uma construção possível, a construção que, como você disse, a reforma agrária implica políticas de favorecimento da pequena produção, ou seja, inverter as políticas que hoje são de favorecimento do grande produtor, do megaprodutor.

Em segundo lugar, junto com essa visão utópica concreta, que não é uma utopia distante, não é uma utopia onírica, mas é uma utopia real, menos alienante, nós precisamos criar, muito rapidamente, políticas que comessem a fazer essa transição, nós não podemos ter só o sonho distante, nós não podemos simplesmente denunciar essa dissociação, dissociar essa ruptura do Brasil como um país de terras, que poderia ser para todos, e a nossa situação de alienados da terra. Nós precisamos construir, pouco a pouco, políticas que vão nos aproximando de uma situação menos alienante e mais democrática, em relação à terra.

Paulo Petersen: Excelente você ter colocado esses dois pontos, porque um é o horizonte e outro é o caminho. Evidentemente que a gente tem que pensar isso de forma muito radical, e isso implica em mudanças estruturais na distribuição da riqueza, mas também enfrentamentos em questões culturais que também nos bloqueiam, como o patriarcado, o racismo e são bloqueadores da agroecologia, também. Eu não entrei nesse debate aqui, agora, mas a gente vê que as experiências de agroecologia, o papel que as mulheres desempenham, exatamente porque tem outro tipo de entendimento, também econômico, então acho que essa questão da economia do cuidado, a economia da regeneração, se a gente não incorporar essas diferentes linhas, esses diferentes entendimentos, para construir esse horizonte utópico, a gente vai ficar refém do pensamento liberal, né?

Acho que é superar o pensamento liberal é fundamental para a gente construir esse esse horizonte utópico. Aí, são os caminhos que você está falando, é o passo a passo, porque eu acho que cada conquista dessa, cada política dessa, é uma política que vai fortalecendo o caminho, e as as forças sociais que vão empurrar para frente. Se a gente não tiver conquistas materiais, a gente desanima. É preciso ter conquistas. Então a gente ensaiou isso, ensaiou, mas o pacto com o agronegócio inviabilizou. Então acho que é desafiante, não tem soluções dadas, mas exatamente eu acho que você coloca os dois pontos, a gente precisa ter esse horizonte e precisa ter estratégia, senão a gente não sai do ponto.

Antonio Martins: Ou seja, acho essencial isso que você falou no final. Houve mudanças, mas o pacto com o agronegócio inviabilizou uma transformação maior. Eu acho que o grande desafio que a gente vai enfrentar, se a gente conseguir superar a ultradireita, se a gente conseguir superar o bolsonarismo e o fascismo, é como construir o Brasil, como construir um novo projeto do Brasil sem o pacto com o agronegócio, e construindo, no lugar do pacto com o agronegócio, um novo pacto com o conjunto da população, inclusive com parcelas da população urbana que estão alienadas, completamente, do agro, de um outro agro, não do agro do agronegócio, mas da terra, o agro como terra. Eu acho que o projeto Resgate vai voltar a esse tema, muitas vezes, mas eu acho que foi super importante e te agradeço muito, Paulo, por essa primeira aproximação a esse tema que é essencial e sem o qual a gente não vai construir um novo projeto de Brasil.

Muito obrigado.

Paulo Petersen: Obrigado, Antonio. Boa noite e seguimos na luta!

Antonio Martins: Seguimos juntos. Muito obrigado, Paulo.

Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OutrosQuinhentos

Leia Também:

Um comentario para "Brasil: a possível Metamorfose Ecológica"

  1. José Mauro Stabile disse:

    Tá faltando conhecimento social…..e não blá blá de ciências política social…….o Brasil tem passado por uma transformação muito grande onde não cabe discurso ideológico…. mais sim um conhecimento demográfico e social.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *